sábado, 23 de março de 2019


Editora Kalinka

Entrevista com Daniela Mountian - Parte I



             El Lissitzky, "História suprematista de dois quadrados em seis construções"


A editora Kalinka completou dez anos de existência em 2018, cumprindo um papel especial no mercado editorial, pois dedica seu catálogo à publicação de escritores da literatura russa. Não bastasse isso, a editora privilegia autores pouco conhecidos do público brasileiro. Com essa linha, a Kalinka demonstra o importante papel que uma Editora pode desempenhar no panorama de um país, alargando as fronteiras de conhecimento de uma literatura que já conta, no Brasil, com um público fiel e interessado na riquíssima tradição literária desse país.
Daniela Mountian e seu pai, Moissei Mountian, são os fundadores da editora. Daniela, pós-doutoranda em teoria literária e literatura comparada – FAPESP/USP, conversou com o blog. A entrevista contou também com o apoio do jornalista Reginaldo Cruz.
Nessa primeira parte, ela fala sobre a trajetória de seus pais, a sua relação com a língua e cultura russas, como surgiu a ideia de criação da editora, comenta um dos pontos altos na trajetória da Kalinka, que foi a publicação do livro Salmo, de Friedrich Gorenstein, faz considerações sobre as razões da forte presença da literatura russa no Brasil e, finalmente, trata da importância de Boris Schnaiderman para a divulgação dessa literatura em nosso país.
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Búfalo Celeste – Como surgiu a ideia da editora?
Daniela – Obrigada pelo convite, pelo bate-papo. Meu pai realmente tem a ver com isso porque minha família, meu pai e minha mãe são da Moldávia, que fazia parte da União Soviética e hoje é um país independente.
Búfalo Celeste – A Moldávia tem uma língua própria?
Daniela – Hoje tem, mas eles vieram para cá em 1972, eles já vieram casados, já vieram formados, digamos. Então eles estudaram na língua russa.
Minha vida tomou vários rumos antes de eu chegar à Kalinka, não foi uma coisa de família; foi quase casual, eu diria. Eu terminei a faculdade de História e já trabalhava com design, trabalhava também com revisão e preparação de texto e fui convidada por um amigo para abrir uma editora, e aí meu pai sugeriu: “vocês querem um bom título? Eis aqui”. Eu nunca tinha ouvido falar de Fiódor Sologub, o autor simbolista russo, desconhecido aqui, mas muito conhecido na Rússia. Eu já conhecia um pouco de literatura russa, mas não muito.
Búfalo Celeste – Você é falante nativa de russo?
Daniela – Meus avós falavam em russo, mas meus pais falavam com a gente em português. Então, foi a partir desse romance que minha vida deu uma guinada; aí, sim, fui me alfabetizar e comecei a ir para a Rússia.
O projeto do romance do Sologub começou em 2005, com a tradução. A vida se enveredou, assim, para esse lugar e comecei a conhecer as pessoas da área, fazer cursos, o meu pai começou a se envolver muito, começou a traduzir e aí resolvi que seria, de fato, uma editora de livros russos e nunca mais parei.
Búfalo Celeste – Foi de uma forma peculiar então?
Daniela – Sim, foi. E acabei indo para Rússia, encontrei lá familiares que eu não teria encontrado se não fosse por todo esse processo, porque, ao mesmo tempo que foi criada a editora, que começou antes, eu iniciei carreira acadêmica, para me dar um suporte, porque eu não era da área.

"O diabo mesquinho, de Fiódor Sologub,  é um livro-chave da virada do século XIX para o XX e quem trouxe foi meu pai."


Búfalo Celeste – Seu pai já tinha essa paixão por literatura?
Daniela – Meu pai sempre leu muito, como toda a geração dele na Rússia. Eles leem muito. Meu pai lê muito até hoje. Então, ele tem todo esse arsenal, tanto é que boa parte dos títulos é uma escolha dele. O Sologub, por exemplo, ninguém estudava aqui, era totalmente desconhecido. O diabo mesquinho é um livro-chave da virada do século XIX para o XX e quem trouxe foi meu pai. Eu li e falei “nossa, isso é um negócio importante” e acabei estudando esse livro no mestrado que abriu várias portas para mim. E outros livros também, meu pai que traz; por exemplo, Leonid Dobýtchin, um autor modernista russo, é nosso segundo livro e também um escritor pouquíssimo conhecido aqui. Ele tem uma linguagem super radical e vanguardista e hoje é um autor bem respeitado na Rússia. Eu também escolho autores, mas meu pai é realmente uma peça fundamental, digamos que ele é a consciência da editora.
Búfalo Celeste – O que significa Kalinka?
Daniela – Kalinka é o nome de uma música folclórica russa, do século XIX. E é o nome de uma árvore também, uma pequena planta com uma frutinha vermelha. Kalinka é o diminutivo de Kalina.
Búfalo Celeste – Foi ousada essa proposta de criar uma editora, voltada exclusivamente para a literatura russa e, mais ainda, com autores pouco conhecidos.
Daniela – Realmente, nossa linha editorial é literatura russa, séculos XX e XXI, sobretudo de autores pouco conhecidos. Nem sempre eu vou conseguir fazer isso, mas eu acho que 99% de nosso catálogo é voltado para essa proposta. Eu e meu pai temos uma paixão, que é a literatura das vanguardas russas e do modernismo, dos anos 10, 20, até 30 do século XX. A ideia seria fazer uma coleção de contos russos modernos; publicamos dois títulos, mas pode vir mais coisa aí. Tem uma lista enorme de autores, mas também começamos a ir para os contemporâneos, por exemplo o Friedrich Gorenstein.
Búfalo Celeste – É justamente esse autor que chama atenção nas publicações da Kalinka, pois também foi bem ousada a publicação de Salmo: romance-meditação sobre os quatro flagelos do Senhor [Kalinka, 2017], não só pelo tamanho do livro, que tem uma tradução custosa, mas também pela sua complexidade.
Daniela – Sim, foi trabalhoso.

"Salmo é um livro fortíssimo, polêmico."


Búfalo Celeste – Conte um pouco sobre o projeto dessa publicação, quanto tempo demorou a tradução? Foi conjunta com o Irineu [Franco Perpétuo]?
Daniela – É, meu pai convidou o Irineu para fazer a tradução, eu trabalhei como editora. Mas foi bem difícil, porque você viu quantas citações bíblicas aparecem e meu pai fez uma coisa que não tem em nenhuma edição do livro: ele localizou citação por citação, está tudo na edição. Então, foi um processo longo, porque teve uma parte que meu pai fez, uma parte que Irineu fez e eu mesmo demorei muito para editar esse livro. Foram várias revisões e aposto que ainda faria outras, mas tem uma hora que o livro precisa nascer. É um livro fortíssimo, polêmico.
Búfalo Celeste – É uma das principais publicações dos últimos anos, na minha visão, juntamente com o Vasily Grossman, Vida e Destino.
Daniela – Isso também foi uma escolha de meu pai, porque o Gorenstein não é nada conhecido, nem na Rússia. Ele é conhecido como roteirista, não só do Tarkóvsky, mas de outros diretores russos. Ele foi para a Alemanha e só começou mesmo a ser publicado na Rússia depois do fim da União Soviética. Ele é um autor cultuado pela intelectualidade, mas não é tão lido nem conhecido, porque é um autor difícil. É um tema complexo o de Salmo e é um tema que fala muito sobre o nacionalismo russo também. Então, obviamente que ali há polêmicas. Mas tem muita beleza nesse livro, porque o que ele fez, a atualização que ele fez da Bíblia, essa poética que ele criou é, para mim, algo inédito. É um livro totalmente imagético. Você vê que ele é um grande roteirista, porque a gente vê o livro. É impressionante. Quem gosta de Tarkóvsky tem aí muita coisa, porque lembra muito a linguagem dele.
Búfalo Celeste – Na sua opinião, a recepção da publicação do Friedrich Gorenstein foi à altura da importância do livro?
Daniela – Quando você trabalha com autores contemporâneos é normal isso. Eu acho até que teve mais repercussão do que muitos autores. Digo contemporâneos, Gorenstein morreu em 2002. Então, para um autor que morreu há pouco tempo, que é desconhecido, eu acho até que a recepção foi boa e isso não é um problema para a gente. Porque com uma editora, trabalhando com autores desconhecidos, você não tem que esperar algo diferente. Acho que a gente consegue até um pouco mais de visibilidade do que eu imaginava, porque nosso trabalho é super artesanal. Agora estamos trabalhando com a editora Hedra, mas até há dois anos basicamente tudo era feito na minha casa; com a nova parceria, continuamos cuidando pessoalmente de várias partes do livro. Então a gente tem esse processo e, na verdade, a gente gosta disso. Eu, pessoalmente, estou me dedicando ao meu pós-doutorado e a Kalinka continua sob os cuidados da Hedra e de meu pai.

          El Lissitzky, "História suprematista de dois quadrados em seis construções"
  
Búfalo Celeste – Vocês têm algum incentivo institucional da Rússia?
Daniela – Temos. A Rússia oferece uma relação de intercâmbio por meio da qual financia traduções. Então, você se inscreve num concurso e, se for contemplado, eles pagam a tradução; assim, recebemos, já há algum tempo, recursos do Instituto de Tradução, que fica em Moscou, e eles ajudam bastante. E agora com a Hedra teremos uma estrutura um pouco melhor, porque é quase impossível cuidar da parte comercial, venda, distribuição. Então, aqui, eles ajudam muito nisso.
Búfalo Celeste – Como é que vocês lidaram, justamente, com essa parte, que é complexa, a parte comercial, distribuição etc?
Daniela – Tinha uma funcionária que me ajudava, que agora está aqui [na Hedra]. Antes, uma distribuidora passava os livros para a Livraria Cultura, para a Martins Fontes, e eu cuidava das livrarias menores. Agora, dessa parte comercial, quem cuida é a Hedra. Então a gente faz, digamos, edições conjuntas. A Kalinka continua uma empresa independente, com liberdade de escolha dos títulos, mas  agora pode contar com a estrutura da Hedra, que ajuda muito. Isso vai possibilitar que a gente continue, porque, realmente, de outra forma, seria um pouco difícil
Búfalo Celeste – Gostaria de comentar sobre essa peculiaridade da presença da literatura russa no Brasil. Sempre houve publicação aqui de autores russos, mas houve uma forte retomada depois das traduções a partir do original russo.
É claro que há a qualidade óbvia da literatura russa, mas há um contraste entre o tamanho da comunidade russa no Brasil, que é pequena, e, no entanto, a literatura russa tem penetração mais do que proporcional no nosso mercado editorial. Como você explica isso?
Daniela – Para falar a verdade isso não é um fenômeno que acontece só aqui. Eu acho que a literatura russa se tornou algo obrigatório, o que não era. Então, quando ela começou a surgir, a ser descoberta pelos europeus, o que não faz tanto tempo, se você for pensar bem, porque a literatura russa moderna também é recente. Se você pegar o fim do século XIX, eles eram uma literatura considerada exótica, tirando Turguêniev e outros. E, de repente, a literatura russa, de umas décadas para cá, ela ganha esse espaço e se torna mais uma leitura obrigatória, virou um clássico.
Búfalo Celeste – Houve até um espanto na Europa ocidental, quando chegaram aqueles autores hoje clássicos, ao passo que a Rússia era considerada um país atrasado.
Daniela – Era considerada atrasada, e o Dostoiévski não era considerado um gênio. Houve vários motivos para a gente chegar até aqui, vários booms, vários processos, ondas, e eu concordo com você que, de uns anos para cá, no Brasil, houve uma redescoberta; a gente pode pensar, como ponto de redescoberta, o momento em que saiu a tradução, pelo Paulo Bezerra, do Crime e castigo, que foi realmente um grande impacto. Eu posso dizer que foi um best seller isso.
E, de lá para cá, o que eu achei mais interessante é essa busca por novos nomes. Quando eu criei a Kalinka com meu pai, a gente sentiu falta de um espaço para nomes menos conhecidos, porque basicamente era Tolstói, Dostoiévski, a coisa não saia muito disso. Mas as editoras precisavam fazer esse papel com os clássicos, e fizeram muito bem. A 34, ela traduziu muito, ela trouxe um Dostoiévski diretamente do russo, que não existia aqui. Naquela época, a CosacNaify estava fazendo o mesmo pelo Tolstói. Então, a gente sentia falta disso, de trazer nomes como o Daniil Kharms, um dos autores de que a gente gosta muito, e outros tantos que a gente vem trazendo.
Agora a situação mudou um pouco, não sei se você percebeu, mas há novos nomes por aí e várias editoras interessadas, então o processo ficou bem mais interessante, bem mais colorido e para a gente é ótimo. Então a Kalinka de alguma forma já está ocupando um outro espaço.

"O Professor Boris Schnaiderman praticamente cria essa tradição da tradução direta, ele cria o curso de russo na Universidade de São Paulo, nos anos sessenta, e, desde então, vários tradutores saíram dali direta ou indiretamente."


Búfalo Celeste – Os imigrantes, como o Boris Schnaiderman e a Tatiana Belinky, tiveram papel decisivo nessa presença e difusão da literatura russa entre nós?
Daniela – Ambos tiveram papel decisivo. O Professor Boris Schnaiderman praticamente cria essa tradição da tradução direta, ele cria o curso de russo na Universidade de São Paulo, nos anos sessenta, e, desde então, vários tradutores saíram dali direta ou indiretamente. Houve traduções diretas antes dele, mas ele criou uma tradição que não havia. Ele e seus discípulos. A professora Aurora Bernadini, o Paulo Bezerra, no Rio, um grupo de pessoas e foi se criando uma tradição, o que é diferente de você publicar uma coisa aqui e ali. E somos todos devedores do Professor Boris Schnaiderman, não só pelas traduções dele, que são impecáveis, mas pela atuação no jornalismo cultural, porque ele escreveu muito para jornal, trazendo novos nomes ou novas abordagens de autores como Maiakóvski, de que ele gostava muito. Enfim, o Professor Boris Schnaiderman cria um ponto central, nevrálgico para várias coisas que aconteceram depois dele. Não estou dizendo que ninguém fez nada além dele, mas que ele é uma figura importante e incontestável no nosso meio e, graças a Deus, viveu muito, ele morreu com quase 100 anos, e trabalhando, interessado, sempre em busca de novos autores, de novas linguagens.
Búfalo Celeste – E múltiplo, sob o ponto de vista de seus interesses intelectuais, aberto às vanguardas
Daniela – Ele gostava muito dessa busca e houve também o contato com os irmãos Campos, com quem ele fez duas traduções antológicas, do Maiakovski [Poemas. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1967] e, depois, a Poesia russa moderna [Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968], que também foi um marco cultural e é até hoje. Nós não temos outra antologia como essa.

                     Daniela Mountian, cofundadora da editora Kalinka
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Imagens:
El Lissitzky (Pochnok, Império Russo, 23/11/1890 – Moscou, URSS, 30/12/1941), “Primeira página da “História suprematista de dois quadrados em seis construções”, 1922.



El Lissitzky, Segunda página da “História suprematista de dois quadrados em seis construções”, 1922.

Fonte:
https://www.getty.edu/research/tools/guides_bibliographies/lissitzky/index2.html


 Aleksandr Tcherepnin (São Petersburgo, Império Russo, 21/1/1899 - Paris, França, 29/9/1977), “Quatro arabescos”, op. 11, 1920/1921.