Memórias do subsolo, de Fiódor Dostoiévski
Um mergulho no subsolo do homem contemporâneo
Oswaldo
Goeldi: “Luz
Noturna”
Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma instrução, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. (p. 15).
*
Poucas vezes como aqui,
nessa novela de Dostoiévski (Moscou, 11/11/1821 – São
Petersburgo, 9/2/1881), a literatura ocidental terá atingido tal
grau de radicalidade, seja no plano da forma dessa obra de arte,
seja, quanto ao seu conteúdo, na sua capacidade de escavar o subsolo
do homem e de sua época.
A
força explosiva e paradoxal dessa obra inaugura a parte final da
trajetória artística do escritor russo, em que se destacam os
“cinco elefantes”, denominação dada aos grandes romances que
terão papel central na literatura, na arte, na cultura e na
filosofia: Crime
e castigo
(1865), O
idiota
(1869), Os
demônios
(1872), O
adolescente
(1875) e Os
irmãos Karamázov
(1881).
*
Em
1859, Dostoiévski readquire a liberdade, depois de dez anos de
prisão, trabalhos forçados e exílio como pena por sua participação
no Círculo Petrashevski, um grupo acusado de conspirar contra o czar
Nicolau I. Essa dura experiência serviu de base para as Recordações
da Casa dos Mortos
(1862), obra que traz de volta ao autor reconhecimento do público,
após o seu período de afastamento. Antes dessa obra e após o seu
retorno à Rússia, publicara O
sonho do Tio
(1859), A
aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes
(1859) e Humilhados
e ofendidos
(1861).
Entre
1862 e 1863, o escritor viajou pela Europa, passando por Berlim,
Paris, Londres, Genebra, Turim, Florença e Viena, período em que
perdeu muito dinheiro por vício em jogo, experiência que daria
origem ao romance O
jogador
(1867)
Em
1864, finalmente, publica Memórias
do subsolo,
no jornal “Época”, que fundara
com
o seu irmão, Mikhail.
*
A novela, de caráter
híbrido, tanto pela sua estrutura como pelos seus conteúdos ao
mesmo tempo literário e filosófico, compõe-se de duas partes: “O
subsolo” e “A propósito da neve molhada”, ambas narradas por
um Narrador em primeira pessoa, do qual – começam aí as
estranhezas - não sabemos o nome.
Em verdade, a
originalidade da obra dá-se antes mesmo do início da narrativa: no
primeiro trecho de uma nota introdutória, o escritor assinala que
“tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente,
imaginários”.
Ou seja, o autor, de
plano, ousadamente desvia-se da prática literária hegemônica até
então, pela qual a obra literária se esforçava para exercer a
“suspensão da desconfiança” do leitor. É justamente contra
esse ilusionismo que, muito tempo depois, o dramaturgo, escritor,
ensaista e encenador alemão Bertolt Brecht (1898 - 1956)
desenvolveria teórica e artisticamente, no âmbito do “teatro
épico”, a técnica por ele denominada de “efeito de
estranhamento” (também conhecida como “efeito de
distanciamento”), para estimular que o receptor assuma uma postura
crítica diante da obra de arte.
Memórias
do subsolo
é também uma obra de combate, profundamente inserida nas discussões
e nos impasses da sociedade russa do seu tempo, às voltas com as
tentativas, por um certo setor da intelligentsia,
de criar no país as condições para um aggiornamento
fértil para uma revolução ou modernização burguesas. O autor,
crítico a essa tendência e da sociedade que começa a se moldar por
força dessas transformações, vai além desse contexto, contudo,
dando matizes filosóficos a esse debate, absorvido indiretamente
para dentro da narrativa, sempre por meio da “tagarelice”
crispada e raivosa do protagonista, notadamente na primeira parte da
novela.
Tagarela,
como ele próprio se denomina, irreverente, corrosivo, sarcástico,
autodestrutivo, anárquico, contraditório, oscilando entre arroubos
e o patético, o Narrador conta com quarenta anos no
momento em que redige as suas memórias, dirigindo-se a
interlocutores, frequentemente designados como “meus senhores”,
todavia não identificados.
Na rica linhagem dos
pobres-diabos da literatura russa, o Narrador foi um órfão criado
por parentes distantes e dos quais não teve mais notícias.
Desde os primeiros anos
escolares, as recordações que lhe vêm são aquelas que o
perseguiriam por toda a vida: sentir-se dessemelhante, ter desprezo
por aqueles que o rodeiam e, por via de consequência, o sentimento
de superioridade em relação ao seu meio social (cf. pp. 81-83).
São
Petersburgo, 1895
Fiz parte do funcionalismo a fim de ter algo para comer (unicamente para isto), e quando, no ano passado, um dos meus parentes afastados me deixou seis mil rublos em seu testamento, aposentei-me imediatamente e passei a viver neste meu cantinho. Já antes disso vivi aqui, mas agora instalei-me nele. Tenho um quarto ordinário nos arredores da cidade. A minha criada é uma aldeã velha, ruim por estupidez, e, além disso, cheira sempre mal. Dizem-me que o clima de Petersburgo está-me prejudicando e que, para os meus insignificantes recursos, a vida aqui é muito cara. Sei disso; sei melhor que todos estes conselheiros e protetores experimentados e sábios. Mas ficarei em Petersburgo; não deixarei esta cidade! Não a deixarei porque... Eh! Mas, na realidade, me é de todo indiferente o fato de que a deixe ou não.Dizei-me: de que pode falar um homem decente, com o máximo prazer?Resposta: de si mesmo.Então, também vou falar de mim. (pp. 17-18).
Ao tratar de si, como se
propõe, o Narrador dirigirá, em verdade, radicalmente, o seu olhar
para os fundamentos - o subsolo - do sujeito, da sociedade e da
cultura de sua época, em uma crítica tão aguda que, certamente,
está ainda carregada de atualidade. Ademais, a tagarelice reflexiva
do Narrador impressiona duplamente, uma vez que essa nova sociedade,
florescente na Europa ocidental, era ainda muito embrionária na
Rússia de meados do século XIX e, por outro lado, a visão crítica
dessa nova formação social ainda estava nascente em outros campos
do conhecimento, na Filosofia, na História, na Sociologia ainda em
formação.
Se a radicalidade desse
olhar já parece ousada na década de 60 do século XIX, que se dirá
do próprio questionamento desse olhar?
Eis o que seria melhor mesmo: que eu próprio acreditasse, um pouco que fosse, no que acabo de escrever. Juro-vos, meus senhores, que não creio numa só palavrinha de tudo quanto rabisquei aqui! Isto é, talvez eu creia, mas, ao mesmo tempo, sem saber por quê, sinto e suspeito estar mentindo como um desalmado. (p. 51).
Estais rindo? Fico muito contente. Os meus gracejos, senhores, são naturalmente de mau gosto, desiguais, incoerentes, repassados de autodesconfiança. Mas isto realmente ocorre porque eu não me respeito. Pode porventura um homem consciente respeitar-se um pouco sequer? (p. 28).
Opondo-se às propostas
para amoldar a sociedade e a cultura russas de forma a criarem-se as
condições para a revolução industrial, o Narrador investe
duramente contra os efeitos dessas transformações: a alienação, a
consciência fragmentada e o positivismo.
Repito, repito com insistência: todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomas as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então se acalmam; e isto é de fato o mais importante. Para começar a agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranquilo, não conservando quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me tranquilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras, em que me apoie? Onde estão só fundamentos? Onde irei buscá-los? Faço exercício mental e, por conseguinte, em mim, cada causa primeira arrasta imediatamente atrás de si outra, ainda anterior, e assim por diante, até o infinito. Tal é, de fato, a essência de toda consciência, do próprio ato de pensar.” (p. 30).
A implicância do
Narrador com a sociedade do cálculo garante momentos memoráveis,
que beiram o cômico. Para ele, a razão, puramente, não dá conta
do imponderável da alma humana e até mesmo do irracional e do
sombrio que espreitam tudo o que é humano.
Suponhamos que o homem não faça outra coisa senão procurar este dois e dois são quatro: ele atravessa os oceanos a nado, sacrifica a vida nesta busca, mas, quanto a encontrá-lo realmente... juro por Deus, tem medo. Bem que ele sente: uma vez encontrado isto, não haverá mais o que procurar. Operários que terminam uma tarefa com certeza recebem dinheiro e vão a um botequim , acabando no distrito policial – bem, aí estão ocupações para uma semana. Mas o homem para onde irá? Percebe-se nele constantemente algo de inábil toda vez que atinge tais objetivos. Ele ama o ato de alcançar, mas, alcançar, de fato, nem sempre. E isto, está claro, é ridículo ao extremo. Numa palavra, o homem está arranjado de modo cômico; em tudo isso, provavelmente, há um trocadilho. Mas dois e dois são quatro é, apesar de tudo, algo totalmente insuportável. Dois e dois são quatro constitui, a meu ver, simplesmente uma impertinência. Dois e dois fica feito um peralvilho, atravessado no vosso caminho, as mãos nas cadeiras, cuspindo. Estou de acordo em que dois e dois são uma coisa admirável; mas, se é para elogiar tudo, então dois e dois são cinco também constitui, às vezes, uma coisinha simpática. (p. 47).
Na segunda parte - “A
propósito da neve molhada” - desenvolve-se, propriamente, o
segmento dramático da narrativa. Registre-se, a propósito, outro
aspecto importante da novela: o Narrador não é um observador
distante dos fenômenos que delineia e critica; o seu próprio ser é
um campo de batalha das tensões e contradições do novo sujeito que
se insinua na sociedade russa em transformação. Tudo isso ficará
claro e adquirirá tons dramáticos nessa parte final da novela.
Os acontecimentos
narrados na segunda parte ocorrem dezesseis anos antes do momento em
que o Narrador redige as suas memórias e têm o seu clímax quando
do encontro com a prostituta Liza, depois de algumas peripécias
envolvendo a busca – carregada de elementos contrastivos:
desespero, desprezo pelos semelhantes, auto-humilhação – de
relacionamento social com colegas de trabalho e antigos colegas de
escola.
No curto envolvimento com
Liza, o entrechoque extremo de forças contrárias na interioridade
do Narrador, ou seja, os impulsos autodestrutivos convivendo com a
compulsão para “tiranizar e dominar moralmente”, conduzem a
narrativa para um desfecho de alta tensão, em que não subsistem
quaisquer resíduos de sentimentalismo romântico.
Inicia-se, assim, um novo
capítulo na história da literatura.
Dostoiévski, aos 41 anos
Da
obra: Zapíski
iz podpólia.
Edição
utilizada:
Fiódor
Dostoiévski – Memórias
do subsolo.
Trad., prefácio, notas de Boris Schnaiderman, 6ª
ed., São Paulo: Editora 34, 2009. 152 pp., 2ª
reimpressão, 2015. Coleção Leste, sob direção de Nelson Ascher.
Contém breves excursos biográficos do autor e do tradutor. Texto
nas duas orelhas: Manuel da Costa Pinto. Imagem da capa: a partir de
desenho a bico de pena de Oswaldo Goeldi, ca. 1946. 21x14cm.
ISBN
978-85-7326-185-1
*
Imagens:
Xilogravura
de Oswaldo Goeldi: “Luz
Noturna”, ca. 1960, xilogravura póstuma, coleção
particular.
https://revistacontemporartes.blogspot.com.br
São
Petersburgo, 1895 (?), de P. I. Babkina.
Título:
Nevskii prospekt u Gostinago Dvora.
New
York Public Library
https://digitalcollections.nypl.org
Retrato
do autor
http://www.fyodordostoevsky.com
Sofia Gubaidulina (Rússia, 1931) - “Sonata para contrabaixo e piano”.
Krems, Viena,
Áustria, 6 de abril de 2012.
Imago Dei – Festival de Música Contemporânea
Daniele Roccato, contrabaixo; Fabrizio Ottaviucci, piano.
Imago Dei – Festival de Música Contemporânea
Daniele Roccato, contrabaixo; Fabrizio Ottaviucci, piano.