segunda-feira, 28 de novembro de 2016


Entrevista com Marcelo Maluf

O autor do romance A imensidão íntima dos carneiros responde ao Blog



É importante que lutemos pela leitura e pela literatura, mesmo que sejamos poucos.


Quanto tempo transcorreu desde a ideia inicial até a redação final do romance?

A ideia inicial do romance data de 2009, 2010. Fiz esboços, anotações, etc. Mas sentei mesmo para escrever em 2012/2013 e finalizei o romance no início de 2015.


No início do romance, o narrador faz menção, de passagem, aos impasses sobre a estrutura narrativa da própria obra que está se desenvolvendo aos olhos do leitor. Dar o nome de Marcelo Maluf ao protagonista ou, em outras palavras, optar pela história familiar como base para o romance forneceu-lhe um chão em que você pudesse se apoiar para ir frente ou, contrariamente, foi um desafio duplo nessa sua primeira investida nesse gênero?

Foi um desafio duplo. Uma loucura mesmo. Eu havia esboçado, anteriormente, alguns romances que fracassaram. Quando entendi que essa história familiar era material para um romance, resolvi enfrentar, tanto a forma quanto o conteúdo. Confesso que não foi um processo tranquilo, mas sobrevivi, eu acho. Na luta com a forma, cheguei a escrever umas trinta páginas com o narrador em terceira pessoa e, depois, as mesmas páginas em primeira pessoa, e submeti o texto à leitura de amigos escritores. O retorno que tive foi que em primeira pessoa o narrador tinha mais força. Segui por esse caminho e, ao fim, gostei do resultado.


Nos últimos anos, houve alguns fatos extraliterários no país com possível impacto sobre a literatura: os novos meios eletrônicos de comunicação, o aumento percentual da presença de crianças e jovens na escola, um início de incremento da renda dos mais pobres, o surgimento de uma juventude propensa a um novo e autônomo ativismo e, sem ser exaustivo, o fenômeno da “literatura das periferias”. Você tem contato permanente com pessoas interessadas em literatura, por meio das oficinas de literatura: há motivo para otimismo com a literatura no Brasil, nos seus mais diversos aspectos: da criação, do público-leitor e das formas de circulação da arte?

Estamos vivendo um momento político de grande retrocesso. Se seguirmos por essa rota, é certo que fracassaremos ainda mais. No entanto, o escritor, o professor, o mediador de leitura, em minha opinião, deve, justamente por isso, fortalecer o seu trabalho e ir ao encontro dos leitores. Não importa se vivemos num momento ruim. Sempre tivemos momentos ruins. Não se trata de ficar conformado, mas também de não desesperançar.

Aliás, em verdade, pouco vi o incentivo à leitura com grande expressão nos programas de educação em geral no Brasil. O que sempre houve, foram iniciativas muito pessoais e de pequenos grupos. É importante que lutemos pela leitura e pela literatura, mesmo que sejamos poucos. Quando encontro as pessoas em oficinas e clubes de leitura, me fortaleço e entendo que o trabalho é lento mesmo. Vivemos num sistema em que a leitura é desvalorizada cotidianamente, vista como coisa de gente avoada, sem os pés no chão. Sendo que, em verdade, é o contrário disso. A leitura te provoca, te faz sonhar, te faz duvidar e te põe em xeque. Aqui falo, especificamente, da boa poesia e da boa prosa. Não de fenômenos de mercado. Por isso, e apesar disso, continuo escrevendo e promovendo a leitura.





segunda-feira, 21 de novembro de 2016



A IMENSIDÃO ÍNTIMA DOS CARNEIROS, DE MARCELO MALUF

A busca da redenção diante das catástrofes da História





Marcelo Maluf, com o seu primeiro romance, fez muito bem à literatura brasileira e reconheceu-o o Júri final do Prêmio São Paulo de Literatura, na edição de 2016, que laureou a obra para a categoria de autor estreante com mais de quarenta anos.

Explico: fugindo ao realismo-naturalista, Marcelo Maluf recorre às memórias e às raízes culturais dos seus antepassados, para criar uma obra que, sem deixar de desenvolver uma profunda reflexão sobre a condição humana – ou, melhor dizendo, por isso mesmo: para adensá-la – reveste-se de livre imaginação e de fantasia não evasionista. Temos aqui, dessa forma, uma obra de arte no seu verdadeiro sentido, por meio da qual, por mecanismos próprios dessa forma de conhecimento, o leitor é convidado, como é característico da modernidade e do lúdico da arte, a participar da maquinaria artística e a romper o automatismo do cotidiano, a fim de alargar a percepção do real, o que, aliás, sempre foi o papel da arte, cuja urgência, contudo, foi potencializada com a força apassivante dos produtos culturais massificados.

Lembremo-nos, a propósito, da reflexão do filósofo alemão Theodor Adorno sobre qual realismo se exige do romance na Modernidade e como esse gênero ainda pode ter algo especial a dizer em oposição ao mundo administrado e à estandardização:

Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas auxilia na produção do engodo. A reificação de todas as relações entre os indivíduos, que transforma suas qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria, a alienação e a auto-alienação universais, exigem ser chamadas pelo nome, e para isso o romance está qualificado como poucas outras formas de arte. (1)

A imensidão íntima dos carneiros coloca em primeiro plano a luta dos indivíduos contra a dor, o sofrimento e, principalmente, o medo que congela e paralisa, e também os poderes entrelaçados da palavra, da memória, do testemunho e da própria arte como instrumentos contra o círculo de ferro - vicioso, infindável e recorrente - da violência e das catástrofes da História.

O medo estava estava no princípio de tudo.
O medo dominou gerações e bebeu em pequenas doses a coragem de muitos homens e mulheres de nossa família. Nós sempre estivemos sob o seu domínio. O medo estava em nossos ancestrais os Gassanidas, em Huran próximo às colinas de Golan. No ano 427 d.C, um sujeito chamado Abu Abdallah, nosso ancestral mais remoto, foi perseguido e morto pelos muçulmanos com 128 golpes de sabre, apenas por ser cristão. Sua mãe, que assistia a tudo, gritava para ele: “Morra como um homem, meu filho, não chore”. Mas Abu Abdallah chorou. Foi ali, nas lágrimas que escorriam de seu rosto, que nasceu o medo que iria chegar até nós.
(Marcelo Maluf – A imensidão íntima dos carneiros. São Paulo, Reformatório, 2015, p. 11).

O romance é divido em quatro partes: O Vento, A Montanha, O Fogo, O Oceano que, utilizando as quatro raízes constitutivas do universo, no entender de Empédocles de Agrigento – o ar, a terra, o fogo, a água –, simboliza a busca das origens e da essência, para decifrar o medo atávico que domina a família do protagonista desde tempos imemoriais.

Marcelo Maluf, personagem-narrador, empreende, juntamente com o avô Assaad - do qual se aproxima e cujos passos segue, numa viagem íntima e existencial (pois o avô morreu em 1966, oito anos antes de Marcelo nascer) -, essa busca da verdade no passado, a fim de libertar ambos do medo que é fonte de angústia e do embotamento da vida, e também, por outro lado, do medo que é motor do ciclo da violência recorrente, pois “o medo também nos torna cruéis e, escravos dele, podemos nos tornar assassinos” (cit., p. 12).

Estabelece-se um paralelismo supratemporal entre as vidas de Marcelo e de seu avô, Assaad Simão Maluf, cujas vozes se alternam no romance: no medo ancestral que os entrelaça, no estranhamento em relação aos lugares onde nasceram e dos quais partiram - Assaad, de Zahle, no Líbano; e Marcelo, de Santa Bárbara D'Oeste, cidade do Estado de São Paulo - , nos carneiros a que se afeiçoaram em suas infâncias (Mustafa e Khnum), nas mulheres que passaram por suas vidas, deixando fundas marcas em suas lembranças.

E há um eco de angústia hamletiana em Assaad, que também contamina Marcelo: o pedido de Simão, pai de Assaad, para que vingue a morte cruel de Adib e Rafiq, irmãos de Assaad, por obra de soldados turcos, em 1920, durante o Império Turco-Otomano, e que motiva a saída de Assaad do Líbano em direção ao Brasil, vindo a fixar-se na cidade de Santa Bárbara D'Oeste. Antes de partir, Simão pede a Assaad:

Nunca diga a ninguém o que aconteceu em nossa casa. (…) Uma desgraça como a nossa é para ser enterrada. Ninguém gosta de estar ao lado de gente que vive lamentando as suas tragédias. Vá viver a sua vida e nos esqueça. O Brasil lhe fará bem.”
(Cit. p. 131)

A dinâmica do romance instala-se por dois motivos propulsores: o ciclo de violência e sua contraface: o medo atávico e ancestral que percorre os séculos desde muito distante no tempo até Assaad, seus filhos e Marcelo e, a isso conectado, o “segredo trágico” de Assaad (p. 24), em outras palavras, a interrupção da memória desse ciclo, que dissemina o mal estar no ramo brasileiro da família Maluf. Ter a consciência dessa tragédia cíclica, por meio da memória e do testemunho, e furtar-se à vingança que a alimenta, é a jornada heroica a que somos convidados nessa promissora estreia em romance de Marcelo Maluf, enriquecida pelos ensinamentos, pelas fábulas, parábolas, enfim, pelo rico imaginário da cultura árabe.

Há um dito popular que diz que do carneiro só não se aproveita o berro. Mas como eu não iria explorar a vida de Khnum como fazem os criadores, eu tive tempo de saber que o berro de um carneiro é a sua imensidão íntima, doada em forma de som para o mundo. Quando um carneiro berra, ele expressa a sua angústia, raiva, medo ou alegria. O berro de um carneiro é a maneira dele de se comunicar com Deus. O Cristo berrou: “Pai, por que me abandonaste?”.
(Cit., p. 113).

*

Marcelo Maluf nasceu em Santa Bárbara D'Oeste, interior do Estado de São Paulo, Brasil, em 1974. É músico e mestre em Artes pela Unesp. Autor do livro de contos Esquece tudo agora (2012) e do infantil As mil e uma histórias de Manuela (2013), entre outros. Vive em São Paulo desde 1999.




                 "O pensador", Gibran Khalil Gibran

_____
  1. Posição do narrador no romance contemporâneo”, in: Theodor Adorno - Notas de literatura I, 2ª ed., trad. Jorge de Almeida, São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2012, p. 57.



domingo, 13 de novembro de 2016



Os sertões, de Euclides da Cunha

Há cento e vinte anos, começava a repressão a Canudos








"Arraial de Canudos, visto pela Estrada do Rosário", Demétrio Urpia, litografia, 1897 (1).


Relata o general Frederico Solon, comandante do 3° Distrito Militar:
A 4 de novembro do ano findo (1896) em obediência à ordem já referida, prontamente satisfiz a requisição, pessoalmente feita pelo dr. Governador do Estado, de uma força de cem praças da guarnição para ir bater os fanáticos do arraial de Canudos, asseverando-me que, para tal fim, era aquele número mais que suficiente.
Confiado no inteiro conhecimento, que ele devia ter, de tudo quanto se passava no interior de seu Estado, não hesitei; fazendo-lhe apresentar, sem demora, o bravo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, do 9° Batalhão de Infantaria, a fim de receber as suas ordens e instruções, o qual, para cumpri-las, seguiu, a 7 do dito mês, para Juazeiro, ponto terminal da estrada de ferro, na margem direita do rio São Francisco, comandando três oficiais e 104 praças de pré daquele Corpo, conduzindo apenas uma pequena ambulância, fazendo eu seguir logo depois um médico com mais alguns recursos para o exercício da sua profissão. O mais correu pelo Estado.”
(Euclides da Cunha - Os sertões - Campanha de Canudos. Edição, prefácio, cronologia, notas e índices Leopoldo M. Bernucci, 2a. ed., São Paulo, Ateliê Editorial, 2001, “A luta – Preliminares", pp. 342-343).

Conforme conta o general Solon, coincidentemente sogro de Euclides da Cunha (Cantagalo, RJ, 20/1/1866 - Rio de Janeiro, RJ, 15/8/1909), em documento recolhido pelo escritor e incluído na sua obra magna, no dia sete de novembro de 1896 o destacamento comandado pelo tenente Pires Ferreira chegou a Juazeiro, de trem, distante mais de duzentos quilômetros de Canudos.

A partir de um fato banal, mas que se desenvolvia sob o pano de fundo de tensões e contradições decorrentes das andanças e peregrinação, havia vinte e dois anos, de Antonio Conselheiro pelos sertões da Bahia e de Sergipe, tinha início, o conflito de Canudos.

A total incompreensão das autoridades da época sobre o que se passava em Canudos, o uso desmedido da força bruta e o bárbaro desfecho do conflito – vitimando a quase totalidade da população de vinte mil pessoas do Arraial - tornaram-se fatos centrais na História brasileira. Por isso, Canudos fixou-se, principalmente por força do relato épico de Euclides da Cunha, como o conflito-símbolo de todas as recorrentes e igualmente violentas repressões em nosso país, recolocando em questão, entre nós, para usar a expressão de Celso Furtado, a construção continuamente interrompida da nossa formação nacional.

Três anos antes, Antonio Conselheiro e seus seguidores haviam se fixado na região de Canudos, rebatizada pelo líder religioso como Belo Monte.
A então comarca de Canudos teve um marco especial na evolução de seu povoamento quando, em 1785, o frei capuchinho italiano Apolônio de Todi, que andava pela região em missão religiosa, ali esteve e, congregando os fieis, edificou uma Via Sacra. Com o tempo, o local tornou-se centro de romarias, propiciando um crescimento da povoação.

Logo que chegou à localidade, Antonio Conselheiro construiu uma igreja, dedicada a Santo Antonio, onde só havia uma capela, e planejou construir uma outra muito maior – Igreja de Bom Jesus – cujas obras iniciaram-se em 1896. Justamente daí, aguçados por tramas anteriores, desencadeiam-se os fatos.



http://www.patrimoniovivo.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2014/02/xilo-Conselheiro1.jpg


Xilogravura, João Pedro do Juazeiro, 2014


Antonio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando rompimento anelado.
O principal representante da justiça do Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que sendo juiz do Bom Conselho fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele.
Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato, aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação de São Francisco; as madeira seriam de lá arrebatadas, à força.
(Id., ibid., pp. 339-340).


Ao fim da batalha, que se deu na localidade de Uauá, a cem quilômetros de Canudos, muito embora os sertanejos dispusessem de armamento grosseiro e tivessem baixas muito maiores – cento e cinquenta ante as dez perdas entre as forças oficiais -, o comandante desistiu de prosseguir na empresa


Assombrara-o o assalto. Vira de perto o arrojo dos matutos. Apavorara-o a própria vitória, se tal nome cabe ao sucedido, pois as suas consequências o desanimavam. O médico da força enlouquecera... Desvairara-o o aspecto da peleja. Quedava-se, inútil, ante os feridos, alguns graves.
A retirada impunha-se, por tudo isso, urgente, antes da noite, ou de um outro recontro, ideia que fazia tremer aqueles trinfadores. Resolveram-na logo. Mal inumados na capela de Uauá os companheiros mortos, largaram dali sob um sol ardentíssimo.
Foi como uma fuga.
(…)
E as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja.
(Id., ibid., pp. 351-352).


*

O assalto final contra os sertanejos iniciou-se no dia 1° de outubro de 1897. Os últimos quatro combatentes – dois homens, um velho e um menino – tombaram no dia cinco do mesmo mês.

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Euclides da Cunha acompanhou pessoalmente o conflito, como correspondente, a convite de Júlio Mesquita, proprietário do jornal “O Estado de S. Paulo”. Chegou à região no dia 30 de agosto de 1897, lá permanecendo até o dia 3 de outubro. A redação do livro foi iniciada imediatamente após o seu retorno da Bahia.
Nota cômica: em dezembro de 1901, ante o desinteresse do diretor da editora Livraria Laemmert, o escritor resolve bancar parcialmente a publicação do livro. A obra é lançada um ano depois e torna-se um sucesso de vendas, recebendo críticas altamente elogiosas dos principais críticos da época: Araripe Júnior, José Veríssimo e Sílvio Romero. Uma segunda edição foi lançada em junho do ano seguinte.
Nascia um clássico da literatura brasileira.

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Euclides da Cunha foi eleito em 21 de setembro de 1903 para a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras; tomou posse no dia 18 de dezembro de 1906, sendo recebido pelo acadêmico Sílvio Romero.

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Uma mente tão privilegiada e inquieta, reunindo conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos de sua época, Euclides da Cunha teve a vida tragicamente abreviada, ao morrer no dia 15 de agosto de 1909, aos quarenta e três anos, alvejado por quatro tiros, desferidos pelo cadete Dilermando de Assis, amante de sua esposa, Anna de Assis.

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O impacto dessa mancha na história brasileira, repercutida pela obra-prima de Euclides da Cunha, é tão grande que, afora a reprodução no imaginário de incontáveis artistas brasileiros, nos mais diversos gêneros artísticos, houve repercussão inclusive fora das fronteiras nacionais. Dois escritores estrangeiros, entre outros, impressionados com a leitura do épico da nossa literatura, recriaram, cada um a seu modo, os episódios de Canudos.

Mário Vargas Llosa visitou os locais do conflito e conversou com moradores da região, para redigir o romance A guerra do fim do mundo, lançado originalmente em 1982 (publicado no Brasil pela Alfaguara, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht, 2008, 608 pp.).

Também o escritor húngaro Sándor Márai publicou em 1970, no Canadá, uma versão ficcional dos fatos - Veredicto em Canudos -, após ler uma versão em inglês da obra brasileira. O romance de Márai foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2002 (trad. Paulo Schiller, 160 pp.).




Euclides em perfil retratado por George Huebner e Libânio do Amaral. Manaus, Amazonas, [nov.] 1905



Euclides da Cunha, retratado por George Huebner e Libânio do Amaral, Manaus (AM), 1905.

Euclides em perfil retratado por George Huebner e Libânio do Amaral. Manaus, Amazonas, [nov.] 1905


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(1) Essa litografia foi feita pelo então juiz da comarca de Tucano (BA), com base em informações de oficiais da Expedição Moreira César, derrotada pelos sertanejos no início de março de 1897.







 "A história fará sua homenagem", Gereba Barreto e Ivanildo Vilanova, 2015, nos cento e oitenta e cinco anos de nascimento de Antonio Vicente Mendes Maciel (Quixeramobim, CE, 18/3/1830 - Canudos, BA, 22/9/1897), o Antonio Conselheiro.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016




Há cento e quinze anos nascia Cecília Meireles:

Um caminho singular no Modernismo brasileiro





"A onda", Anita Malfatti (1917)


Há cento e quinze anos, em sete de novembro de 1901, nascia Cecilia Benevides de Carvalho Meireles, na cidade do Rio de Janeiro, uma das poetas mais queridas do Brasil.

Com uma carreira artística e uma atividade intelectual prodigiosas para uma mulher da primeira metade do século passado, Cecília Meireles foi educadora vocacionada e militante da causa da Educação pública, professora universitária, estudiosa do folclore, jornalista, viajante atenta e apaixonada e, acima de tudo, poeta que teve a coragem silenciosa de seguir o seu próprio caminho, em oposição ao impulso moderno pelos manifestos e programas, que guiou a trajetória de tantos escritores ao longo do século.

Possivelmente por causa desse “caminho singular”, falta uma compreensão mais abrangente dessa trajetória e uma interpretação das opções formais e temáticas da escritora que, fiel ao intimismo, à musicalidade do verso – que dominou como poucos em nossa poesia - e à observação e investigação delicada e minuciosa dos seres, produziu uma obra de inúmeros pontos altos e admirável na sua coerência e na sua organicidade.

Cecília Meireles faleceu na mesma cidade do Rio de Janeiro, no dia nove de novembro de 1964.

A ela voltaremos, por dever de ofício.


PEQUENA FLOR


Como pequena flor que recebeu uma chuva enorme
e se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotas
na seda frágil, e preservar o perfume que aí dorme,

e vê passarem as leves borboletas livremente,
e ouve cantarem os pássaros acordados sem angústia,
e o sol claro do dia as claras estátuas beijando sente,

e espera que se desprenda o excessivo, úmido orvalho
pousado, trêmulo, e sabe que talvez o vento
a libertasse, porém a desprenderia do galho,

e nesse temor e esperança aguarda o mistério transida
assim, repleto de acasos e todo coberto de lágrimas
há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida.



Da obra: "Vaga música" (1942), in: Cecília Meireles - Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1987, p. 171.



http://famosos.culturamix.com/blog/wp-content/gallery/cecilia-meireles/cecilia-meireles-12.jpg 


domingo, 30 de outubro de 2016

 

Emil Mayer, fotógrafo

Imagens da Viena das duas primeiras décadas do séc. XX





Emil Mayer (5/10/1871, Neubydzow, Bohemia – 8/6/1938, Viena, Áustria) foi, na história da fotografia, um dos grandes artistas dedicados a documentar a vida nas cidades.



Começou a praticar a fotografia como amador, paralelamente à sua atividade como advogado, após ter obtido, em 1896, o doutorado em Direito pela Universidade de Viena. Ainda em sua época de estudante universitário, Mayer, de origem judaica, converteu-se para o catolicismo.



Emil Mayer também se dedicou à pesquisa em técnicas de obtenção de imagens fotográficas; em decorrência desse trabalho, obteve patentes e foi um dos maiores artistas europeus utilizando o método da impressão em gelatina de prata; com isso, abandonou o Direito, fundou uma firma de tecnologia em fotografia, ao mesmo tempo em que continuava a atuar como fotógrafo.



Angustiados com a perseguição pelo regime nazista, após a anexação da Áustria pela Alemanha, Mayer e a esposa suicidaram-se em 1938.



As imagens abaixo reproduzidas correspondem, portanto, à paisagem urbana da Viena, na qual também vivia e produzia a sua obra o escritor Robert Musil.



Fonte para as imagens:wikimedia.org e monovisions.com





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Barqueiro do Danúbio, com esposa e filho. Viena. Entre 1905 e 1914.






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Vendedoras de flores. Viena. Entre 1905 e 1914




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Restaurante Ankerhof, Hoher Markt 10. Viena. Entre 1905 e 1914.




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"No reino da ilusão". Viena. Entre 1905 e 1914





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Mulheres comprando flores. Entre 1905 e 1914




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Passeio em família no Wiener Prater, parque público em Viena. Entre 1905 e 1914




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Engraxate em frente à oficina, na Praça Stephan, Viena. Entre 1905 e 1914




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Vendedor de bilhetes de astrologia. Viena. Entre 1905 e 1914




File:Emil Mayer 078.jpg
Motorista de táxi. Viena. Entre 1905 e 1914




File:Emil Mayer 084.jpg
Passeio na Wiener Prater, parque público em Viena. Entre 1905 e 1914



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Viena. Kärntnerring. Final do século XIX. Autor desconhecido








sábado, 29 de outubro de 2016


O jovem Törless (1906), de Robert Musil

Turbulências nos subterrâneos do sujeito em plena Bella Époque 




Self Portrait with Physalis, 1915 by Egon Schiele

'Auto-retrato com fisális'', Egon Schiele, 1915.

 
''Era uma pequena estação de trens, no caminho para a Rússia.

Quatro trilhos de ferro corriam paralelos, interminavelmente, na direção dos dois lados, entre o cascalho amarelo da ampla ferrovia. Ao lado de cada trilho, como uma sombra suja, destacava-se o traço escuro queimado no chão pela fumaça dos trens.

Atrás da estação baixa e pintada a óleo, subia até a rampa da gare uma estrada larga e meio arruinada. Suas margens perdiam-se no solo espezinhado e só eram identificadas por duas acácias postadas de ambos os lados, tristes, com folhas sedentas e sufocadas pela fuligem.

Talvez fosse por causa dessas cores tristes, talvez pela luz pálida do sol da tarde, fraco e abafado pelo nevoeiro: objetos e pessoas pareciam indiferentes, mecânicos e sem vida, como num teatro de marionetes''.



''A esposa do Conselheiro da Corte Törless era a dama de uns quarenta anos que escondia atrás de um denso véu os olhos vermelhos de chorar. Estavam se despedindo, e era difícil permitir que seu único filho voltasse novamente por tanto tempo para junto de estranhos, sem que ela pudesse cuidar pessoalmente dele''.



''A Sra. Törless permitia que o filho ficasse num lugar tão distante e pouco aconchegante porque nele existia um famoso Internato, fundado no século anterior por uma ordem religiosa, e que se localizava lá certamente para proteger a juventude das influências corruptoras de uma grande cidade'' (pp. 7-8).




A Viena luminosa da Belle Époque


Esses são trechos do início de O jovem Törless (Die Verwirrungen des Zöglings Törless [As perturbações do aluno Törless), de Robert Musil (6/11/1880, Klangefurt, Império Austro-Húngaro – 15/4/1942, Genebra, Suíça), primeiro romance do autor, publicado em 1906.



Essa sua primeira peça, assim como as novelas de Três mulheres (Drei Frauen, 1924) servem como porta de entrada para a sua obra magna e um dos monumentos do gênero romance no século XX: O homem sem qualidades (Der Mann ohne Eigenschaften, 1930, 1932, 1943).



Exatamente por não se encontrarem atualmente em catálogo essas obras de um escritor tão importante da primeira metade do século XX, ao lado de Kafka, de Hermann Broch e de Thomas Mann, para nos limitarmos à literatura de língua alemã, é que se torna importante voltar a Musil, inclusive como forma de acesso a um dos momentos luminosos da Modernidade, qual seja, o Império Austro-Húngaro do início do século passado, tendo Viena como sua capital.

Nessa metrópole cosmopolita e nos demais centros do Império Austro-Húngaro viveram, nos últimos anos do século XIX e no princípio do século seguinte, além de Musil, Kafka e Broch, o escritor Arthur Schnitzler, os poetas Rainer Maria Rilke e Georg Trakl, Sigmund Freud, o satirista Karl Kraus, o filósofo Ludwig Wittgenstein, a tríade da Segunda Escola Vienense – cuja figura inaugural é o compositor Arnold Schönberg -, além do compositor e maestro Gustav Mahler, os pintores Gustav Klimt, Egon Schiele e Oskar Kokoschka e o dramaturgo Hugo von Hofmannsthal (celebrizado pela parceria, como libretista, nas óperas do alemão Richard Strauss).



Um elo de ligação nosso, aliás, com essa fase de esplendor da cultura europeia do início do século XX é o escritor Stefan Zweig, que aqui aportou em 1940, para palestras – desde esse ano já estava exilado nos EUA -, vindo a fixar-se no Brasil no ano seguinte, em Petrópolis, um ano antes de suicidar-se, juntamente com a sua companheira, Lotte, desiludidos e desgostosos com o desmoronamento de todo um mundo no qual foram formados.



Recorde-se, a propósito, que o Império Austro-Húngaro é o estopim da I Guerra Mundial, com o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, em 28 de junho de 1914, em Sarajevo, na Bósnia, pelo estudante servo-bósnio Gavrilo Princip. Esse fato e a sucessão posterior, encadeada, de fatos que desaguariam no grande conflito entre as potências, marca o fim da Belle Époque. O término da I Guerra Mundial, por sua vez, leva à desintegração de três Impérios: o Austro-Húngaro, o Otomano e o Russo.

A estreia marcante de um jovem autor, dedicado à psicologia e à filosofia



Impressiona que um jovem de apenas vinte e seis anos tenha publicado, em 1906, na contracorrente do espírito sorridente da Belle Époque, uma obra, como o próprio título indica, tão perturbadora.  

O escritor começou a trabalhar no romance em 1902, com vinte e dois anos. 

Musil graduou-se aos vinte e um anos, em Engenharia Mecânica, seguindo os rastros do pai, mas passa a dedicar-se, dois anos após, aos estudos de Psicologia e Filosofia, na Universidade de Berlim, áreas nas quais obtém o seu doutorado em 1909. Entre suas leituras, nos primeiros anos de Universidade, estão Nietzsche e Dostoiévski. Teve um encontro com Kafka em 1916, em Praga, por cuja obra nutria grande admiração.

Violência e impulsos sexuais


Uma forma de ler O jovem Törless é perceber como, em meio a todo o otimismo com uma civilização que vivia o esplendor dos avanços técnicos em grandes metrópoles iluminadas, com fartura de sensações, luzes, prazeres e divertimentos, a arte é capaz de captar fissuras, mal estar e sentidos ocultos e subterrâneos nas relações e estruturas sociais e nos espaços abissais do eu profundo dos indivíduos, por obra de um humanista como Musil, que foi, no dizer de Otto Maria Carpeaux, ''matemático por formação, de espírito científico, mas dotado de superior intuição poética (in: História da literatura ocidental, Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1966, tomo VII, p. 3.474).



Impulsionado pelo espírito de época, tal como em Schnitzler, a ferramenta para investigação da turbulência, isto é, as ''perturbações'' que inquietam e desestabilizam esses indivíduos é a confluência entre a agressividade e os impulsos sexuais, numa atmosfera sombria em que se auscultam sinais sísmicos que prenunciam, adiante, não muito distante no tempo, a materialização desse horror, em macro-escala social.



Törless é envolvido, num ritual de passagem degradante, nos jogos de poder e perversão entre, de um lado, Beineberg e Reitman, que têm personalidades ativas e impõem-se pela força, coerção e intimidação sobre os demais alunos, e, de outro lado, Basini, de personalidade passiva, e que se torna vítima daqueles dois alunos e, posteriormente, de Törless. O protagonista, seduzido por esse ambiente, deixa-se levar, não sem uma grande tortura interna, pela forma como Beineberg e Reitman usam Basini.



Beineberg, em especial, é mostrado de maneira irônica, pois nele convivem a truculência e preocupações pseudofilosóficas.




''Agora ele sabia distinguir entre o dia e a noite; na verdade, sempre soubera; apenas, um pesadelo deslizara por sobre essas fronteiras, confundindo-as, e ele se envergonhava dessa confusão. Contudo, a lembrança de que podia ser diferente, de que existem ao redor do ser humano fronteiras finas, facilmente extinguíveis, e de que sonhos febris se esgueiram em torno de nossa alma, corroendo os muros firmes e abrindo trilhas sinistras – essa lembrança se acomodara no fundo dele e irradiava suas pálidas sombras''. (pp. 192-193).



 

Edições



Ficam aqui as saudações à escritora Lya Luft, que, afora a sua obra como ficcionista, empenhou muita energia de seu talento, a fim de verter para a nossa língua importantes obras da literatura em língua alemã. É dela a tradução de O jovem Törless, bem como a de O homem sem qualidades, nesse último caso em parceria com Carlos Abbenseth. O número de página das citações acima refere-se à edição da Nova Fronteira, de 1981 (193 pp.).



Nenhuma das obras de Robert Musil está em catálogo das editoras brasileiras, infelizmente, muito embora possam ser encontradas, sem muita dificuldade, em lojas físicas ou virtuais de livros usados. 

O jovem Törless foi incluído recentemente numa coleção organizada pelo grupo do jornal Folha de S. Paulo.  

O homem sem qualidades, obra inacabada, publicada pela primeira vez no Brasil em 1989 – grande acontecimento editorial daquele ano -, pela Nova Fronteira (871 pp.), que lançou todos os livros do autor, foi reeditada em 2006, numa coleção especial comemorativa, com quarenta grandes romances publicados anteriormente pela editora, mas está fora de catálogo.



Consta para venda em alguns sítios virtuais o volume O melro e outros escritos, da editora Nova Alexandria (1996), mas não obtive maiores informações sobre o conteúdo dessa publicação.

n.b. Trata-se de uma coletânea de textos diversos, publicados por Musil em jornais e revistas (31/10/2016)


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Musil teve o dissabor de ver todas as suas obras banidas na Alemanha e na sua Áustria natal, sob o regime nazista. 

A intervalos, ao longo da História, tiranos e ditadores têm a especial preocupação de queimar livros, bibliotecas e, se necessário for, os autores dos livros também. Vide: Fernando Báez - História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Trad. Léo Schlafman, Rio de Janeiro, Ediouro, 2006 (512 pp.). Nesse último caso, citado pelo título, foram um milhão de livros destruídos, perdidos ou desviados, entre os quais tesouros da história da humanidade, para o prazer dos antiquários, agentes ou oportunistas de todo tipo.
 
Daqui a poucos dias transcorrerá a efeméride de cento e trinta e cinco anos do nascimento desse artista imenso, fruto de um humanismo e de uma vida de dedicação plena à arte, em luzes que se irradiam até os dias de hoje. Muito obrigado, Robert Musil, por esse precioso legado!


Robert Musil | La Parafe 

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Atualização: fui alertado que O homem sem qualidades, lançado anteriormente pela Editora Nova Fronteira, foi reeditado, em parceria com a Livraria Cultura, pela qual são feitas as vendas, com exclusividade. Boa notícia! (2/11/2016).