domingo, 30 de outubro de 2016

 

Emil Mayer, fotógrafo

Imagens da Viena das duas primeiras décadas do séc. XX





Emil Mayer (5/10/1871, Neubydzow, Bohemia – 8/6/1938, Viena, Áustria) foi, na história da fotografia, um dos grandes artistas dedicados a documentar a vida nas cidades.



Começou a praticar a fotografia como amador, paralelamente à sua atividade como advogado, após ter obtido, em 1896, o doutorado em Direito pela Universidade de Viena. Ainda em sua época de estudante universitário, Mayer, de origem judaica, converteu-se para o catolicismo.



Emil Mayer também se dedicou à pesquisa em técnicas de obtenção de imagens fotográficas; em decorrência desse trabalho, obteve patentes e foi um dos maiores artistas europeus utilizando o método da impressão em gelatina de prata; com isso, abandonou o Direito, fundou uma firma de tecnologia em fotografia, ao mesmo tempo em que continuava a atuar como fotógrafo.



Angustiados com a perseguição pelo regime nazista, após a anexação da Áustria pela Alemanha, Mayer e a esposa suicidaram-se em 1938.



As imagens abaixo reproduzidas correspondem, portanto, à paisagem urbana da Viena, na qual também vivia e produzia a sua obra o escritor Robert Musil.



Fonte para as imagens:wikimedia.org e monovisions.com





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Barqueiro do Danúbio, com esposa e filho. Viena. Entre 1905 e 1914.






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Vendedoras de flores. Viena. Entre 1905 e 1914




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Restaurante Ankerhof, Hoher Markt 10. Viena. Entre 1905 e 1914.




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"No reino da ilusão". Viena. Entre 1905 e 1914





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Mulheres comprando flores. Entre 1905 e 1914




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Passeio em família no Wiener Prater, parque público em Viena. Entre 1905 e 1914




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Engraxate em frente à oficina, na Praça Stephan, Viena. Entre 1905 e 1914




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Vendedor de bilhetes de astrologia. Viena. Entre 1905 e 1914




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Motorista de táxi. Viena. Entre 1905 e 1914




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Passeio na Wiener Prater, parque público em Viena. Entre 1905 e 1914



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Viena. Kärntnerring. Final do século XIX. Autor desconhecido








sábado, 29 de outubro de 2016


O jovem Törless (1906), de Robert Musil

Turbulências nos subterrâneos do sujeito em plena Bella Époque 




Self Portrait with Physalis, 1915 by Egon Schiele

'Auto-retrato com fisális'', Egon Schiele, 1915.

 
''Era uma pequena estação de trens, no caminho para a Rússia.

Quatro trilhos de ferro corriam paralelos, interminavelmente, na direção dos dois lados, entre o cascalho amarelo da ampla ferrovia. Ao lado de cada trilho, como uma sombra suja, destacava-se o traço escuro queimado no chão pela fumaça dos trens.

Atrás da estação baixa e pintada a óleo, subia até a rampa da gare uma estrada larga e meio arruinada. Suas margens perdiam-se no solo espezinhado e só eram identificadas por duas acácias postadas de ambos os lados, tristes, com folhas sedentas e sufocadas pela fuligem.

Talvez fosse por causa dessas cores tristes, talvez pela luz pálida do sol da tarde, fraco e abafado pelo nevoeiro: objetos e pessoas pareciam indiferentes, mecânicos e sem vida, como num teatro de marionetes''.



''A esposa do Conselheiro da Corte Törless era a dama de uns quarenta anos que escondia atrás de um denso véu os olhos vermelhos de chorar. Estavam se despedindo, e era difícil permitir que seu único filho voltasse novamente por tanto tempo para junto de estranhos, sem que ela pudesse cuidar pessoalmente dele''.



''A Sra. Törless permitia que o filho ficasse num lugar tão distante e pouco aconchegante porque nele existia um famoso Internato, fundado no século anterior por uma ordem religiosa, e que se localizava lá certamente para proteger a juventude das influências corruptoras de uma grande cidade'' (pp. 7-8).




A Viena luminosa da Belle Époque


Esses são trechos do início de O jovem Törless (Die Verwirrungen des Zöglings Törless [As perturbações do aluno Törless), de Robert Musil (6/11/1880, Klangefurt, Império Austro-Húngaro – 15/4/1942, Genebra, Suíça), primeiro romance do autor, publicado em 1906.



Essa sua primeira peça, assim como as novelas de Três mulheres (Drei Frauen, 1924) servem como porta de entrada para a sua obra magna e um dos monumentos do gênero romance no século XX: O homem sem qualidades (Der Mann ohne Eigenschaften, 1930, 1932, 1943).



Exatamente por não se encontrarem atualmente em catálogo essas obras de um escritor tão importante da primeira metade do século XX, ao lado de Kafka, de Hermann Broch e de Thomas Mann, para nos limitarmos à literatura de língua alemã, é que se torna importante voltar a Musil, inclusive como forma de acesso a um dos momentos luminosos da Modernidade, qual seja, o Império Austro-Húngaro do início do século passado, tendo Viena como sua capital.

Nessa metrópole cosmopolita e nos demais centros do Império Austro-Húngaro viveram, nos últimos anos do século XIX e no princípio do século seguinte, além de Musil, Kafka e Broch, o escritor Arthur Schnitzler, os poetas Rainer Maria Rilke e Georg Trakl, Sigmund Freud, o satirista Karl Kraus, o filósofo Ludwig Wittgenstein, a tríade da Segunda Escola Vienense – cuja figura inaugural é o compositor Arnold Schönberg -, além do compositor e maestro Gustav Mahler, os pintores Gustav Klimt, Egon Schiele e Oskar Kokoschka e o dramaturgo Hugo von Hofmannsthal (celebrizado pela parceria, como libretista, nas óperas do alemão Richard Strauss).



Um elo de ligação nosso, aliás, com essa fase de esplendor da cultura europeia do início do século XX é o escritor Stefan Zweig, que aqui aportou em 1940, para palestras – desde esse ano já estava exilado nos EUA -, vindo a fixar-se no Brasil no ano seguinte, em Petrópolis, um ano antes de suicidar-se, juntamente com a sua companheira, Lotte, desiludidos e desgostosos com o desmoronamento de todo um mundo no qual foram formados.



Recorde-se, a propósito, que o Império Austro-Húngaro é o estopim da I Guerra Mundial, com o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, em 28 de junho de 1914, em Sarajevo, na Bósnia, pelo estudante servo-bósnio Gavrilo Princip. Esse fato e a sucessão posterior, encadeada, de fatos que desaguariam no grande conflito entre as potências, marca o fim da Belle Époque. O término da I Guerra Mundial, por sua vez, leva à desintegração de três Impérios: o Austro-Húngaro, o Otomano e o Russo.

A estreia marcante de um jovem autor, dedicado à psicologia e à filosofia



Impressiona que um jovem de apenas vinte e seis anos tenha publicado, em 1906, na contracorrente do espírito sorridente da Belle Époque, uma obra, como o próprio título indica, tão perturbadora.  

O escritor começou a trabalhar no romance em 1902, com vinte e dois anos. 

Musil graduou-se aos vinte e um anos, em Engenharia Mecânica, seguindo os rastros do pai, mas passa a dedicar-se, dois anos após, aos estudos de Psicologia e Filosofia, na Universidade de Berlim, áreas nas quais obtém o seu doutorado em 1909. Entre suas leituras, nos primeiros anos de Universidade, estão Nietzsche e Dostoiévski. Teve um encontro com Kafka em 1916, em Praga, por cuja obra nutria grande admiração.

Violência e impulsos sexuais


Uma forma de ler O jovem Törless é perceber como, em meio a todo o otimismo com uma civilização que vivia o esplendor dos avanços técnicos em grandes metrópoles iluminadas, com fartura de sensações, luzes, prazeres e divertimentos, a arte é capaz de captar fissuras, mal estar e sentidos ocultos e subterrâneos nas relações e estruturas sociais e nos espaços abissais do eu profundo dos indivíduos, por obra de um humanista como Musil, que foi, no dizer de Otto Maria Carpeaux, ''matemático por formação, de espírito científico, mas dotado de superior intuição poética (in: História da literatura ocidental, Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1966, tomo VII, p. 3.474).



Impulsionado pelo espírito de época, tal como em Schnitzler, a ferramenta para investigação da turbulência, isto é, as ''perturbações'' que inquietam e desestabilizam esses indivíduos é a confluência entre a agressividade e os impulsos sexuais, numa atmosfera sombria em que se auscultam sinais sísmicos que prenunciam, adiante, não muito distante no tempo, a materialização desse horror, em macro-escala social.



Törless é envolvido, num ritual de passagem degradante, nos jogos de poder e perversão entre, de um lado, Beineberg e Reitman, que têm personalidades ativas e impõem-se pela força, coerção e intimidação sobre os demais alunos, e, de outro lado, Basini, de personalidade passiva, e que se torna vítima daqueles dois alunos e, posteriormente, de Törless. O protagonista, seduzido por esse ambiente, deixa-se levar, não sem uma grande tortura interna, pela forma como Beineberg e Reitman usam Basini.



Beineberg, em especial, é mostrado de maneira irônica, pois nele convivem a truculência e preocupações pseudofilosóficas.




''Agora ele sabia distinguir entre o dia e a noite; na verdade, sempre soubera; apenas, um pesadelo deslizara por sobre essas fronteiras, confundindo-as, e ele se envergonhava dessa confusão. Contudo, a lembrança de que podia ser diferente, de que existem ao redor do ser humano fronteiras finas, facilmente extinguíveis, e de que sonhos febris se esgueiram em torno de nossa alma, corroendo os muros firmes e abrindo trilhas sinistras – essa lembrança se acomodara no fundo dele e irradiava suas pálidas sombras''. (pp. 192-193).



 

Edições



Ficam aqui as saudações à escritora Lya Luft, que, afora a sua obra como ficcionista, empenhou muita energia de seu talento, a fim de verter para a nossa língua importantes obras da literatura em língua alemã. É dela a tradução de O jovem Törless, bem como a de O homem sem qualidades, nesse último caso em parceria com Carlos Abbenseth. O número de página das citações acima refere-se à edição da Nova Fronteira, de 1981 (193 pp.).



Nenhuma das obras de Robert Musil está em catálogo das editoras brasileiras, infelizmente, muito embora possam ser encontradas, sem muita dificuldade, em lojas físicas ou virtuais de livros usados. 

O jovem Törless foi incluído recentemente numa coleção organizada pelo grupo do jornal Folha de S. Paulo.  

O homem sem qualidades, obra inacabada, publicada pela primeira vez no Brasil em 1989 – grande acontecimento editorial daquele ano -, pela Nova Fronteira (871 pp.), que lançou todos os livros do autor, foi reeditada em 2006, numa coleção especial comemorativa, com quarenta grandes romances publicados anteriormente pela editora, mas está fora de catálogo.



Consta para venda em alguns sítios virtuais o volume O melro e outros escritos, da editora Nova Alexandria (1996), mas não obtive maiores informações sobre o conteúdo dessa publicação.

n.b. Trata-se de uma coletânea de textos diversos, publicados por Musil em jornais e revistas (31/10/2016)


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Musil teve o dissabor de ver todas as suas obras banidas na Alemanha e na sua Áustria natal, sob o regime nazista. 

A intervalos, ao longo da História, tiranos e ditadores têm a especial preocupação de queimar livros, bibliotecas e, se necessário for, os autores dos livros também. Vide: Fernando Báez - História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Trad. Léo Schlafman, Rio de Janeiro, Ediouro, 2006 (512 pp.). Nesse último caso, citado pelo título, foram um milhão de livros destruídos, perdidos ou desviados, entre os quais tesouros da história da humanidade, para o prazer dos antiquários, agentes ou oportunistas de todo tipo.
 
Daqui a poucos dias transcorrerá a efeméride de cento e trinta e cinco anos do nascimento desse artista imenso, fruto de um humanismo e de uma vida de dedicação plena à arte, em luzes que se irradiam até os dias de hoje. Muito obrigado, Robert Musil, por esse precioso legado!


Robert Musil | La Parafe 

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Atualização: fui alertado que O homem sem qualidades, lançado anteriormente pela Editora Nova Fronteira, foi reeditado, em parceria com a Livraria Cultura, pela qual são feitas as vendas, com exclusividade. Boa notícia! (2/11/2016).


segunda-feira, 24 de outubro de 2016



A MAGNIFICÊNCIA DA TARDE


Voa ao poente a túnica da brisa
se desmanchando em chuva de lilases.
A tarde, ante essa mágica, se irisa
e exibe cores francamente audazes.

A natureza, certo, romantiza…
Há nos jardins fascinações de oásis
e os encantos do olhar de Mona Lisa
estão nas rosas e nos grous lilases.

De súbito, o crepúsculo termina.
O céu agora todo se reveste
de uma capa de príncipe da China.

E na ponta de um cônico cipreste,
a lua nova paira, curva e fina,
como o chifre de um búfalo celeste.

Sosígenes Costa (Belmonte, 1901 – Rio de Janeiro – 1968)

In: Obra poética. 2a. ed. revista e ampliada por José Paulo Paes, São Paulo, Cultrix; Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1978.


domingo, 23 de outubro de 2016


Sosígenes Costa: o grande poeta pavônico da Bahia


 


O última dia quatorze marcou os cento e quinze anos de nascimento do ilustre poeta de Belmonte, Bahia, que faleceu no Rio de Janeiro há quarenta e sete anos, em cinco de novembro de 1968.



Podemos associar a obra de Sosígenes Costa à beleza e aos passos do pavão, ave-símbolo de sua poesia: enquanto o pavão é um motivo recorrente nos seus escritos poéticos, o reconhecimento da obra do poeta caminha lentamente, muito embora uma quantidade crescente de estudiosos e admiradores, entre os quais o autor deste blog, reivindiquem para o artista baiano o lugar que lhe cabe no panteão do Modernismo brasileiro.



É provável que o reconhecimento, ainda limitado, do poeta seja vítima de sua personalidade retraída: a sua Obra poética só veio a lume em 1959, pela editora Leitura, e, ainda assim, por insistência de amigos, quando o autor já estava aposentado, residindo no Rio de Janeiro. O livro foi agraciado, em 1960, com o prêmio Jabuti, na primeira edição dessa láurea.



Sosígenes Costa, nascido na litorânea Belmonte, passou a maior parte de sua vida em Ilhéus, região da “civilização do cacau”; nessa cidade, em que produz a maior parte de sua obra, tinha os ofícios de telegrafista do Departamento de Correios e Telégrafos e secretário da Associação Comercial.



O verso da folha de rosto da primeira publicação do poeta fazia menção à edição próxima da Obra poética II; o poeta faleceu, contudo e tal não aconteceu. 

Dez anos após a morte do poeta, uma reedição dá maior repercussão à sua obra 




Passados dez anos da morte do poeta e motivado pelos comentários de James Amado (*), José Paulo Paes (**) entra em contato com o irmão de Sosígenes, Octavio Marinho da Costa, e tem acesso a uma mala com manuscritos e datiloscritos do escritor. Num diligente trabalho de filologia, buscando, a partir do material que lhe foi confiado, reconstituir o que seria a vontade do autor, Paes faz publicar, no mesmo ano, em edição da Cultrix e Instituto Nacional do Livro, uma nova edição revista e ampliada da Obra poética (317 pp.), contendo os poemas constantes da publicação de 1959, ora acrescida do que seria a Obra poética II.



No ano seguinte, em 1979, seria publicado, igualmente pela Cultrix e com texto fixado por Paes – responsável também pela Introdução e glossário, Iararana (115 pp.), longo poema dedicado ao cacau, com apresentação de Jorge Amado e ilustrações e capa de Aldemir Martins.


Antes, em 1977, Paes publicara Pavão, parlenda, paraíso - uma tentativa de descrição crítica da poesia de Sosígenes Costa (Cultrix; 119 pp.).



Temos, portanto, um dívida inestimável para com José Paulo Paes, que empregou energia e esforços para reposicionar a obra de Sosígenes Costa no panorama da poesia brasileira, uma tarefa que ainda está em andamento e, assim, cabe às novas gerações dar continuidade à recepção desse legado, fazendo jus a uma das poesias mais inventivas de nossas letras.



Trataremos aqui de literatura de diversas épocas e estilos, mas voltaremos, de forma intermitente, ao poeta grapiúna, celebrando a sua obra.



Poeta do mar, poeta do cacau, poeta social marcado por seu tempo, tão requintado e ao mesmo tempo tão popular, pois grande parte de sua obra se baseia na vida do povo e dela se alimenta – folclore, hábitos, expressões, humanismo – ele ficará nas nossas letras como uma dessas grandes árvores isoladas que se destacam na floresta”.



Jorge Amado

(“O grapiúna Sosíges Costa”, “Apresentação”, in: Iararana, op. cit.).




 
Sosígenes Costa
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* Ilhéus, Bahia – 1922 – Salvador, Bahia – 2013; romancista, tradutor e jornalista; irmão de Jorge Amado.


** Taquaritinga, São Paulo, 1926 – São Paulo, São Paulo, 1998; poeta, tradutor, crítico e ensaísta literário.