domingo, 1 de outubro de 2017


A dama de espadas. Prosa e poemas, de Aleksandr Púchkin

O impulsionador de uma nova tradição literária na Rússia





                                                            “Púchkin”, de Orest Kiprensky, 1827
 


O PROSADOR E O POETA

Por que te inquietas, prosador?
Escolhe os temas e, ao que for,
eu darei gume, alada rima,
e farei dele flecha exímia
que, após deixar a corda tesa
do arco dobrado servilmente,
voará certeira até que a presa,
nosso inimigo, se lamente!

(1825)

No dia 6 de junho, a Rússia comemora o Dia de Púchkin, um feriado nacional: as pessoas reúnem-se junto ao Monumento a Púchkin, levam flores e põem-se a recitar ou escutar os seus poemas. Em Bruxelas, em Sófia, em Nova Déli, em Madri, em Roma, há eventos semelhantes. Na Inglaterra, há um tradicional Festival Púchkin. Isso dá uma ideia da grandeza desse escritor, cuja arte continua a se irradiar até os dias de hoje. Em 2010, a Unesco aprovou tornar 6 de junho, igualmente, como o Dia da Língua Russa.

A grande tradição da literatura russa, inicia-se com o filho da aristocracia, Aleksandr Sierguéievitch Púckin (Moscou, 26/5/1799 – São Petersburgo, 29/1/1837).

Como é possível que se diga que Púchkin inicia uma nova tradição na literatura russa? Tome-se o caso da dramaturgia, por exemplo: afora as comédias de costumes, havia, no cenário teatral do começo do século XIX, peças traduzidas do francês ou do italiano ou imitações da tragédia neoclássica. Púchkin, em uma produção que se estende por apenas duas décadas, toma a si a tarefa de conciliar a língua russa verdadeiramente falada com os mais diversos gêneros literários que praticou. Púchkin foi, assim, ao mesmo tempo, um inventor e um mestre, para usar a terminologia de Ezra Pound. E tudo isso, lembre-se, numa vida que se encerrou abrupta e precocemente, num duelo.


Praticamente sozinho, o poeta teve que tomar inúmeras decisões, das menores às maiores, fazer centenas de escolhas, optar por tais ou quais modelos que pudessem ser, pela primeira vez, copiados, melhorados, deturpados etc. numa língua, numa tradição e num meio literário virgens, sem poder recorrer a precedentes bons ou ruins.
Quem inventou o soneto na Itália medieval não escreveu o primeiro grande soneto: este levaria ainda um século para surgir. Púchkin escreveu o primeiro grande soneto russo, a primeira grande balada, a primeira grande epopeia, a primeira grande tragédia, os primeiros grandes epigramas, os primeiros grandes poemas amorosos, os primeiros grandes contos, o primeiro grande romance histórico, e assim por diante. O admirável é que, quase sempre, ele escreveu tanto o "primeiro" de cada gênero quanto o "primeiro grande".
(Nelson Ascher In: “Uma enciclopédia da vida russa. Púchkin e a invenção de uma tradição”, Folha de S. Paulo, 3/10/2012, caderno Ilustríssima, p. 3).

A morte de Púchkin abala fortemente Gógol e Liérmontov, com os quais tinha relação de profunda amizade e aos quais inspirou e influenciou. A Gógol, inclusive, a morte do amigo tem o efeito, num primeiro momento, de interromper temporariamente a sua produção criativa; após isso, o escritor sente-se estimulado a concluir Almas mortas, cuja ideia – da mesma forma como acontecera com O inspetor geral - fora-lhe fornecida por Púchkin.

O opus magnum de Púchkin é a narrativa em versos – formato herdado de Byron - Ievguêni Oniéguin (1833), à qual ele se dedicou por cerca de oito anos. Trata-se de obra, sob o ponto de vista formal, extremamente complexa, com pouco mais de quatrocentas estrofes que são como pequenos sonetos, com quatorze versos rimados de oito sílabas métricas.
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O presente volume traz uma coletânea de narrativas – novelas e contos – e uma pequena seleta de poemas.

As duas primeiras narrativas chegaram-nos inacabadas: “O negro de Pedro, o Grande” e “Dubróvski”.

O negro de Pedro, o Grande”, escrita em 1827, tem base semidocumental. Abram Ganíbal foi trisavô de Púchkin pelo lado materno. Pesquisas posteriores comprovaram que Abram, nascido Ibraim, nasceu no antigo Sudão Central. Foi comprado pelo Sultão de Constantinopla e dado de presente para o czar Pedro, o Grande. Púchkin orgulhava-se de suas raízes africanas, como também de sua linhagem aristocrática paterna.

Entre os jovens que Pedro, o Grande, enviou a terras estranhas, a fim de obterem informações indispensáveis à reforma do Estado, figurava o negro Ibraim, afilhado do czar. O jovem estudou na escola militar de Paris, foi promovido a capitão de artilharia, destacou-se na guerra da Espanha e, depois de gravemente ferido, voltou a Paris. (p. 19).

Ibraim vive, em Paris, um amor com uma condessa casada, o que desperta mexericos redobrados, pela infidelidade e pelo inusitado da relação de uma nobre com um negro.

A nova ligação da condessa logo se tornou conhecida por todos. Algumas senhoras se admiravam da sua escolha; para muitos, todavia, ela parecia bem natural. Alguns riam, outros viam uma imprudência indesculpável da sua parte. Nos primeiros transportes da paixão, Ibraim e a condessa nada percebiam, mas pouco foi preciso para que começassem a chegar até eles as pilhérias ambíguas dos homens e as observações ferinas das mulheres. (pp. 24-25).

Outras peripécias acontecerão com a volta de Ibraim para a Rússia.

Com essa primeira novela, o leitor já tem contato com uma qualidade refinada da prosa do grande escritor russo: a fluência e elegância de sua escrita e, de maneira igualmente admirável, a sua capacidade de rapidamente situar a cena, os personagens, e apresentar o nó da narrativa.

O estilo do autor busca a concisão, o que confere leveza e atualidade ao seu texto e, como essa virtude está na essência da poesia, surgem daí algumas das razões de Púchkin ser considerado o grande poeta russo, num país de tão magistrais artistas do verso.

O Narrador de Púchkin interessa-se sobremaneira pela trama e pela forma como reagem as personagens envolvidas; quase não se vê descrição de locais, paisagem, compleição física ou indumentária de personagens, o que, muitas vezes, como se sabe, toma parágrafos e até páginas de certa literatura romântica.




                                 Auto-retrato de Púchkin, 1820s
  
Vivia anos atrás, numa das suas propriedades, o grão-senhor russo de antiga linhagem Kirila Pietróvitch Troiekurov. A sua riqueza, alta estirpe e boas relações davam-lhe muita importância na região em que se localizava a sua propriedade. Os vizinhos ficavam contentes de satisfazer-lhe os menores caprichos; as autoridades provinciais tremiam ao ouvir o seu nome; Kirila Pietróvitch aceitava as provas de subserviência como tributo que lhe fosse devido; a sua casa estava sempre cheia de convidados, prontos a divertir a sua ociosidade senhoril, e que tomavam parte em seus ruidosos e às vezes violentos divertimentos. (p. 61).

A interessantíssima novela “Dubróvski”, encontrada entre os papeis do autor, entrelaça três topoi: os labirintos e os absurdos do Judiciário, o bandido justiceiro e os amantes de famílias rivais.

Terá Púchkin tomado contato com a novela Michael Kohlhaas (1810) de Heinrich von Kleist (1777 – 1811)? Se não foi o caso, Kafka apreciou esse escritor alemão que, certamente, foi uma inspiração para o romance O processo. As filiações românticas em “Dubróvski” transparecem na imagem idealizada do protagonista e no desenvolvimento do enredo que leva a que os destinos dos amantes venham a cruzar-se, afora outras características.

A observação do cotidiano da vida provinciana da Rússia sob o regime da servidão dá especial interesse à novela e permite-nos contextualizar as inquietações social e política que percorrem a história do país no século XIX, com o desfecho que se seguiria no começo do século seguinte. Inquietações, aliás, que estiveram presentes na vida de Púchkin: instalado em São Petersburgo, após a conclusão de sua formação acadêmica, começou a trabalhar no Ministério de Relações Exteriores, em 1820, e envolve-se com movimentos reformistas; com a repressão do governo, sob o czar Alexandre I, o escritor é desterrado e, a serviço do general Ínzov, conhece o Cáucaso e a Crimeia, o que lhe dá um retrato da vida e dos costumes nessas regiões da Rússia.

A defesa da reforma social apresenta-se na novela na forma como o Narrador expõe a classe ociosa dos grãos-senhores, aqui representado pelo bronco, bossal e perverso Kirila Pietróvitch Troiekurov, e, como consequência, o ambiente opressivo da província por força do poder dos proprietários de terras. E o narrador, na tradição de intimidade com o leitor que vem do século XVIII, não esconde que toma partido e o seu propósito de expor as entranhas dessas estruturas de desigualdade:

Fez-se um silêncio profundo, e o secretário do tribunal passou a ler a resolução com voz sonora. Vamos transcrevê-la na íntegra, pois supomos que o leitor gostará de conhecer um dos meios pelos quais, na Rússia, podemos perder uma propriedade sobre a qual temos direitos indiscutíveis. (p. 70).

A respeito, surpreende a ousadia do Narrador de ocupar oito páginas da novela com uma sentença judicial, o que também é mostra daquela determinação, antes citada, de analisar o modus operandi do poder e da opressão no interior da Rússia.

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A dama de espadas”, novela-título do volume, de 1831, serviu de base para a ópera homônima de Tchaikóvsky, de 1890 e tem, curiosamente, um longo histórico de adaptações para o cinema, como por exemplo, entre os longa-metragens, pelo diretor russo Yakov Protazanov (“Pikovaia dama”, 1916); por Fyodor Otsep, em uma produção francesa de 1937 (“La dame de pique”); por Thorold Dickinson, em uma produção inglesa de 1949 (“The queen of spades”; por Léonard Keigel, em uma produção francesa de 1965 (“La dame de pique”) e por Pavel Lungin, em uma produção russa recente, de 2016 (“Dama pik”). A primeira adaptação cinematográfica da novela ocorreu num curta-metragem russo, de 1910, sob a direção de Pyotr Chardynin.

Se se pode ver tons de Kleist em “Dubróvski”, “A dama de espadas”, contrariamente, pode ser entendido, guardadas as diferenças de época, estilo e intenções, como uma fonte inspiradora para Crime e castigo (1866), de Dostoiévski. Da mesma forma como na obra monumental posterior de seu conterrâneo, temos aqui um jovem - um engenheiro - ambicioso e amoral, Hermann, que, movido pela cobiça, idealiza e executa, minuciosamente, um plano para aproximar-se de uma condessa, de oitenta e sete anos, a fim de dela obter um mecanismo secreto para obter fortuna em jogo de cartas. Para atingir seu intento, Hermann não hesita em aproveitar-se da inocência de Ielisavieta Ivânovna (também identificada como Lisavieta ou Lísanka), pupila da condessa.

A trama, de feitio gótico, com elementos macabros e sobrenaturais, resvalando num pacto demoníaco, redunda numa tragédia.

Por meio de bela passagem com o recurso de discurso indireto livre, o Narrador extrai forte efeito dramático, arremessando o leitor para dentro da ansiedade e da angústia de Lisavieta:

Lisavieta Ivanôvna, ainda em traje de baile, estava sentada em seu quarto, imersa em profunda meditação. Assim que chegara, apressara-se a dispensar a criada sonolenta que lhe oferecera de má vontade os seus préstimos; disse-lhe que ia despir-se sozinha, e entrou trêmula no quarto, esperando encontrar ali Hermann, e não querendo encontrá-lo. Certificou-se, ao primeiro olhar, da sua ausência e agradeceu ao destino o obstáculo que impedira aquela entrevista. Sentou-se sem se despir, e começou a lembrar todas as circunstâncias que a arrastaram tão longe em tão pouco tempo. Não passaram ainda três semanas desde que ela vira da sua janelinha, pela primeira vez, aquele jovem, e já mantinha correspondência e ele conseguira dela uma entrevista noturna! (p. 171).

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O chefe da estação

Quem não maldisse um dia os chefes de estação, quem não brigou com eles? Quem, num momento de furor, não lhes exigiu o livro fatal, para inscrever nele a sua inútil queixa contra a prepotência, a brutalidade e a incúria? Quem não os considera monstros da espécie humana, idênticos aos falecidos sub-amanuenses ou pelo menos aos bandoleiros de Múrom? Sejamos, todavia, justos e procuremos colocar-nos na sua posição, e talvez os consideremos então com muito maior condescendência. (p. 183)

Esse conto curto e singelo mostra, mais uma vez, a capacidade do escritor de voltar o olhar para as personagens simples das vastidões russas, no caso um Chefe de estação que mora com sua encantadora e jovem filha. Naquela época, essas estações eram postos nos quais se fazia a troca de cavalos, para que as carruagens pudessem seguir viagem, com animais descansados.
O chefe da estação” e os demais contos do volume apareceram nas Novelas do falecido Ivan Pietróvitch Biélkin (1830).
A narrativa, de tons melancólicos, é contada em primeira pessoa por um funcionário de “posto modesto” e nela acompanhamos a abrupta perda da inocência da menina – Avdótia, tratada afetivamente como Dúnia - a quem a vida do Chefe da estação é dedicada.
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O tiro”, ficcionalizado a partir de elementos autobiográficos, mais uma vez segue a estrutura do conto anterior: uma personagem que está próxima aos fatos do enredo narra em primeira pessoa uma história em que outras personagens serão as protagonistas.

Num destacamento militar situado num lugarejo, Sílvio é o único civil que reside nas redondezas. O narrador é um jovem oficial que se impressiona com esse senhor de cerca de trinta e cinco anos e que tem incrível habilidade de atirador.

O conto é uma oportunidade de conhecer códigos culturais sinistros de sociedades fortemente estruturadas sobre o conceito de honra, como é o caso da Rússia à época de Púchkin; o próprio artista, lamentavelmente, foi vítima desses valores, em um duelo, como também, quatro anos depois, o seu pupilo e amigo Mikhail Liérmontov.

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Os tons sombrios desfazem-se em “O fazedor de caixões”: contada em terceira pessoa é uma narrativa leve e bem-humorada, mostrando, assim, a versatilidade do autor.
O interesse de Púchkin pelas pessoas simples que ganham modestamente a vida nas mais distantes localidades da Rússia, o faz, aqui, retratar um agente funerário, extraindo daí situações em que, com habilidade, juntam-se o cômico e o macabro, bem à maneira das narrativas de sabor popular encontráveis em todas as culturas.

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Kirdjali” é também um conto saboroso, narrado em terceira pessoa. O título é o nome da personagem retratada, líder de uma malta de salteadores: “(…) búlgaro de nascimento. Kirdjali, em turco, significa paladino, valente. Não sei o seu verdadeiro nome. // Kirdjali aterrorizava toda a Moldávia com o seus atos de banditismo.” (p. 221)
Kirdjali e seu bando põem os seus serviços à disposição das lutas insurrecionais dos povos da região, mas tendo em mente sempre, independentemente da causa, a oportunidade de auferir os melhores benefícios materiais. Apesar dos métodos violentos do bando, o conto é dirigido para impressionar o leitor com a astúcia de Kirdjali.

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Encerra o volume uma seleta de poemas do patrono russo da poesia e das letras, que deixou um legado inestimável no percurso de uma vida tão breve. A pequena recolha faz brilhar a mente do leitor à vista da habilidade refinadíssima do versejador, da sua verve, espirituosidade e capacidade de fazer desfilar diante de nós pedras de toque com tanta profusão: pequenas joias de grande dimensão artística do imortal Púchkin.

Nicolau I

Há pouco é tsar e opera
milagres com afinco:
mandou já cento e vinte homens à Sibéria
e, ao cadafalso, cinco.

(1826?)

(p. 238)

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Edição utilizada:
PÚCHKIN, Aleksanr. A dama de espadas. Prosa e poemas. 2ª ed., trad. Boris Schnaiderman e Nelson Ascher, São Paulo: Editora 34, 2006, prefácio de Boris Schnaiderman; texto nas duas orelhas: Aurora Bernardini; capa contém desenho a bico de pena de Púchkin, aquarelados por Cynthia Cruttenden. 264 pp. 14x21cm.



                 Biblioteca e mesa de trabalho de Púchkin em São Petersburgo

Imagens:
Púchkin”, de Orest Kiprensky, 1827, óleo sobre tela, 63x54cm. Galeria Tretyakov, Moscou.
http://artrussia.ru/en/picture_rarity/110
Auto-retrato de Púshkin, ca. 1820
http://www.saint-petersburg.com/famous-people/alexander-pushkin/

Biblioteca e mesa de trabalho de Púchkin em São Petersburgo
http://www.saint-petersburg.com/famous-people/alexander-pushkin/




A dama de espadas”: dueto de Hermann e Lisa, com Plácido Domingo e Galina Gorchakova, 1998; da ópera de Tchaikóvsky, de 1890.