terça-feira, 6 de junho de 2017


Memórias do subsolo, de Fiódor Dostoiévski

Um mergulho no subsolo do homem contemporâneo




                           Oswaldo Goeldi: “Luz Noturna”
 

Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma instrução, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. (p. 15).

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Poucas vezes como aqui, nessa novela de Dostoiévski (Moscou, 11/11/1821 – São Petersburgo, 9/2/1881), a literatura ocidental terá atingido tal grau de radicalidade, seja no plano da forma dessa obra de arte, seja, quanto ao seu conteúdo, na sua capacidade de escavar o subsolo do homem e de sua época.

A força explosiva e paradoxal dessa obra inaugura a parte final da trajetória artística do escritor russo, em que se destacam os “cinco elefantes”, denominação dada aos grandes romances que terão papel central na literatura, na arte, na cultura e na filosofia: Crime e castigo (1865), O idiota (1869), Os demônios (1872), O adolescente (1875) e Os irmãos Karamázov (1881).

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Em 1859, Dostoiévski readquire a liberdade, depois de dez anos de prisão, trabalhos forçados e exílio como pena por sua participação no Círculo Petrashevski, um grupo acusado de conspirar contra o czar Nicolau I. Essa dura experiência serviu de base para as Recordações da Casa dos Mortos (1862), obra que traz de volta ao autor reconhecimento do público, após o seu período de afastamento. Antes dessa obra e após o seu retorno à Rússia, publicara O sonho do Tio (1859), A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes (1859) e Humilhados e ofendidos (1861).
Entre 1862 e 1863, o escritor viajou pela Europa, passando por Berlim, Paris, Londres, Genebra, Turim, Florença e Viena, período em que perdeu muito dinheiro por vício em jogo, experiência que daria origem ao romance O jogador (1867)
Em 1864, finalmente, publica Memórias do subsolo, no jornal “Época”, que fundara com o seu irmão, Mikhail.

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A novela, de caráter híbrido, tanto pela sua estrutura como pelos seus conteúdos ao mesmo tempo literário e filosófico, compõe-se de duas partes: “O subsolo” e “A propósito da neve molhada”, ambas narradas por um Narrador em primeira pessoa, do qual – começam aí as estranhezas - não sabemos o nome.

Em verdade, a originalidade da obra dá-se antes mesmo do início da narrativa: no primeiro trecho de uma nota introdutória, o escritor assinala que “tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários”.
Ou seja, o autor, de plano, ousadamente desvia-se da prática literária hegemônica até então, pela qual a obra literária se esforçava para exercer a “suspensão da desconfiança” do leitor. É justamente contra esse ilusionismo que, muito tempo depois, o dramaturgo, escritor, ensaista e encenador alemão Bertolt Brecht (1898 - 1956) desenvolveria teórica e artisticamente, no âmbito do “teatro épico”, a técnica por ele denominada de “efeito de estranhamento” (também conhecida como “efeito de distanciamento”), para estimular que o receptor assuma uma postura crítica diante da obra de arte.

Memórias do subsolo é também uma obra de combate, profundamente inserida nas discussões e nos impasses da sociedade russa do seu tempo, às voltas com as tentativas, por um certo setor da intelligentsia, de criar no país as condições para um aggiornamento fértil para uma revolução ou modernização burguesas. O autor, crítico a essa tendência e da sociedade que começa a se moldar por força dessas transformações, vai além desse contexto, contudo, dando matizes filosóficos a esse debate, absorvido indiretamente para dentro da narrativa, sempre por meio da “tagarelice” crispada e raivosa do protagonista, notadamente na primeira parte da novela.

Tagarela, como ele próprio se denomina, irreverente, corrosivo, sarcástico, autodestrutivo, anárquico, contraditório, oscilando entre arroubos e o patético, o Narrador conta com quarenta anos no momento em que redige as suas memórias, dirigindo-se a interlocutores, frequentemente designados como “meus senhores”, todavia não identificados.
Na rica linhagem dos pobres-diabos da literatura russa, o Narrador foi um órfão criado por parentes distantes e dos quais não teve mais notícias.
Desde os primeiros anos escolares, as recordações que lhe vêm são aquelas que o perseguiriam por toda a vida: sentir-se dessemelhante, ter desprezo por aqueles que o rodeiam e, por via de consequência, o sentimento de superioridade em relação ao seu meio social (cf. pp. 81-83).


                              São Petersburgo, 1895


Fiz parte do funcionalismo a fim de ter algo para comer (unicamente para isto), e quando, no ano passado, um dos meus parentes afastados me deixou seis mil rublos em seu testamento, aposentei-me imediatamente e passei a viver neste meu cantinho. Já antes disso vivi aqui, mas agora instalei-me nele. Tenho um quarto ordinário nos arredores da cidade. A minha criada é uma aldeã velha, ruim por estupidez, e, além disso, cheira sempre mal. Dizem-me que o clima de Petersburgo está-me prejudicando e que, para os meus insignificantes recursos, a vida aqui é muito cara. Sei disso; sei melhor que todos estes conselheiros e protetores experimentados e sábios. Mas ficarei em Petersburgo; não deixarei esta cidade! Não a deixarei porque... Eh! Mas, na realidade, me é de todo indiferente o fato de que a deixe ou não.
Dizei-me: de que pode falar um homem decente, com o máximo prazer?
Resposta: de si mesmo.
Então, também vou falar de mim. (pp. 17-18).


Ao tratar de si, como se propõe, o Narrador dirigirá, em verdade, radicalmente, o seu olhar para os fundamentos - o subsolo - do sujeito, da sociedade e da cultura de sua época, em uma crítica tão aguda que, certamente, está ainda carregada de atualidade. Ademais, a tagarelice reflexiva do Narrador impressiona duplamente, uma vez que essa nova sociedade, florescente na Europa ocidental, era ainda muito embrionária na Rússia de meados do século XIX e, por outro lado, a visão crítica dessa nova formação social ainda estava nascente em outros campos do conhecimento, na Filosofia, na História, na Sociologia ainda em formação.

Se a radicalidade desse olhar já parece ousada na década de 60 do século XIX, que se dirá do próprio questionamento desse olhar?

Eis o que seria melhor mesmo: que eu próprio acreditasse, um pouco que fosse, no que acabo de escrever. Juro-vos, meus senhores, que não creio numa só palavrinha de tudo quanto rabisquei aqui! Isto é, talvez eu creia, mas, ao mesmo tempo, sem saber por quê, sinto e suspeito estar mentindo como um desalmado. (p. 51).

Estais rindo? Fico muito contente. Os meus gracejos, senhores, são naturalmente de mau gosto, desiguais, incoerentes, repassados de autodesconfiança. Mas isto realmente ocorre porque eu não me respeito. Pode porventura um homem consciente respeitar-se um pouco sequer? (p. 28).
 
Opondo-se às propostas para amoldar a sociedade e a cultura russas de forma a criarem-se as condições para a revolução industrial, o Narrador investe duramente contra os efeitos dessas transformações: a alienação, a consciência fragmentada e o positivismo.

Repito, repito com insistência: todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomas as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então se acalmam; e isto é de fato o mais importante. Para começar a agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranquilo, não conservando quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me tranquilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras, em que me apoie? Onde estão só fundamentos? Onde irei buscá-los? Faço exercício mental e, por conseguinte, em mim, cada causa primeira arrasta imediatamente atrás de si outra, ainda anterior, e assim por diante, até o infinito. Tal é, de fato, a essência de toda consciência, do próprio ato de pensar.” (p. 30).

A implicância do Narrador com a sociedade do cálculo garante momentos memoráveis, que beiram o cômico. Para ele, a razão, puramente, não dá conta do imponderável da alma humana e até mesmo do irracional e do sombrio que espreitam tudo o que é humano.

Suponhamos que o homem não faça outra coisa senão procurar este dois e dois são quatro: ele atravessa os oceanos a nado, sacrifica a vida nesta busca, mas, quanto a encontrá-lo realmente... juro por Deus, tem medo. Bem que ele sente: uma vez encontrado isto, não haverá mais o que procurar. Operários que terminam uma tarefa com certeza recebem dinheiro e vão a um botequim , acabando no distrito policial – bem, aí estão ocupações para uma semana. Mas o homem para onde irá? Percebe-se nele constantemente algo de inábil toda vez que atinge tais objetivos. Ele ama o ato de alcançar, mas, alcançar, de fato, nem sempre. E isto, está claro, é ridículo ao extremo. Numa palavra, o homem está arranjado de modo cômico; em tudo isso, provavelmente, há um trocadilho. Mas dois e dois são quatro é, apesar de tudo, algo totalmente insuportável. Dois e dois são quatro constitui, a meu ver, simplesmente uma impertinência. Dois e dois fica feito um peralvilho, atravessado no vosso caminho, as mãos nas cadeiras, cuspindo. Estou de acordo em que dois e dois são uma coisa admirável; mas, se é para elogiar tudo, então dois e dois são cinco também constitui, às vezes, uma coisinha simpática. (p. 47).

Na segunda parte - “A propósito da neve molhada” - desenvolve-se, propriamente, o segmento dramático da narrativa. Registre-se, a propósito, outro aspecto importante da novela: o Narrador não é um observador distante dos fenômenos que delineia e critica; o seu próprio ser é um campo de batalha das tensões e contradições do novo sujeito que se insinua na sociedade russa em transformação. Tudo isso ficará claro e adquirirá tons dramáticos nessa parte final da novela.

Os acontecimentos narrados na segunda parte ocorrem dezesseis anos antes do momento em que o Narrador redige as suas memórias e têm o seu clímax quando do encontro com a prostituta Liza, depois de algumas peripécias envolvendo a busca – carregada de elementos contrastivos: desespero, desprezo pelos semelhantes, auto-humilhação – de relacionamento social com colegas de trabalho e antigos colegas de escola.
No curto envolvimento com Liza, o entrechoque extremo de forças contrárias na interioridade do Narrador, ou seja, os impulsos autodestrutivos convivendo com a compulsão para “tiranizar e dominar moralmente”, conduzem a narrativa para um desfecho de alta tensão, em que não subsistem quaisquer resíduos de sentimentalismo romântico.

Inicia-se, assim, um novo capítulo na história da literatura.


                              Dostoiévski, aos 41 anos


Da obra: Zapíski iz podpólia.
Edição utilizada:
Fiódor Dostoiévski – Memórias do subsolo. Trad., prefácio, notas de Boris Schnaiderman, 6ª ed., São Paulo: Editora 34, 2009. 152 pp., 2ª reimpressão, 2015. Coleção Leste, sob direção de Nelson Ascher. 
Contém breves excursos biográficos do autor e do tradutor. Texto nas duas orelhas: Manuel da Costa Pinto. Imagem da capa: a partir de desenho a bico de pena de Oswaldo Goeldi, ca. 1946. 21x14cm.
ISBN 978-85-7326-185-1


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Imagens:
Xilogravura de Oswaldo Goeldi: “Luz Noturna”, ca. 1960, xilogravura póstuma, coleção particular.
https://revistacontemporartes.blogspot.com.br

São Petersburgo, 1895 (?), de P. I. Babkina.
Título: Nevskii prospekt u Gostinago Dvora.
New York Public Library
https://digitalcollections.nypl.org

Retrato do autor
http://www.fyodordostoevsky.com



 

Sofia Gubaidulina (Rússia, 1931) - “Sonata para contrabaixo e piano”.

Krems, Viena, Áustria, 6 de abril de 2012.
Imago Dei – Festival de Música Contemporânea
Daniele Roccato, contrabaixo; Fabrizio Ottaviucci, piano.