Editora Kalinka
Entrevista com Daniela Mountian - Parte I
A
editora Kalinka completou dez anos de existência em 2018, cumprindo
um papel especial no mercado editorial, pois dedica seu catálogo à publicação
de escritores da literatura russa. Não bastasse isso, a editora
privilegia autores pouco conhecidos do público brasileiro. Com essa
linha, a Kalinka demonstra o importante papel que uma Editora pode
desempenhar no panorama de um país, alargando as fronteiras de
conhecimento de uma literatura que já conta, no Brasil, com um
público fiel e interessado na riquíssima tradição literária
desse país.
Daniela
Mountian e seu pai, Moissei Mountian, são os fundadores da editora.
Daniela, pós-doutoranda em teoria
literária e literatura comparada – FAPESP/USP, conversou
com o blog. A entrevista contou também com o apoio do jornalista
Reginaldo Cruz.
Nessa
primeira parte, ela fala sobre a trajetória de seus pais, a sua relação com a língua e
cultura russas, como surgiu a ideia de criação da editora, comenta
um dos pontos altos na trajetória da Kalinka, que foi a publicação
do livro Salmo, de Friedrich Gorenstein, faz considerações sobre as
razões da forte presença da literatura russa no Brasil e,
finalmente, trata da importância de Boris Schnaiderman para a
divulgação dessa literatura em nosso país.
*
Búfalo
Celeste – Como surgiu a ideia da editora?
Daniela
– Obrigada pelo convite, pelo bate-papo. Meu pai realmente tem a
ver com isso porque minha família, meu pai e minha mãe são da
Moldávia, que fazia parte da União Soviética e hoje é um país
independente.
Búfalo
Celeste – A Moldávia tem uma língua própria?
Daniela
– Hoje tem, mas eles vieram para cá em 1972, eles já vieram
casados, já vieram formados, digamos. Então eles estudaram na
língua russa.
Minha
vida tomou vários rumos antes de eu chegar à Kalinka, não foi uma
coisa de família; foi quase casual, eu diria. Eu
terminei a faculdade de História e já trabalhava com design,
trabalhava também com revisão e preparação de texto e fui
convidada por um amigo para abrir uma editora, e aí meu pai sugeriu:
“vocês querem um bom título? Eis aqui”. Eu nunca tinha ouvido
falar de Fiódor Sologub, o autor simbolista russo, desconhecido
aqui, mas muito conhecido na Rússia. Eu já conhecia um pouco de
literatura russa, mas não muito.
Búfalo
Celeste – Você é falante nativa de russo?
Daniela
– Meus avós falavam em russo, mas meus pais falavam com a gente em
português. Então, foi a partir desse romance que minha vida deu uma
guinada; aí, sim, fui me alfabetizar e comecei a ir para a Rússia.
O
projeto do romance do Sologub começou em 2005, com a tradução. A
vida se enveredou, assim, para esse lugar e comecei a conhecer as
pessoas da área, fazer cursos, o meu pai começou a se envolver
muito, começou a traduzir e aí resolvi que seria, de fato, uma
editora de livros russos e nunca mais parei.
Búfalo
Celeste – Foi de uma forma peculiar então?
Daniela
– Sim, foi. E acabei indo para Rússia, encontrei lá familiares
que eu não teria encontrado se não fosse por todo esse processo,
porque, ao mesmo tempo que foi criada a editora, que começou
antes, eu iniciei carreira acadêmica, para me dar um suporte, porque
eu não era da área.
"O diabo mesquinho, de Fiódor Sologub, é um livro-chave da virada do século XIX para o XX e quem trouxe foi meu pai."
Búfalo
Celeste – Seu pai já tinha essa paixão por literatura?
Daniela
– Meu pai sempre leu muito, como toda a geração dele na
Rússia. Eles leem muito. Meu pai lê muito até hoje. Então, ele
tem todo esse arsenal, tanto é que boa parte dos títulos é uma
escolha dele. O Sologub, por exemplo, ninguém estudava aqui, era
totalmente desconhecido. O diabo mesquinho
é um livro-chave da virada do século XIX para o XX e quem trouxe
foi meu pai. Eu li e falei “nossa, isso é um negócio importante”
e acabei estudando esse livro no mestrado que abriu várias portas
para mim. E outros livros também, meu pai que traz; por exemplo,
Leonid Dobýtchin, um autor modernista russo, é nosso segundo
livro e também um escritor pouquíssimo conhecido aqui. Ele tem uma
linguagem super radical e vanguardista e hoje é um autor bem
respeitado na Rússia. Eu também escolho autores, mas meu pai é
realmente uma peça fundamental, digamos que ele é a consciência da
editora.
Búfalo
Celeste – O que significa Kalinka?
Daniela
– Kalinka é o nome de uma música folclórica russa, do século
XIX. E é o nome de uma árvore também, uma pequena planta com uma
frutinha vermelha. Kalinka é o diminutivo de Kalina.
Búfalo
Celeste – Foi ousada essa proposta de criar uma editora,
voltada exclusivamente para a literatura russa e, mais ainda, com
autores pouco conhecidos.
Daniela
– Realmente, nossa linha editorial é literatura russa, séculos
XX e XXI, sobretudo de autores pouco conhecidos. Nem sempre eu vou
conseguir fazer isso, mas eu acho que 99% de nosso catálogo é
voltado para essa proposta. Eu e meu pai temos uma paixão, que é a
literatura das vanguardas russas e do modernismo, dos anos 10, 20,
até 30 do século XX. A ideia seria fazer uma coleção de contos
russos modernos; publicamos dois títulos, mas pode vir mais coisa
aí. Tem uma lista enorme de autores, mas também começamos a ir
para os contemporâneos, por exemplo o Friedrich Gorenstein.
Búfalo
Celeste – É justamente esse autor que chama atenção nas
publicações da Kalinka, pois também foi bem ousada a publicação
de Salmo: romance-meditação sobre os quatro flagelos do Senhor
[Kalinka, 2017], não só pelo tamanho do livro, que tem uma tradução
custosa, mas também pela sua complexidade.
Daniela
– Sim, foi trabalhoso.
"Salmo é um livro fortíssimo, polêmico."
Búfalo
Celeste – Conte um pouco sobre o projeto dessa publicação,
quanto tempo demorou a tradução? Foi conjunta com o Irineu [Franco
Perpétuo]?
Daniela
– É, meu pai convidou o Irineu para fazer a tradução, eu
trabalhei como editora. Mas foi bem difícil, porque você viu
quantas citações bíblicas aparecem e meu pai fez uma coisa que não
tem em nenhuma edição do livro: ele localizou citação por
citação, está tudo na edição. Então, foi um processo longo,
porque teve uma parte que meu pai fez, uma parte que Irineu fez e eu
mesmo demorei muito para editar esse livro. Foram várias revisões e
aposto que ainda faria outras, mas tem uma hora que o livro precisa
nascer. É um livro fortíssimo, polêmico.
Búfalo
Celeste – É uma das principais publicações dos últimos
anos, na minha visão, juntamente com o Vasily Grossman, Vida e
Destino.
Daniela
– Isso também foi uma escolha de meu pai, porque o Gorenstein não
é nada conhecido, nem na Rússia. Ele é conhecido como roteirista,
não só do Tarkóvsky, mas de outros diretores russos. Ele foi para a
Alemanha e só começou mesmo a ser publicado na Rússia depois do
fim da União Soviética. Ele é um autor cultuado pela
intelectualidade, mas não é tão lido nem conhecido, porque é um
autor difícil. É um tema complexo o de Salmo e é um tema que fala muito sobre
o nacionalismo russo também. Então, obviamente que ali há
polêmicas. Mas tem muita beleza nesse livro, porque o que ele fez, a
atualização que ele fez da Bíblia, essa poética que ele criou é,
para mim, algo inédito. É um livro totalmente imagético. Você vê
que ele é um grande roteirista, porque a gente vê o livro. É
impressionante. Quem gosta de Tarkóvsky tem aí muita coisa, porque
lembra muito a linguagem dele.
Búfalo
Celeste – Na sua opinião, a recepção da publicação do
Friedrich Gorenstein foi à altura da importância do livro?
Daniela
– Quando você trabalha com autores contemporâneos é normal isso. Eu acho
até que teve mais repercussão do que muitos autores. Digo
contemporâneos, Gorenstein morreu em 2002. Então, para um autor que
morreu há pouco tempo, que é desconhecido, eu acho até que a recepção
foi boa e isso não é um problema para a gente. Porque com uma
editora, trabalhando com autores desconhecidos, você não tem que
esperar algo diferente. Acho que a gente consegue até um pouco mais
de visibilidade do que eu imaginava, porque nosso trabalho é super
artesanal. Agora estamos trabalhando com a editora Hedra, mas até há
dois anos basicamente tudo era feito na minha casa; com a nova parceria, continuamos
cuidando pessoalmente de várias partes do livro. Então a gente tem
esse processo e, na verdade, a gente gosta disso. Eu, pessoalmente, estou me dedicando ao meu pós-doutorado e a Kalinka continua sob os cuidados da Hedra e de meu pai.
El Lissitzky, "História suprematista de dois quadrados em seis construções"
Búfalo
Celeste – Vocês têm algum incentivo institucional da Rússia?
Daniela
– Temos. A Rússia oferece uma relação de intercâmbio por meio
da qual financia traduções. Então, você se inscreve num
concurso e, se for contemplado, eles pagam a tradução; assim,
recebemos, já há algum tempo, recursos do Instituto de Tradução,
que fica em Moscou, e eles ajudam bastante. E agora com a Hedra
teremos uma estrutura um pouco melhor, porque é quase impossível
cuidar da parte comercial, venda, distribuição. Então, aqui, eles
ajudam muito nisso.
Búfalo
Celeste – Como é que vocês lidaram, justamente, com essa
parte, que é complexa, a parte comercial, distribuição etc?
Daniela
– Tinha uma funcionária que me ajudava, que agora está aqui [na
Hedra]. Antes, uma distribuidora passava os livros para a Livraria
Cultura, para a Martins Fontes, e eu cuidava das livrarias menores.
Agora, dessa parte comercial, quem cuida é a Hedra. Então a
gente faz, digamos, edições conjuntas. A Kalinka continua uma
empresa independente, com liberdade de escolha dos títulos, mas agora pode contar
com a estrutura da Hedra, que ajuda muito. Isso vai possibilitar
que a gente continue, porque, realmente, de outra forma, seria um
pouco difícil
Búfalo
Celeste – Gostaria de comentar sobre essa peculiaridade da
presença da literatura russa no Brasil. Sempre houve publicação
aqui de autores russos, mas houve uma forte retomada depois das
traduções a partir do original russo.
É
claro que há a qualidade óbvia da literatura russa, mas há um
contraste entre o tamanho da comunidade russa no Brasil, que é
pequena, e, no entanto, a literatura russa tem penetração mais do
que proporcional no nosso mercado editorial. Como você explica isso?
Daniela
– Para falar a verdade isso não é um fenômeno que acontece só
aqui. Eu acho que a literatura russa se tornou algo obrigatório, o que não
era. Então, quando ela começou a surgir, a ser descoberta pelos
europeus, o que não faz tanto tempo, se você for pensar bem, porque
a literatura russa moderna também é recente. Se você pegar o fim
do século XIX, eles eram uma literatura considerada exótica,
tirando Turguêniev e outros. E, de repente, a literatura russa, de
umas décadas para cá, ela ganha esse espaço e se torna mais uma
leitura obrigatória, virou um clássico.
Búfalo
Celeste – Houve até um espanto na Europa ocidental, quando
chegaram aqueles autores hoje clássicos, ao passo que a Rússia era
considerada um país atrasado.
Daniela
– Era considerada atrasada, e o Dostoiévski não era considerado um gênio.
Houve vários motivos para a gente chegar até aqui, vários booms,
vários processos, ondas, e eu concordo com você que, de uns anos
para cá, no Brasil, houve uma redescoberta; a gente pode pensar, como ponto de redescoberta, o momento em que saiu a tradução, pelo Paulo Bezerra, do Crime e
castigo, que foi realmente um grande impacto. Eu posso dizer que
foi um best seller isso.
E,
de lá para cá, o que eu achei mais interessante é essa busca por
novos nomes. Quando eu criei a Kalinka com meu pai, a gente sentiu
falta de um espaço para nomes menos conhecidos, porque basicamente
era Tolstói, Dostoiévski, a coisa não saia muito disso. Mas as editoras precisavam fazer esse papel com os clássicos, e fizeram muito bem. A 34, ela traduziu muito, ela trouxe um
Dostoiévski diretamente do russo, que não existia aqui. Naquela época, a
CosacNaify estava fazendo o mesmo pelo Tolstói. Então, a gente
sentia falta disso, de trazer nomes como o Daniil Kharms, um dos
autores de que a gente gosta muito, e outros tantos que a gente vem
trazendo.
Agora
a situação mudou um pouco, não sei se você percebeu, mas há
novos nomes por aí e várias editoras interessadas, então o
processo ficou bem mais interessante, bem mais colorido e para a
gente é ótimo. Então a Kalinka de alguma forma já está ocupando
um outro espaço.
"O Professor Boris Schnaiderman praticamente cria essa tradição da tradução direta, ele cria o curso de russo na Universidade de São Paulo, nos anos sessenta, e, desde então, vários tradutores saíram dali direta ou indiretamente."
Búfalo
Celeste – Os imigrantes, como o Boris Schnaiderman e a Tatiana
Belinky, tiveram papel decisivo nessa presença e difusão da
literatura russa entre nós?
Daniela
– Ambos tiveram papel decisivo. O Professor Boris Schnaiderman
praticamente cria essa tradição da tradução direta, ele cria o
curso de russo na Universidade de São Paulo, nos anos sessenta, e, desde
então, vários tradutores saíram dali direta ou indiretamente.
Houve traduções diretas antes dele, mas ele criou uma tradição
que não havia. Ele e seus discípulos. A professora Aurora
Bernadini, o Paulo Bezerra, no Rio, um grupo de pessoas e foi se
criando uma tradição, o que é diferente de você publicar uma
coisa aqui e ali. E somos todos devedores do Professor Boris
Schnaiderman, não só pelas traduções dele, que são impecáveis,
mas pela atuação no jornalismo cultural, porque ele escreveu muito
para jornal, trazendo novos nomes ou novas abordagens de autores
como Maiakóvski, de que ele gostava muito. Enfim, o Professor Boris
Schnaiderman cria um ponto central, nevrálgico para várias coisas
que aconteceram depois dele. Não estou dizendo que ninguém fez nada além
dele, mas que ele é uma figura importante e incontestável no nosso
meio e, graças a Deus, viveu muito, ele morreu com quase 100 anos, e
trabalhando, interessado, sempre em busca de novos autores, de novas
linguagens.
Búfalo
Celeste – E múltiplo, sob o ponto de vista de seus interesses
intelectuais, aberto às vanguardas
Daniela
– Ele gostava muito dessa busca e houve também o contato com os
irmãos Campos, com quem ele fez duas traduções antológicas, do
Maiakovski [Poemas. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1967] e, depois, a Poesia russa moderna [Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968], que também foi
um marco cultural e é até hoje. Nós não temos outra antologia
como essa.
Daniela Mountian, cofundadora da editora Kalinka
__________
Imagens:
El
Lissitzky (Pochnok, Império Russo, 23/11/1890 – Moscou, URSS,
30/12/1941), “Primeira página da “História suprematista de dois
quadrados em seis construções”, 1922.
El
Lissitzky, Segunda página da “História suprematista de dois
quadrados em seis construções”, 1922.
Fonte:
Fonte:
https://www.getty.edu/research/tools/guides_bibliographies/lissitzky/index2.html
Aleksandr Tcherepnin (São Petersburgo, Império Russo, 21/1/1899 - Paris, França, 29/9/1977), “Quatro arabescos”, op. 11, 1920/1921.