quarta-feira, 12 de outubro de 2022

 

DIA NACIONAL DA LEITURA



PROUST E SEU LIVRO


De certo o sabia, quem viveu

com a vida e a obra emaranhadas,

que viveu fazendo-as, refazendo-as,

elastecendo-a em tempo e páginas,


que vestiu sua obra, por dentro,

percorrendo-a, viajando em seu barco,

de certo viu que um dia acabá-la

era matar-se em livro, suicidá-lo.


João Cabral de Melo Neto


(In: Museu de tudo, 1976).




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Fotografia: Gaman Alice.

sábado, 23 de abril de 2022

23 de abril: Dia mundial do Livro e do Direito do Autor


Jorge de Lima. Invenção de Orfeu



                                          Jorge de Lima. "O nome da musa".


Canto I


III

E depois das infensas geografias

e do vento indo e vindo nos rosais

e das pedras dormidas e das ramas

e das aves nos ninhos intencionais

e dos sumos maduros e das chuvas

e das coisas comidas nessas coisas

refletidas nas faces dos espelhos

sete vezes por sete renegados,

reinventamos o mar com seus colombos,

e columbas revoando sobre as ondas,

e as ondas envolvendo o peixe, e o peixe

(ó misterioso ser assinalado),

com linguagem dos livros ignorada:

reinventamos o mar para essa ilha

que possui "cabos-não" a ser dobrados

e terras e brasis com boa aguada

para as naves que vão para o oriente.

E demos esse mar às travessias

e aos mapas-múndi sempre inacabados;

e criamos o convés e o marinheiro

e em torno ao marinheiro a lenda esquiva

que ele quer povoar com seus selvagens.

Empreendemos com a ajuda dos acasos

as travessias nunca projetadas,

sem roteiros, sem mapas e astrolábios

e sem carta a El-Rei contando a viagem.

Bastam velas e dados de jogar

e o salitre nas vigas e o agiológio,

e a fé ardendo em claro, nas bandeiras.

O mais: A meia quilha entre os naufrágios

que tão bastantes varram os pavores.

O mais: Esse farol com o feixe largo

que tão unido varre a embarcação.

Eis o mar: era morto e renasceu.

Eis o mar: era pródigo e o encontrei.

Sua voz? Ó que voz convalescida!

Que lamúrias tão fortes nessas gáveas!

Que coqueiros gemendo em suas palmas!

Que chegar de luares e de redes!

Contemos uma história. Mas que história?

A história mal-dormida de uma viagem.



                                                                          Jorge de Lima

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Poema extraído de:

Jorge de Lima. Invenção de Orfeu. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 19-21.

Obra publicada originalmente em 1952.


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Fonte das imagens:


"O nome da musa".

abca.art.br 

Trata-se de uma das fotomontagens do próprio poeta Jorge de Lima. 

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Retrato de Jorge de Lima:

agenciaalagoas.al.gov.br