O
Dia Mundial da Poesia foi instituído pela XXX Conferência Geral da
Unesco, em 16 de novembro de 1999.
quarta-feira, 12 de outubro de 2022
DIA
NACIONAL DA LEITURA
PROUST
E SEU LIVRO
De
certo o sabia, quem viveu
com
a vida e a obra emaranhadas,
que
viveu fazendo-as, refazendo-as,
elastecendo-a
em tempo e páginas,
que
vestiu sua obra, por dentro,
percorrendo-a,
viajando em seu barco,
de
certo viu que um dia acabá-la
era
matar-se em livro, suicidá-lo.
João
Cabral de Melo Neto
(In:
Museu de tudo, 1976).
__________
Fotografia: Gaman Alice.
sábado, 23 de abril de 2022
23 de abril: Dia mundial do Livro e do Direito do Autor
Jorge de Lima. Invenção de Orfeu
Jorge de Lima. "O nome da musa".
Canto I
III
E
depois das infensas geografias
e
do vento indo e vindo nos rosais
e
das pedras dormidas e das ramas
e
das aves nos ninhos intencionais
e
dos sumos maduros e das chuvas
e
das coisas comidas nessas coisas
refletidas
nas faces dos espelhos
sete
vezes por sete renegados,
reinventamos
o mar com seus colombos,
e
columbas revoando sobre as ondas,
e
as ondas envolvendo o peixe, e o peixe
(ó
misterioso ser assinalado),
com
linguagem dos livros ignorada:
reinventamos
o mar para essa ilha
que
possui "cabos-não" a ser dobrados
e
terras e brasis com boa aguada
para
as naves que vão para o oriente.
E
demos esse mar às travessias
e
aos mapas-múndi sempre inacabados;
e
criamos o convés e o marinheiro
e
em torno ao marinheiro a lenda esquiva
que
ele quer povoar com seus selvagens.
Empreendemos
com a ajuda dos acasos
as
travessias nunca projetadas,
sem
roteiros, sem mapas e astrolábios
e
sem carta a El-Rei contando a viagem.
Bastam
velas e dados de jogar
e
o salitre nas vigas e o agiológio,
e
a fé ardendo em claro, nas bandeiras.
O
mais: A meia quilha entre os naufrágios
que
tão bastantes varram os pavores.
O
mais: Esse farol com o feixe largo
que
tão unido varre a embarcação.
Eis
o mar: era morto e renasceu.
Eis
o mar: era pródigo e o encontrei.
Sua
voz? Ó que voz convalescida!
Que
lamúrias tão fortes nessas gáveas!
Que
coqueiros gemendo em suas palmas!
Que
chegar de luares e de redes!
Contemos
uma história. Mas que história?
A
história mal-dormida de uma viagem.
Jorge de Lima
____________
Poema extraído de:
Jorge de Lima. Invenção de Orfeu. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 19-21.
Obra publicada originalmente em 1952.
____________
Fonte das imagens:
"O nome da musa".
abca.art.br
Trata-se de uma das fotomontagens do próprio poeta Jorge de Lima.
*
Retrato de Jorge de Lima:
agenciaalagoas.al.gov.br
sexta-feira, 23 de abril de 2021
23
de abril: dia mundial do livro e do direito de autor
Carolina
Maria de Jesus (1914 - 1977)
15
DE JULHO DE 1955
Aniversário
de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos
para ela. Mas o custo dos generos alimentícios nos impede a
realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos
do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e
remendei para ela calçar.
Eu
não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3 litros e
troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão. Fui
receber o dinheiro do papel. Recebi 65 cruzeiros. Comprei 20 de
carne, 1 quilo de toucinho e 1 quilo de açúcar e seis cruzeiros de
queijo. E o dinheiro acabou-se.
Passei
o dia indisposta. Percebi que estava resfriada. A noite o peito
doia-me. Comecei tussir. Resolvi não sair a noite para catar papel.
Procurei meu filho João José. Ele estava na rua Felisberto de
Carvalho, perto do mercadinho. O ônibus atirou um garoto na calçada
e a turba afluiu-se. Ele estava no núcleo. Dei-lhe uns tapas e em
cinco minutos ele chegou em casa.
Ablui
as crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me. Esperei até as 11
horas, um certo alguém. Ele não veio. Tomei um melhorai e deitei-me
novamente. Quando despertei o astro rei deslisava no espaço. A minha
filha Vera Eunice dizia: — Vai buscar agua mamãe!
Carolina
Maria de Jesus. Quarto de despejo: diário de uma
favelada . 10ª ed., São Paulo: Ática, 2014, p. 9.
Carolina
Maria de Jesus
Imagem
Carolina
Maria de Jesus (Sacramento, Minas Gerais, Brasil, 14 de março de
1914 — São Paulo, São Paulo, Brasil, 13 de fevereiro de 1977).
Clementina
de Jesus (Valença, Rio de Janeiro, Brasil, 7 de fevereiro de 1901 —
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 19 de julho de 1987).
Trecho
do documentário "Caterina Valente präsentiert
brasilianische Musik" (1979).
https://www.youtube.com/watch?v=tNuuwLnwCsM
*
quinta-feira, 15 de outubro de 2020
ENTREVISTA
COM SÉRGIO SCHARGEL
O
pesquisador e escritor responde ao blog – Parte II
Gianguido Bonfanti, s/ título, gravura, 50 x 60cm, 1980.
Na
segunda parte da entrevista ao Búfalo Celeste, o pesquisador
e escritor Sérgio Schargel fala sobre a ressurgência do
autoritarismo e as novas manifestações de antissemitismo, dá a sua
visão sobre a relação entre Universidade e sociedade e, por fim,
dá indicações de leitura de obras de ficção.
No
início do seu artigo para o NexoJornal, de 31/5/2020, “ 'Você não
é judeu de verdade': o antissemitismo velado”, você afirma que
“era de se esperar que os judeus se posicionassem maciçamente
contra um presidente que, em muitos aspectos, lembra um político que
nos massacrou”.
Mais
adiante, você lembra do convite que o Clube Hebraica fez para que o
então candidato Jair Bolsonaro expusesse o seu programa de governo
e, mesmo com as ideias fortemente preconceituosas ali apresentadas, o
candidato foi aplaudido.
Com
tudo o que essa Presidência já demonstrou, notadamente no desapreço
pela democracia, refletindo-se, inclusive, na sua imagem negativa no
exterior, você acredita que possa ter ocorrido uma mudança de
postura na comunidade judaica brasileira?
Bem,
primeiro de tudo é importante sempre ressaltar que a comunidade
judaica não é uma comunidade homogênea. Obviamente nenhuma
comunidade o é, por mais que elos identitários os liguem, há uma
inevitável pluralidade de ideologias e correntes políticas entre
qualquer minoria, sejam elas judeus, árabes, mulheres, negros,
índios. Mas, na comunidade judaica em particular, por causa da
diáspora e da formação de identidades ambivalentes, assim como uma
cisão entre judaísmo secular, conservador e ortodoxo, essa
heterogeneidade é particularmente marcante.
Da
mesma forma que 60% dos judeus apoiaram a candidatura do Bolsonaro,
por conseguinte é óbvio que 40% não o apoiaram. Com as mulheres,
cerca de 60% apoiaram e 40% não. Os LGBTQ+ apoiaram em 30%. 70% dos
evangélicos apoiaram e 50% dos católicos. Dados do Datafolha. O
próprio evento no Hebraica, clube em que eu jogava futebol quando
criança, teve uma manifestação do lado de fora majoritariamente
formada por judeus indignados com a presença do Jair. Meu ensaio foi
criticado por não aprofundar esses pontos e eu entendo essa crítica.
Na versão ampliada, com formato acadêmico, a ser publicado em
breve, eu trato dessas questões. Mas por causa do espaço é
impossível desenvolver discussão em múltiplas frentes em opeds.
Por
que 30% da população LGBTQ+, que talvez seja a minoria que foi
atacada com mais frequência pelo presidente, o apoia? É essa
pergunta que eu quero fazer, é isso que eu quero entender: por que
minorias apoiam candidatos que as atacam?
Mas
para fins acadêmicos me interessam mais esses 60% dos judeus que
votaram no Jair do que os 40% que não votaram. Por que 30% da
população LGBTQ+, que talvez seja a minoria que foi atacada com
mais frequência pelo presidente, o apoia? É essa pergunta que eu
quero fazer, é isso que eu quero entender: por que minorias apoiam
candidatos que as atacam? A priori, isso parece em certo ponto
contradizer a clássica teoria da escolha racional, cânone na
ciência política que determina que os eleitores imprescindivelmente
votam para aqueles que representam melhor seus interesses. Um segundo
formato de crítica ao meu ensaio partiu dos marxistas, que afirmam
que a resposta a essa pergunta é simples e é meramente uma questão
de luta de classes. É impressionante que em 2020 certos marxistas
ainda sacralizem os escritos de Marx e o tomem como único pensador
possível, excluindo quaisquer outras possibilidades no processo. É
um pensamento em parte herdado da Terceira Internacional, quando foi
decidido que o fascismo era o último suspiro de um capitalismo
moribundo, antecipando a inevitável revolução. Podemos ver que
esse pensamento não se sustentou e a explicação marxista sobre o
fascismo é rasa e simplória. Simplesmente porque o fascismo, e
podemos ver isso no bolsonarismo, espalha o seu miasma por todas as
classes, assim como por todos os grupos identitários, como os dados
do Datafolha mostram. Claro, a não ser que seja feito um
procedimento quantitativo dentro dessa porcentagem das minorias a
favor do Bolsonaro, como, por exemplo, os 30% LGBTQ+, analisando as
divisões sociais dessa amostra, é impossível uma conclusão
científica e absoluta (e provavelmente mesmo assim também o seria).
Todavia, os dados que temos já são suficiente para afirmar que
Bolsonaro teve penetração em todas as classes sociais, o que parece
refutar a hipótese da luta de classes ao menos como explicação
exclusiva.
No
caso particular dos judeus, algumas hipóteses empíricas podem ser
traçadas: a relação amigável de Bolsonaro com o Estado de Israel;
o fato de Jair em si, ao que eu me lembre, nunca ter dado declarações
antissemitas (apesar de pessoas próximas dele já o terem feito
algumas vezes, como vale sempre lembrar o caso Rodrigo Alvim). Mas
essas hipóteses não explicam, por exemplo, se é possível traçar
uma comparação em um tempo-espaço tão díspar, o apoio de grupos
judeus minoritários ao fascismo e ao nazismo em seus estágios
iniciais. Talvez a resposta esteja em um parágrafo do livro Não
vai acontecer aqui, de Sinclair Lewis:
“Sarason
sabia sobre os modos sigilosos com que esses barões da indústria,
sua força renovada, usavam as detenções feitas pelos MM para se
livrar dos ‘encrenqueiros’, em particular os radicais judeus - um
radical judeu sendo um judeu sem alguém que trabalhasse para ele
(alguns desses barões inclusive eram judeus; não se espera que a
lealdade à raça seja levada ao ponto de enfraquecer o bolso”).
À
primeira vista talvez essa citação pareça corroborar a hipótese
da luta de classes, mas eu não enxergo assim. Vou chegar lá.
Gianguido Bonfanti, s/ título, gravura, 43 x 52 cm, 1980.
Assim
como a obra de Lewis, Complô contra a América, de Philip
Roth é um exemplo magnífico de como o real da ficção pode sugerir
respostas para questões que nos perturbam no nosso real. Quem já o
leu deve se lembrar de dois dos personagens mais detestáveis do
enredo: o rabino Bengelsdorf e Evelyn, sua esposa e tia do
protagonista. Ambos, judeus, reforçam e corroboram a candidatura do
presidenciável antissemita Lindbergh, um personagem que de fato
existiu. Roth mostra como ambos, arrivistas, colocaram suas
identidades em segundo plano em prol da possibilidade de ascensão
social.
Parte
daí a hipótese que mais me interessa para entender esse apoio: a
questão identitária seria irrelevante para esses grupos, ou ao
menos não seria imprescindível. Assim, não contradiz a hipótese
da escolha racional. Esses grupos supostamente escolheriam o líder
que melhor condiz com os seus interesses prioritários. Assim, se for
um liberal de classe média, as promessas de Bolsonaro de
flexibilização trabalhista o interessam já que podem ajudar sua
pequena empresa. Para uma pessoa que depende do Bolsa família, a
manutenção do auxílio governamental. E por aí vai. Isso pode
ajudar a explicar também o apoio maciço ao presidente em todas as
camadas sociais, afinal, 57 milhões, 1/4 da população brasileira,
engloba uma multidão heterogênea.
É claro que há diversas outras
variáveis que podem inclusive contradizer a escolha racional, como
as fake news, e, como qualquer ciência, é impossível
considerar todas. Eu, por exemplo, tive uma formação secular e o
judaísmo não foi primeiro plano na minha vida, só de uns anos para
cá passou a me interessar mais e passei a me identificar mais.
Certamente, na minha escolha política, pesam muito mais outros
aspectos do que a relação entre Brasil e Israel pode pesar para um
ortodoxo. Então, aparentemente, esses 60% relevam o ódio do
presidente a outros grupos sociais, mesmo que ele acabe indiretamente
incentivando o antissemitismo, em função de suas prioridades
políticas e econômicas. Em outras palavras, “não é problema
meu”. Portanto, eu vejo mais como uma questão dentro da hipótese
da escolha racional do que como luta de classes.
Novamente,
essa é uma longa discussão sem uma resposta conclusiva. É uma
questão sobre a qual vou me debruçar em meu futuro doutorado em
ciência política durante quatro anos e acredito que apenas um misto
de pesquisa quantitativa e qualitativa tornará possível
respondê-la, talvez nem assim. Por enquanto, tudo o que tenho é uma
hipótese falseável que pode ou não se sustentar, o que indica que
esse é o caminho certo da pesquisa.
A
recessão democrática global que estamos vivendo, agora em seu
décimo quarto ano consecutivo, traz consigo movimentos de ódio,
racismo, nacionalismo e intolerância que acaba impulsionando o
antissemitismo.
No
meio disso tudo o outro ponto que eu levanto no artigo, diretamente
relacionado e que também me interessa muito, é o crescimento do
antissemitismo no mundo inteiro, mas particularmente no Brasil, esse
nosso antissemitismo jabuticaba. O trauma do Holocausto e a formação
do Estado de Israel mitigou o antissemitismo pelo mundo. Nunca foi
tão seguro ser judeu, ser abertamente judeu, quanto no início do
século XXI. Mas essa recessão democrática global que estamos
vivendo, agora em seu décimo quarto ano consecutivo, traz consigo
movimentos de ódio, racismo, nacionalismo e intolerância que acaba
impulsionando o antissemitismo. Parece-me que o antissemitismo está
voltando a ser institucionalizado para além de países periféricos
da Europa oriental. A AfD [Alternativa para a Alemanha, Partido de
extrema-direita] na Alemanha disse que o Holocausto não foi mais do
que “cocô de pássaro na história alemã”, o secretário de
imprensa de Trump negou as câmaras de gás nazistas, 32% dos alemães
acreditam que os judeus usam o holocausto por conveniência, segundo
dados da CNN. Mais do que isso:
“Na
Alemanha, a polícia revelou que atos de violência motivados por
ódio aos judeus aumentaram em mais de 60% no país no período de um
ano. Segundo os dados, solicitados por parlamentares do partido A
Esquerda, foram 62 ataques violentos em 2018, deixando 43 pessoas
feridas, enquanto em 2017 haviam sido registrados 37 ataques. Já o
número total de crimes relacionados a antissemitismo, não
necessariamente violentos, chegou a 1.646 em 2018 – 9,4% a mais do
que no ano anterior [...] Uma pesquisa divulgada no final de 2018
pela Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA, na
sigla em inglês) – o maior levantamento já realizado sobre
antissemitismo no continente – afirma que o discurso de ódio e
casos de abuso estariam se tornando algo cada vez mais normal, assim
como o medo entre os judeus de serem reconhecidos publicamente como
tal. [...] Segundo o estudo da FRA, 90% dos judeus entrevistados
disseram sentir um aumento do antissemitismo em seus países,
enquanto 30% afirmaram que já foram alvo de ofensas. Um terço das
pessoas evita ir a eventos ou locais judaicos temendo por sua
segurança. A mesma proporção de pessoas afirma que considera
emigrar para outros países.”
Informações
da Deutsche Welle.
A
Adriana Dias, pesquisadora da UNICAMP, cartografou mais de 300
células neonazistas no Brasil, grande parte delas no Rio de Janeiro.
A
Alemanha é um caso que me chama particularmente a atenção. Como
pode um país que se vende como pilar da tolerância abraçar um
partido como a AfD, que nem sob o melhor malabarismo intelectual pode
ser classificado de outra coisa que não neofascista? Essa é outra
questão que me intriga. O caso do Brasil também é intrigante. Não
temos um antissemitismo histórico tão forte quanto os Estados
Unidos ou a Europa, mas, como eu falo no ensaio, temos um
antissemitismo velado, quieto, um mal-estar em relação aos
brasileiros descendentes de judeus e de árabes. Um desconforto que,
para virar de fato violência física, basta um empurrão. E, para
mim, Roberto Alvim foi a ruptura que mostrou que esse empurrão pode
estar mais próximo do que se pensa. Desde o ano passado tivemos
pessoas usando suásticas em público, carros riscados com suástica,
judeus usando quipá sendo fisicamente agredidos. Claro que não são
casos tão frequentes quanto nos outros países que eu citei, ou
quanto agressões a outras minorias. Mas existem. E podem se
intensificar se nada for feito. A Adriana Dias, pesquisadora da
UNICAMP, cartografou mais de 300 células neonazistas no Brasil,
grande parte delas no Rio de Janeiro. Venho lendo aos poucos a tese
dela e é um trabalho incrível. É comum encontrar suásticas
pichadas quando se passa pela Baixada Fluminense, por exemplo.
Gianguido Bonfanti, s/ título, nanquim, 53 x 69cm, 15/11/1979.
Desde
2019, além das artes e da cultura, o conhecimento, a ciência e a
Universidade pública passaram a ser atacados no Brasil, de uma forma
sem precedentes no período pós-redemocratização. Se por um lado é
flagrante a falta de fundamento dos ataques à Universidade pública
brasileira, uma vez que esta é responsável pela maior parte da
pesquisa desenvolvida em nosso país, como pode a Universidade
reforçar os laços com a população e a sociedade, para se
fortalecer institucionalmente e para que seja reforçada a
consciência da sua importância para o desenvolvimento do país?
O
que eu mais queria era ter a resposta dessa pergunta. Não a tendo,
eu gostaria de, pelo menos, fazer uma defesa da categoria acadêmica.
Vejo com frequência ataques infundados de que a academia se fechou
em seu palácio de cristal, evitando o diálogo com a população. Eu
não vejo assim, na verdade eu vejo justamente o contrário. A
academia, principalmente as gerações e programas mais novos, sempre
buscaram um diálogo. Eu acho que culpar a academia por isso é
culpar a vítima e isentar o perpetrador. O que precisa ser
considerado é que movimentos fascistas são anti-intelectuais por
natureza. Em alguns casos, como o nazismo, aceitam uma
intelectualidade limitada e unilateral; em outros, como no
bolsonarismo, não há espaço para qualquer intelectualidade. O
bolsonarismo despreza qualquer arte porque ele é a expressão máxima
da mediocridade do brasileiro comum, que também despreza qualquer
arte. Da mesma forma, o nazismo desprezava a “arte degenerada”
porque o alemão médio em 1930 não entendia a arte moderna e, em
certos aspectos, a temia. Em outras palavras, o fascismo é a visão
do homem-médio potencializada e elevada a razão de Estado.
Assim
sendo, e não estou dizendo que não é importante buscar o diálogo
com a população, é imprescindível esse diálogo, mas independente
disso qualquer movimento de massa vai criminalizar algum aspecto da
arte, simplesmente porque o fascismo é necessariamente maniqueísta
e precisa de inimigos objetivos para se disseminar, já que ele se
baseia no medo. Como eu falo no ensaio que você citou, se para o
fascismo música é rock, então qualquer outra expressão musical
será degenerada. Se para o fascismo nenhuma arte é necessária,
então a arte em si própria será degenerada. Como o é aqui. Por
outro lado, apenas uma minoria dessa fatia, desses famosos 30%, é
fascista/autoritária, então há, sim, possibilidade de diálogo
mesmo com parcelas desse grupo.
Longe
de ser nacionalista, mas nós temos uma produção científica,
ensaística e artística incrível que está entre as melhores do
mundo. E quem disser o contrário ou não conhece a produção
brasileira e a subestima ou não conhece a produção estrangeira e a
superestima. Agora, como fazer com que a população tome ciência
dessa produção? Não sei. Gostaria de saber. Vejo discentes
tentando promover iniciativas em redes sociais e, antes da pandemia,
barracas semelhantes aquelas do “vira-voto” no segundo turno de
2018, talvez sejam formas, mas possuem alcance limitado. Talvez uma
possibilidade seja incentivar pesquisas que tenham um impacto social
para além de apenas ampliar o estado da arte (não que esse segundo
ponto também não seja essencial). Ou talvez trabalhar uma linguagem
menos complexa tanto na arte quanto nas humanidades, que permita um
maior diálogo com as pessoas, algo no estilo brechtiano. Ou talvez o
caminho não seja nada disso, não sei. Tanto mais, complica bastante
a imensa carga de pesquisa e trabalho que as universidades exigem dos
discentes e docentes, que muitas vezes trabalham sem bolsa ou por
pouco mais do que um salário mínimo. Sobra trabalho, falta tempo. E
é impressionante que mesmo nessas condições a gente tenha
trabalhos tão incríveis.
Independentemente
de suas leituras relacionadas aos projetos acadêmicos, qual foi a
última leitura de obra literária que você recomendaria aos
leitores do Búfalo Celeste e por quais razões.
Olha,
com essa pergunta eu acabei de reparar que até minhas leituras de
ficção têm sido bastante relacionadas a política. No início
desse ano descobri Philip Roth e passei grande parte do ano com ele.
Li Complô contra a América e Casei com um comunista.
Roth é magistral na arte de explicar a política através da ficção,
seu retrato do fascismo no primeiro livro e do macarthismo no segundo
são bem fiéis. Também li A
barata, novela nova do Ian McEwan, autor contemporâneo
que acompanho há anos, uma interessante sátira política absurdista
do Brexit; e A criança no tempo, também dele, no início do
ano. Tenho certa dificuldade hoje em dia em dissociar as leituras
relacionadas a projetos com leituras independentes, porque elas se
misturam. Por fim, que ficou marcado na memória, li também esse ano
A nova ordem, livro novo do Bernardo Kucinski (inclusive sairá
uma entrevista que fiz com ele em breve); e reli Luz em agosto,
de William Faulkner. Recomendo todos.
No
momento estou lendo Inferno, de Patrícia Melo, uma autora que
admiro como literata e como pessoa e que também entrevistei
recentemente, ainda a ser publicado; uma coletânea da Penguin de
contos holandeses; e
Sylvia
não sabe dançar, uma novela sobre a minha bisavó, Sylvia
Seraphim Thibau, meu objeto de estudo no vindouro doutorado em
literatura, poetisa e escritora, assassina de Roberto Rodrigues,
irmão do Nelson Rodrigues. Estou ansioso para ler O som e a
fúria, tenho particular apreço por Faulkner, mas ainda não
consegui tempo. Provavelmente o farei durante o verão. Mas se eu
tivesse de escolher uma obra para recomendar, imagino que
provavelmente escolheria Pais e filhos [obra resenhada pelo
Búfalo Celeste], de Turguêniev. Já tem mais de uma década que
li, mas poucos livros me impressionaram tanto. Imagina o impacto de
um personagem como Bazarov em um adolescente de 17 anos. Fausto,
de Goethe e Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo com
certeza também seriam boas escolhas.
Sérgio Schargel, aula como Professor-convidado, na UNIPAMPA.
____________________
Imagens
Gianguido
Bonfanti, s/ título, gravura, água-forte e ponta seca sobre papel, 50 x 60cm, edição de 30, 1980.
Gianguido
Bonfanti, s/ título, gravura, água-forte e ponta seca sobre papel, 43 x 52 cm, edição de 30, 1979.
Fonte
das imagens: imagens gentilmente cedidas pelo próprio artista.
Ludwig
van Beethoven (Bonn, Nordrhein-Westfalen, Eleitorado de Colônia
[atual Alemanha], 17/12/1770 - Viena, Império Austríaco, 26 de
março de 1827}, Sinfonia n. 7 em lá maior, segundo
movimento, “Allegretto", op. 92, regenteLeonard
Bernstein, Filarmônica de Viena.
A
Sinfonia n° 7 foi
composta
entre 1811 e 1812 e estreou em 8 de dezembro de 1813, na Universidade de Viena, sob a regência do próprio compositor.
O
pesquisador e escritor responde ao blog – Parte I
Gianguido
Bonfanti, s/ título, óleo sobre tela, 105 x 110cm, 10/8/2006.
O
incansável carioca Sérgio Schargel é escritor, dramaturgo e
ensaísta e já publicou em coletâneas e revistas, mas
majoritariamente em veículos digitais. Entre seus
trabalhos como artista, podem ser citados: poema “BraZil” na “Valittera –
Revista literária dos acadêmicos de Letras”, adaptado para uma
peça; “Fear”, na “mallarmagens – Revista de poesia e arte
contemporânea”. Escreveu também a peça “Dissenso” e uma
outra peça está para ser publicada no periódico “Água Viva”,
da UnB. Vale citar ainda um ensaio para a revista “Ribanceira”
que pode ser entendido, em verdade, como um diálogo entre todas as áreas em
que atua: academia, jornalismo e arte.
Além de algumas peças de
prosa e verso menores, Schargel desenvolve, em paralelo, dois
projetos artísticos maiores: o roteiro da primeira montagem
brasileira da obra Não vai acontecer aqui, de Sinclair Lewis,
e um romance, os quais devem ser lançados até 2022. Um outro
projeto de Schargel em pauta é o roteiro de um monólogo de e sobre
Sylvia Seraphim Thibau, poeta e jornalista, sua bisavó, assassina de
Roberto Rodrigues, irmão de Nélson Rodrigues; com esse roteiro,
Schargel pretende trazer novamente à luz a figura de Sylvia Thibau,
que sofreu um apagamento histórico em função de seu crime.
Como
jornalista, além de um ensaio no jornal digital “Nexo”, Schargel
vem realizando diversas traduções freelancers de opeds
para alguns veículos como “El País”, “Le Monde” e,
principalmente, a “Folha de S.Paulo”, na qual publicou cerca de
cinco traduções. Também faz clipping, escreve newsletters
e cuida do sítio eletrônico de um instituto de pesquisa, entre
outros trabalhos menores. Publicou uma reportagem em uma revista
internacional, “HanzeMag”, há alguns anos, que Schargel
considera o seu trabalho jornalístico preferido, uma vez que a
metodologia de investigação foi próxima daquela aplicável a uma pesquisa
acadêmica.
Schargel
atualmente é mestrando em Literatura pela PUC-Rio e mestrando em
Ciência Política pela UNIRIO. É Bacharel em Comunicação Social,
Jornalismo e Comunicação Social, Publicidade e Propaganda, ambas
pela PUC-Rio.
Sua
pesquisa e sua produção artística estão dirigidas à relação
entre literatura e política, tangenciando temas amplos como
fascismo, autoritarismo, populismo, pós-memória, antissemitismo,
integralismo e ditadura militar. Schargel também apresentou
trabalhos em eventos como Mostra Bosque, CLAEC, Póscom, entre
outros.
*
Na
primeira parte da entrevista ao Búfalo Celeste, Sérgio
Schargel fala sobre a trajetória intelectual que o levou à Ciência
Política e à Literatura, sobre a indústria cultural hoje, trata da
cultura na nova realidade do mundo virtual e da autonomia da arte e da
arte engajada.
Como
e por que você se encaminhou para a área de Literatura?
A
verdade é que literatura sempre foi minha grande paixão, minha
grande área de estudo. Mesmo em épocas em que eu pouco lia em
termos teóricos, como no início da graduação, nunca me afastei da
ficção. Devo isso aos meus pais, que me colocaram em contato com a
literatura desde criança. Aliás, existe uma matéria da revista
“ISTOÉ”, de 2001, com uma entrevista comigo de quando eu tinha oito
anos, tratando, desde aquela época, da importância da
literatura em minha vida. Curiosamente, apesar de ter sido aprovado
para Letras, optei por fazer graduação em jornalismo. Sempre tive
em mente que queria escrever ficção, mas dez anos atrás, quando
entrei na graduação, não conseguia me imaginar como acadêmico e
muito menos como professor escolar.
Acho
que eu ainda tinha certa visão romântica do jornalismo e sonhava em
trabalhar em uma redação enquanto escrevia, em paralelo, romances.
Não demorou muito e fui contemplado com a realidade: trabalhos
atualizando planilhas e mexendo em redes sociais, o oposto do que eu
sonhava. Todavia, não me arrependo da graduação: graças a ela
consegui um emprego em um instituto de pesquisa em ciência política
que me ajudou muito em diversos aspectos, como contatos com grandes
pesquisadores, conhecimento mais aprofundado sobre política,
motivação para consumir e produzir e, claro, um salário. Esse
trabalho foi essencial no desenvolvimento da minha segunda área de
interesse, a ciência política, mas vou chegar lá.
Antes
da ciência política, eu criei e mantive, por pelo menos três anos,
uma empresa de eventos. Ela até funcionava bem, era inovadora e
provavelmente teria futuro se eu investisse nela, chegou até a ser
finalista no “Shell LiveWire”, um evento de fomento ao
empreendedorismo. Mas esse era um trabalho que eu realmente fazia sem
nenhum prazer: não havia nenhum retorno intelectual e, por ser
focado em pub crawls, isto é, tours por bares para
turistas, eu tinha que aturar estrangeiros bêbados que tinham em
geral uma visão bem estereotipada da noite carioca. Em outras
palavras, tive que lidar com clientes que assediaram, brigaram e até
roubaram. Há tantas histórias bizarras dessa época. Algumas
engraçadas, outras apenas horríveis. Lembro-me em particular de uma
vez em que um indivíduo, acho que era do Texas, pediu em casamento
uma moça que conhecera havia trinta minutos. Tecnicamente a empresa
ainda existe, mas espero não ter que voltar a ela nunca mais. Eu
detestava aquele trabalho, mesmo porque nunca fui bom em lidar com
pessoas.
Quando
escrevi minha primeira monografia, na verdade desde um pouco antes,
nas aulas de metodologia, percebi que não gostava apenas de ler
romances, mas de pesquisar sobre romances. Mais do que isso, que
gostava de pesquisar. Era um trabalho que me dava prazer de fato, que
eu não tratava como trabalho, bem diferente dos demais. Então não
demorou muito pra que eu decidisse que a academia era realmente o que
eu precisava. Em 2018, apliquei-me e entrei no mestrado na PUC.
O
meu interesse na política parece ser consequência justamente da
fragilização democrática que vivemos desde 2013.
Nesse
sentido, a literatura veio antes, a política depois. Curiosamente, o
meu interesse na política parece ser consequência justamente da
fragilização democrática que vivemos desde 2013. Quando o Brasil
era estável, economicamente, politicamente e socialmente, meu
interesse por política era irrisório. Mas após as contestações e
o processo de impeachment de Dilma Roussef, começo pouco a pouco a
me interessar. Acho que adveio de uma curiosidade natural de entender
aquele processo que parecia, à primeira vista, tão aberrante. Com
as eleições de 2018 meu interesse se intensifica, ao ponto de que
hoje prefiro estudar teoria política a teoria literária, embora,
para mim, nada supere a ficção. Novamente, o interesse cresceu com
a curiosidade: eu queria compreender por que uma pessoa tão
desprezível havia sido eleita. Mais do que isso, eu queria entender
se realmente fazia sentido chamá-lo de fascista, como via muitos o
chamando.
Mesmo
pouco entendendo de política em 2014, devo dizer que me lembro,
naquela época, de conversar com meu pai e prever que um Bolsonaro ou
um Feliciano acabaria sendo eleito presidente em algum momento. Podia
não ter conhecimento aprofundado em política, mas nunca subestimei
a ingenuidade das pessoas. Ingenuidade é, obviamente, um eufemismo.
Gianguido
Bonfanti, s/ título, óleo sobre tela, 105 x 110cm, 25/7/2006.
O
seu artigo “A manhã renascer esbanjando poesia: o papel da arte na
luta contra o ur-fascismo e o anti-intelectualismo” (Dignidade
re-vista, v. 4, n° 7, julho de 2019) trata enfaticamente do poder
emancipador da arte; a despeito disso, como abordar a ação
alienante da indústria cultural, na forma desenvolvida por Adorno e
Horkheimer, da qual resultam objetos culturais que são simulacros de
arte e, por sua própria natureza massificada, têm um peso
desproporcional no espaço simbólico social e nas consciências dos
indivíduos?
É
uma grande aporia: se, por um lado, qualquer forma de arte é válida,
por mais massificada que seja, por outro não é toda arte que cria
pensamento crítico. Mas mesmo a arte mais massificada, como, por
exemplo, um filme como “Transformers”,
pode ser útil em certos aspectos.
Eu
vejo com frequência as pessoas, inclusive dentro da academia,
tratando a arte, em particular a literatura, como se os livros fossem
objetos mágicos e que por si só o ato de ler algo, por pior que o
livro seja, já fosse o suficiente para revolucionar o mundo. Nesse
sentido, mesmo os livros mais massificados seriam úteis porque
qualquer leitura seria válida. Eu rejeito esse pensamento. Livros (e
qualquer forma de arte, mas vejo muito isso na literatura, talvez por
ser mais o meu campo) não são objetos mágicos, mas uma metodologia
para que uma pessoa expresse os seus pensamentos. Em outras palavras,
e entendendo ideologia numa visão de Robert Dahl, como o conjunto de
crenças de cada indivíduo e, nesse sentido, onipresente inclusive
na arte e na ciência, um livro é uma forma de o autor exprimir a
sua ideologia. Isso é bastante notável, por exemplo, na literatura
distópica. Autores conservadores escrevem sobre futuros arruinados
por liberais, liberais escrevem sobre futuros arruinados sobre
conservadores.
Quando Obama foi eleito nos Estados Unidos, Atlas
Shrugged [livro de ficção da estadunidense de origem russa Ayn
Rand, publicado em 1957, e lançado no Brasil com o título de A
revolta de Atlas]retornou à lista de mais vendidos;
quando Trump foi eleito, foi a vez de 1984 [romance
do escritor britânico George
Orwell, publicado em 1949] voltar a ser um best seller. Em
outras palavras, um livro é um recipiente de ideias e o leitor, ao
lê-lo, forma diálogos com o autor. Nesse sentido, é uma
oportunidade de conversa com alguns dos maiores pensadores da
história da humanidade. E não há como equiparar a oportunidade que
temos de dialogar com um Burke, um Adam Smith, um Stendhal ou um Karl
Max, com um diálogo com um autor de auto-ajuda. Não dá pra
comparar a troca de experiências com pessoas que estudaram a vida
inteira para produzir um magnus
opus com um livro de auto-ajuda pseudocientífico que diz que é
possível reprogramar sua estrutura molecular para atingir o DNA da
riqueza.
Fico
em um meio termo entre a fobia da cultura de massa que Adorno tinha e
a completa relativização das fronteiras entre literatura de
entretenimento e alta cultura.
Isso
não significa, porém, que a literatura de entretenimento não
possua valor e deva ser atacada ou descartada, em absoluto. Acho que
há, sim, uma hierarquia entre cultura de massa e alta cultura, e eu
serei bastante criticado pela minha orientadora e por
professores/colegas por dizer isso, caso algum dia eles leiam essa
entrevista, mas sempre enxerguei dessa forma, talvez conservadora.
Acho que fico em um meio termo entre a fobia da cultura de massa que
Adorno tinha e a completa relativização das fronteiras entre
literatura de entretenimento e alta cultura.
A
arte de entretenimento é eficaz no que se propõe: entreter. Ainda
não somos máquinas e quase todo ser humano precisa de algum
entretenimento em sua vida, especialmente quando somos privados de
alternativas reais, como agora com a pandemia. Como, então, negar a
importância de uma peça de arte que nos relaxe sem causar uma
catarse ou influência significativa nos nossos pensamentos? Mais do
que isso, como exigir de um brasileiro médio, em um país desigual
como o nosso, que abra mão do seu “Transformers” para assistir
“Melancholia”?
Ademais,
às vezes a arte de entretenimento pode servir como ponte para outras
artes. Ninguém nasce lendo Goethe. Mesmo a literatura de auto-ajuda
- e deus sabe como eu odeio essa indústria do coach e da
felicidade -, pode ser útil a alguém. A indústria cultural não é
a doença, mas um sintoma. Um sintoma de uma “sociedade enjaulada”,
para usar um termo de um professor meu, Rob Riemen, ou “sociedade
cansada”, para usar um sinônimo de um autor na moda agora, o
Byung-Chul Han. Agora, essa sociedade enjaulada é o alimento
perfeito para um movimento fascista se alimentar, quando aliado a
outros fatores, e isso é algo que o próprio Adorno já tinha
percebido ainda em 1950. Porque somos tão vazios, tão cansados, tão
cheios de medo, ressentimento, frustração, tristeza, que precisamos
preencher esse vácuo desesperadamente com qualquer coisa: drogas,
sexo, entretenimento.
Precisamos estar felizes o tempo inteiro, não
há espaço para a tristeza. Huxley já tinha visualizado isso em
Admirável mundo novo [romance distópico, publicado em
1932], e diz logo no início do livro “reivindico o direito de
ser infeliz”. Agora, quando há uma crise econômica e esse vazio
não pode mais ser mais preenchido, quando somos forçados a
contemplá-lo dentro de nós, o medo se transforma em raiva, em ódio.
O
romance surge como uma forma de arte menor. O entretenimento é a
origem do próprio romance. Só depois ele adquire o seu caráter
intelectualizado e filosófico.
Agora,
como minha querida orientadora Vera Lúcia Follain de Figueiredo
afirma em seu livro Os crimes do texto – Rubem Fonseca e
a ficção contemporânea [Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003],
muitas vezes essa fronteira entre arte de entretenimento e alta arte
são irreconhecíveis. Ela usa o caso do Rubem Fonseca, por exemplo,
um autor que dialoga com os dois mundos. E a visão do que é alta e
baixa cultura muda com o tempo. O romance, por exemplo, surge como
uma forma de arte menor. O entretenimento é a origem do próprio
romance. Só depois ele adquire o seu caráter intelectualizado e
filosófico.
A nossa compreensão do que é alta e baixa cultura se
relaciona diretamente com o cânone. Obras que hoje são canônicas e
estudadas por qualquer literato, nem que seja para criticá-las, como
Robinson Crusoé ou O conde de monte cristo, surgiram
como literatura de entretenimento. E a questão da reprodução
maciça também não se sustenta em análise, ao menos na literatura,
dado que obras canônicas e que certamente promovem uma reflexão,
como 1984, são best sellers com diversas edições.
Não
devemos ignorar ainda que o cânone, qualquer cânone, é arbitrário.
Ele segrega, exclui, escolhe. E é fruto da sua época, da ideologia
dominante. Então é comum termos grandes autores, alta literatura,
que foram esquecidos ou propositalmente ignorados pelo cânone. Isso
borra ainda mais as fronteiras entre alta e baixa literatura. Temos o
exemplo de grandes escritores negros que foram ignorados, porque o
cânone por muito tempo foi majoritariamente branco, ou escritoras
mulheres que sofreram o mesmo destino, então é válido questionar
uma noção subjetiva como o cânone.
Gianguido
Bonfanti, s/ título, óleo sobre tela, 140 x 170cm, 11/7/2006.
Ainda
a propósito da indústria cultural: com o mundo virtual e as redes
sociais, essa forma de produção massificada de objetos culturais
não ascendeu a uma outra escala exponencial muito além daquela
conhecida quando da formulação desse conceito, tornando ainda mais
estreito o espaço possível para uma arte emancipadora?
Na
verdade eu vejo um pouco como justamente o contrário. Não suporto
redes sociais e, sem dúvida, devemos muito da recessão democrática
global a elas, mas, nesse sentido, vejo a internet e as redes sociais
como benéficas. Graças às redes, há uma possibilidade muito maior
de que artistas iniciantes e marginais tenham seus trabalhos
consumidos e disseminados, ao passo que a grande indústria há anos
vem procurando, sem sucesso, conter a pirataria. Claro, por outro
lado, para ter visibilidade o pequeno artista acaba sendo absorvido
pela lógica do mercado, colocando sua arte no Spotify, Youtube,
DeviantArt, ou qualquer outra plataforma. Essas plataformas se
tornaram praticamente novos mecenas. É paradoxal, mas na era digital
é justamente graças a indústria cultural que as pequenas artes, os
pequenos vaga-lumes, acabam encontrando espaço.
Temos
diversos exemplos, mas vou usar com o qual eu tenho trabalhado:
“Teocrasília”, de Dênis de Melo. “Teocrasília” é uma HQ
que imagina uma distopia em um futuro próximo em que, como o título
já deixa óbvio, o Brasil “evoluiu” para um autoritarismo
teocrático de cunho neopentecostal. A primeira edição foi lançada
em livro em 2018. Todavia, Teocrasília só conseguiu ser lançado
graças ao financiamento coletivo através da plataforma Catarse, um
movimento que vem sendo bastante repetido ao redor do mundo. Então,
temos mais um exemplo de como a internet e as redes sociais auxiliam
muito na divulgação e disseminação da arte independente, que
encontraria muito mais dificuldade para sair do mundo das ideias sem
esses impulsionamentos. Desde o início da pandemia, em especial,
Dênis vem focando todo o seu trabalho em uma produção voltada para
o digital, dando prosseguimento à sua produção de uma forma que
antes seria impossível.
Na
sua visão, exposta em seu artigo citado, “[a arte] é, por sua
própria natureza, uma metodologia para a luta contra hegemonias,
para questionar injustiças e paradigmas”. Ao deslocar o fulcro da
arte para fora de sua autonomia, não há o risco de a arte ser
instrumentalizada e de se subordinar a sua existência a um
fundamento que lhe é estranho, pois se trata de outra área da
atividade humana, como a política, por exemplo? Foi o que aconteceu
nos totalitarismos do século XX, nos quais a arte perdeu a sua
autonomia e teve de servir aos fins do regime político de ocasião.
Apesar dessa experiência histórica negativa, desconsiderar a
autonomia da obra de arte não pode levá-la a um território a ela
estranho? A luta contra o obscurantismo, no campo da arte, não deve
se dar com os elementos intrínsecos próprios da arte, ou seja, o
lúdico e a liberdade humana nele inserida?
Acredito
que há certa ingenuidade no campo artístico e acadêmico em
sacralizar a arte no sentido de lhe conferir valor supremo, como se
ela estivesse deslocada de todas as outras áreas de conhecimento
humano. As áreas das humanidades, e a arte com todas elas, dialogam
de forma intrínseca entre si atualmente, as ciências humanas são
interdisciplinares por sua própria essência dialética. Isso não
implica, porém, que exista alguma forma de hierarquia entre elas, e
que elas não possuam sua própria autonomia.
A
questão com os regimes totalitários é que, justamente por serem
totalitários, eles atomizam todos os estratos da sociedade e
submetem qualquer pessoa cívica ou jurídica ao jugo do terror.
Praticamente não há arte autônoma no totalitarismo porque
praticamente não há autonomia no totalitarismo, até mesmo para os
membros da seita totalitária. Ainda assim, é importante lembrar
que, apesar do nome totalitarismo nos remeter a um controle absoluto,
os totalitarismos da realidade, mesmo que em níveis de violência e
controle inéditos, não eram completamente absolutos. Mesmo sob o
terror, ainda se criou alguma arte autônoma, clandestina,
aterrorizada, mas livre dentro do escopo do possível.
Agora,
diferente do totalitarismo, e isso é algo interessante, no
fascismo/autoritarismo é perceptível uma guerra pela arte. Como
vimos no caso de Roberto Alvim interpretando Goebbels naquela cena
grotesca, e também com as guerras culturais que vêm acontecendo na
Polônia, quando movimentos reacionários tomam o poder, eles
procuram capturar a arte para o seu lado. Mas, sem ser totalitários,
eles precisam transformar o próprio campo da arte em uma “guerra”,
na tentativa de criar uma “arte nacionalista/conservadora”, mas
sem poder impedir completamente a arte progressista, de outras
ideologias, ou mesmo que se queira apolítica (com a ciência de que
o apolítico não existe).
Em
outras palavras: muito da autonomia artística depende do regime em
que está inserida. Em poliarquias reais, democracias liberais
consolidadas, é imprescindível que a arte seja livre. Assim, embora
a arte não precise ser panfletária, é ingenuidade acreditar que
ela não é ferramenta política, independente de ser autônoma ou
não. Não é possível imaginar hoje arte completamente separada de
outros campos do saber humano, como que imaculada.
Sérgio Schargel
__________
Imagens
Gianguido
Bonfanti é amigo de Sérgio Schargel e foi este que indicou que as
obras deste artista plástico ilustrassem a postagem.
Bonfanti
(São Paulo, 1948) realiza a sua primeira exposição individual, “G.
Bonfanti”, em 1967, na Galeria do Centro Cultural Lume, no Rio de
Janeiro, com os desenhos produzidos durante a temporada em Roma.
Recebe, em 1975, o prêmio na categoria “Desenho” no 2° Concurso
Nacional de Artes Plásticas. Em 1978, começa a dar aulas de gravura
e fotogravura na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV).
Leciona gravura de 1980 até 1982 na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Conquista o prêmio na categoria Desenho
do 5º Salão Carioca de Arte do Rio de Janeiro com seus pastéis
secos. Leciona, entre 1983 e 1985, desenho de modelo vivo e pintura
no Museu de Arte Moderna (MAM), Rio de Janeiro. Leciona desenho e
pintura, entre 1986 e 1987, na Faculdade da Cidade do Rio de Janeiro.
O marchand Thomas Cohn organiza em sua galeria, Thomas Cohn Arte
Contemporânea, em 1988, uma mostra individual de suas pinturas
geométricas: “Bonfanti”. Obras de sua fase abstrata são
organizadas por Paulo Figueiredo, na Paulo Figueiredo Galeria de
Arte, em 1991, em São Paulo, na exposição “Bonfanti”. Uma
grande individual é organizada, em 1996, no Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro. A Anita Schwartz Galeria, na Barra da Tijuca, Rio de
Janeiro, é inaugurada com uma exposição individual: “Bonfanti”.
No mesmo ano, o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro
organiza outra mostra com telas e bicos-de-pena. Exposição
individual na Galerie Le Troisième Œil, em Paris, em setembro de
2005. Em 2004, o Museu de Arte Metropolitano de Curitiba (PR)
organiza uma mostra individual com trinta trabalhos: “Gianguido
Bonfanti”. O artista inaugura a exposição “Bonfanti, peintures
et dessins”, em 2006, na Galerie Le Troisième Œil, Bordeaux
(França). Em comemoração aos seus quarenta anos de trabalho, é
organizada uma mostra retrospectiva, em 2007, que ocupa todo o
primeiro andar do Paço Imperial, no Rio de Janeiro.
Fonte:
https://www.gianguidobonfanti.com/cronologia
(Consultada
em 28/9/2020).
Fonte
das imagens: imagens gentilmente cedidas pelo próprio artista.
__________
Ludwig
van Beethoven (Bonn, Nordrhein-Westfalen, Eleitorado de Colônia
[atual Alemanha], 17/12/1770 - Viena, Império Austríaco, 26 de
março de 1827}, “Ode
à alegria”,quarto
movimento, “Allegro
assai”,
da Sinfonia n°
9, em ré menor, op. 125, regenteLeonard
Bernstein, Filarmônica de Viena.
A
Sinfonia n°
9 foi
composta
entre 1818 e 1824 e estreou em 7 de maio de 1824, no
Kärntnertortheater, em Viena.
A
peça musical foi escolhida por Sérgio Schargel.
O
ano de 2020 é a efeméride de 250 anos do nascimento do compositor
alemão.