O jovem Törless (1906), de Robert Musil
Turbulências nos subterrâneos do sujeito em plena Bella Époque
'Auto-retrato
com fisális'', Egon Schiele, 1915.
''Era
uma pequena estação de trens, no caminho para a Rússia.
Quatro trilhos de
ferro corriam paralelos, interminavelmente, na direção dos dois
lados, entre o cascalho amarelo da ampla ferrovia. Ao lado de cada
trilho, como uma sombra suja, destacava-se o traço escuro queimado
no chão pela fumaça dos trens.
Atrás da estação
baixa e pintada a óleo, subia até a rampa da gare uma estrada larga
e meio arruinada. Suas margens perdiam-se no solo espezinhado e só
eram identificadas por duas acácias postadas de ambos os lados,
tristes, com folhas sedentas e sufocadas pela fuligem.
Talvez fosse por
causa dessas cores tristes, talvez pela luz pálida do sol da tarde,
fraco e abafado pelo nevoeiro: objetos e pessoas pareciam
indiferentes, mecânicos e sem vida, como num teatro de marionetes''.
''A esposa do
Conselheiro da Corte Törless era a dama de uns quarenta anos que
escondia atrás de um denso véu os olhos vermelhos de chorar.
Estavam se despedindo, e era difícil permitir que seu único filho
voltasse novamente por tanto tempo para junto de estranhos, sem que
ela pudesse cuidar pessoalmente dele''.
''A Sra. Törless
permitia que o filho ficasse num lugar tão distante e pouco
aconchegante porque nele existia um famoso Internato, fundado no
século anterior por uma ordem religiosa, e que se localizava lá
certamente para proteger a juventude das influências corruptoras de
uma grande cidade'' (pp. 7-8).
A Viena luminosa da Belle Époque
Esses são trechos do
início de O jovem Törless (Die Verwirrungen des Zöglings
Törless [As perturbações do aluno Törless),
de Robert Musil (6/11/1880,
Klangefurt, Império Austro-Húngaro – 15/4/1942, Genebra, Suíça),
primeiro romance do autor, publicado em 1906.
Essa
sua primeira peça, assim como as novelas de Três
mulheres (Drei Frauen,
1924)
servem como porta de entrada para a sua obra magna e um dos
monumentos do gênero romance no século XX: O homem sem
qualidades (Der Mann ohne Eigenschaften,
1930, 1932, 1943).
Exatamente
por não se encontrarem atualmente em catálogo essas obras de um
escritor tão importante da primeira metade do século XX, ao lado de
Kafka, de Hermann Broch e de Thomas Mann, para nos limitarmos à
literatura de língua alemã, é que se torna importante voltar a
Musil, inclusive como forma de acesso a um dos momentos luminosos da
Modernidade, qual seja, o Império Austro-Húngaro do início do
século passado, tendo Viena como sua capital.
Nessa metrópole cosmopolita e nos demais centros do Império Austro-Húngaro viveram, nos últimos anos do século XIX e no princípio do século seguinte, além de Musil, Kafka e Broch, o escritor Arthur
Schnitzler, os
poetas Rainer Maria Rilke e Georg Trakl, Sigmund
Freud,
o satirista Karl Kraus,
o filósofo Ludwig Wittgenstein, a tríade da Segunda Escola Vienense
– cuja figura inaugural é o compositor Arnold Schönberg -, além
do compositor e maestro Gustav Mahler, os pintores Gustav Klimt, Egon
Schiele e Oskar Kokoschka e o dramaturgo Hugo von Hofmannsthal
(celebrizado pela parceria, como libretista, nas óperas do alemão
Richard Strauss).
Um
elo de ligação nosso, aliás, com essa fase de esplendor da cultura
europeia do início do século XX é o escritor Stefan Zweig, que
aqui aportou em 1940, para palestras – desde esse ano já estava
exilado nos EUA -, vindo a fixar-se no Brasil no ano seguinte, em
Petrópolis, um ano antes de suicidar-se, juntamente com a sua
companheira, Lotte, desiludidos e desgostosos com o desmoronamento de
todo um mundo no qual foram formados.
Recorde-se,
a propósito, que o Império Austro-Húngaro é o estopim da I Guerra Mundial, com o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, em 28 de junho de
1914, em Sarajevo, na Bósnia, pelo estudante servo-bósnio Gavrilo
Princip. Esse fato e a sucessão posterior, encadeada, de fatos que desaguariam no grande conflito entre as potências, marca o fim da Belle Époque. O término da I Guerra Mundial, por sua vez, leva à desintegração de três
Impérios: o Austro-Húngaro, o Otomano e o Russo.
A estreia marcante de um jovem autor, dedicado à psicologia e à filosofia
Impressiona
que um jovem de apenas vinte e seis anos tenha publicado, em 1906, na
contracorrente do espírito sorridente da Belle Époque,
uma obra, como o próprio título indica, tão perturbadora.
O escritor
começou a trabalhar no romance em 1902, com vinte e dois anos.
Musil graduou-se aos vinte e um anos, em Engenharia Mecânica,
seguindo os rastros do pai, mas passa a dedicar-se, dois anos após,
aos estudos de Psicologia e Filosofia, na Universidade de Berlim,
áreas nas quais obtém o seu doutorado em 1909. Entre suas leituras,
nos primeiros anos de Universidade, estão Nietzsche e Dostoiévski.
Teve um encontro com Kafka em 1916, em Praga, por cuja obra nutria
grande admiração.
Violência e impulsos
sexuais
Uma
forma de ler O
jovem Törless
é perceber como, em meio a todo o otimismo com uma civilização que
vivia o esplendor dos avanços técnicos em grandes metrópoles
iluminadas, com fartura de sensações, luzes, prazeres e
divertimentos, a arte é capaz de captar fissuras, mal estar e
sentidos ocultos e subterrâneos nas relações e estruturas sociais
e nos espaços abissais do eu profundo dos indivíduos, por obra de
um humanista como Musil, que foi, no dizer de Otto Maria Carpeaux,
''matemático por formação, de espírito científico, mas dotado de
superior intuição poética (in: História
da literatura ocidental,
Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1966, tomo VII, p. 3.474).
Impulsionado pelo espírito de época, tal como em Schnitzler, a
ferramenta para investigação da
turbulência, isto é, as ''perturbações'' que inquietam e
desestabilizam esses indivíduos é a confluência entre a
agressividade e os impulsos sexuais, numa atmosfera sombria em que se
auscultam sinais sísmicos que prenunciam, adiante, não muito distante no
tempo, a materialização desse horror, em macro-escala social.
Törless é envolvido,
num ritual de passagem degradante, nos jogos de poder e perversão
entre, de um lado, Beineberg e Reitman, que têm personalidades
ativas e impõem-se pela força, coerção e intimidação sobre os
demais alunos, e, de outro lado, Basini, de personalidade passiva, e
que se torna vítima daqueles dois alunos e, posteriormente, de
Törless. O protagonista, seduzido por esse ambiente, deixa-se levar, não sem uma grande tortura interna, pela forma
como Beineberg e Reitman usam Basini.
Beineberg, em especial, é
mostrado de maneira irônica, pois nele convivem a truculência e
preocupações pseudofilosóficas.
''Agora ele sabia
distinguir entre o dia e a noite; na verdade, sempre soubera; apenas,
um pesadelo deslizara por sobre essas fronteiras, confundindo-as, e
ele se envergonhava dessa confusão. Contudo, a lembrança de que
podia ser diferente, de que existem ao redor do ser humano
fronteiras finas, facilmente extinguíveis, e de que sonhos febris se
esgueiram em torno de nossa alma, corroendo os muros firmes e abrindo
trilhas sinistras – essa lembrança se acomodara no fundo dele
e irradiava suas pálidas sombras''. (pp. 192-193).
Edições
Ficam aqui as saudações à escritora Lya Luft, que, afora a sua
obra como ficcionista, empenhou muita energia de seu talento, a fim
de verter para a nossa língua importantes obras da literatura em
língua alemã. É dela a tradução de O jovem Törless,
bem como a de O homem sem qualidades, nesse
último caso em parceria com Carlos Abbenseth. O número de página
das citações acima refere-se à edição da Nova Fronteira, de
1981 (193 pp.).
Nenhuma
das obras de Robert Musil está em catálogo das editoras
brasileiras, infelizmente, muito embora possam ser encontradas, sem
muita dificuldade, em lojas físicas ou virtuais de livros usados.
O
jovem Törless foi incluído
recentemente numa coleção organizada pelo grupo do jornal Folha de
S. Paulo.
O homem sem qualidades, obra
inacabada, publicada
pela primeira vez no Brasil em 1989 – grande acontecimento
editorial daquele ano -, pela Nova Fronteira (871 pp.), que
lançou todos os livros do autor, foi
reeditada em 2006, numa coleção especial comemorativa, com quarenta
grandes romances publicados anteriormente pela editora, mas está
fora de catálogo.
Consta
para venda em alguns sítios virtuais o volume O melro e
outros escritos, da editora Nova
Alexandria (1996), mas não obtive maiores informações sobre o
conteúdo dessa publicação.
n.b. Trata-se de uma coletânea de textos diversos, publicados por Musil em jornais e revistas (31/10/2016)
*
Musil
teve o dissabor de ver todas as suas obras banidas na Alemanha e na
sua Áustria natal, sob o regime nazista.
A intervalos, ao longo da História, tiranos e ditadores têm a especial preocupação de queimar livros, bibliotecas e, se necessário for, os autores dos livros também. Vide: Fernando Báez - História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Trad. Léo Schlafman, Rio de Janeiro, Ediouro, 2006 (512 pp.). Nesse último caso, citado pelo título, foram um milhão de livros destruídos, perdidos ou desviados, entre os quais tesouros da história da humanidade, para o prazer dos antiquários, agentes ou oportunistas de todo tipo.
Daqui
a poucos dias transcorrerá a efeméride de cento e trinta e cinco
anos do nascimento desse artista imenso, fruto de um humanismo e de uma vida de dedicação plena à arte, em luzes que se irradiam até os dias de hoje. Muito obrigado, Robert Musil, por esse precioso legado!
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Atualização:
fui alertado que O homem sem qualidades, lançado anteriormente pela Editora Nova Fronteira, foi reeditado, em parceria com a Livraria Cultura, pela qual são feitas as vendas, com exclusividade. Boa notícia! (2/11/2016).