domingo, 10 de fevereiro de 2019


Meu Michel, de Amós Oz


O diário de Hana, uma jovem esposa em Israel



עמוס עוז

מיכאל שלי


                                                                      Nahum Gutman, "A família"


Jerusalém, janeiro de 1960

Escrevo porque as pessoas que amei já morreram. Escrevo porque quando era menina havia em mim muita força para amar, e agora esta força está morrendo. Eu não quero morrer
Sou uma mulher casada, de trinta anos. Meu marido é o dr. Michel Gonen, geólogo, um homem tranquilo. Eu o amava. Nós nos conhecemos no prédio do convento Terra Sancta, há dez anos. Eu estava matriculada como ouvinte na Universidade Hebraica, quando as aulas ainda eram dadas no Terra Sancta. (p. 7).


De poucos autores pode-se dizer que são como a consciência de uma nação. O escritor, ensaísta, jornalista, professor universitário e ativista pela paz Amós Oz (Jerusalém, Mandato Britânico da Palestina, 4/5/1939 – Tel Aviv, Israel, 28/12/2018) foi um deles.
Amós Oz ironizava que era mais velho do que o seu país; ele, juntamente com Abraham B. Yehoshua e David Grossman, são os principais representantes da primeira geração de escritores judeus que formaram as suas identidades como cidadãos israelenses. Essa é apenas uma das singularidades da cultura e da literatura judaicas que, não obstante de sólida tradição milenar, floresceu em Estado próprio, na história moderna, apenas com a criação de Israel, no pós-guerra, em 1948.
Todas as contradições étnicas e religiosas que se estabeleceram em Israel, nos diversos segmentos da comunidade judaica e desta com a população árabe, os palestinos, em especial, foram matéria artística para o escritor e matéria, igualmente, para a sua reflexão e sua intervenção pública.
Amós Oz militou incansavelmente pela causa da paz entre judeus e palestinos, advogando pela solução dos dois Estados. Nesse sentido, foi um dos fundadores da organização Shalom Achshav (Paz Agora).

Amós Oz é o escritor judeu israelense de maior projeção internacional e um dos mais premiados escritores da literatura contemporânea; entre as diversas premiações e títulos, contam-se: Oficial da Ordem das Artes e das Letras (França, 1984), Prêmio da Paz, do Comércio Livreiro Alemão (1992), Legião da Honra (França, 1997), Prêmio Goethe (Frankfurt, 2005), Prêmio Príncipe das Astúrias, de Literatura (Espanha, 2007), Prêmio Primo Levi (Itália, 2008), Prêmio Heinrich Heine (Düsseldorf, 2008), Prêmio Franz Kafka (Praga, 2013),

*

Meu Michel (1968) é uma obra importante na carreira de Amós Oz: foi bem recebido pela crítica do seu país, teve sucesso de vendas e foi o romance que lhe deu projeção e consagração internacionais. O romance, ademais, chamou a atenção da intelectualidade do país, pois, recém-saídos da Guerra dos Seis Dias, decorrida entre 5 e 10 de junho de 1967, quando a população judaica de Israel é tomada por um clima de ufanismo pelas conquistas territoriais conseguidas, Meu Michel confronta os cidadãos com um mergulho profundo na vida interior e nos sonhos, pesadelos e delírios de uma jovem esposa, nos quais estão contidas, como em um espelho sombrio, algumas das angústias e das contradições do jovem Estado que buscava a sua afirmação.

A obra é narrada em primeira pessoa por Hana. A primeira linha do romance dá a indicação de local e data em que as memórias são escritas - “Jerusalém, janeiro de 1960” -, e rapidamente estabelece-se o quadro no qual se dará a trama: no momento em que redige essas primeiras linhas, Hana tem trinta anos, é casada, conheceu o marido, Michel Gonen, dez anos antes e revela: “Eu o amava”. A partir daí, Hana recua no tempo ao momento em que conheceu aquele que viria a ser o seu marido e passa a narrar a história desse relacionamento. Meu Michel é, assim, a história do encontro dos dois jovens, do namoro, do casamento e do progressivo estranhamento que se instala na jovem esposa em relação ao marido, sempre sob a óptica de Hana.

Para o leitor não familiarizado com a história e a cultura judaicas e israelenses e também com a literatura hebraica, Meu Michel será muito instrutivo, afora o sabor da bela e elaborada prosa de Amós Oz, por diversos motivos: o leitor vivenciará as durezas e privações da vida dos cidadãos nos anos iniciais de Israel, tomará contato com a porção de judeus não religiosos de Israel, como foi o caso da família do próprio Amós Oz, e que, não obstante, respeita algumas das tradições de seu povo e, por fim, no período abarcado pelas memórias da narradora, ocorre a Guerra de Suez (29 de outubro a 7 de novembro de 1956) que, como se sabe, foi um entre os diversos conflitos em que se envolveram Israel e, no campo oposto, outros países árabes do Oriente Médio. 

A propósito, é possível estabelecer um paralelismo entre a Guerra de Suez e o clima da Guerra dos Seis Dias, quando possivelmente estava ocorrendo a redação de Meu Michel, lembrando-se que Amós Oz foi, logo após o conflito de 1967, um dos primeiros intelectuais a manifestarem-se, por meio de um artigo no jornal “Davar”, em prol da solução dos dois Estados para o impasse entre judeus e palestinos.

Hana Grimbau trabalha em uma escola infantil e assiste à tarde, sem ser matriculada, a aulas de literatura hebraica na Universidade Hebraica, onde conhece casualmente Michel Gonen, estudante do terceiro ano de Geologia. Logo se enamoram e também rapidamente vem à tona as diferenças entre eles:

Michel disse:
Hana, entenda, a arte não é o meu território. Sou um técnico, como se costuma dizer. (p. 32).

                                                                     Nahum Gutman, "Jerusalém"


As diferenças entre os dois enamorados e, depois, entre os cônjuges, será motivo de inúmeros sinais, presságios e pressentimentos daquilo que já foi enunciado desde o início da narrativa: Hana descreve-se como uma mulher casada com Michel Gonen e complementa: “Eu o amava”.

Um aspecto essencial do romance, pois, é como se monta a trama, ou seja, por meio de uma inversão temporal. Não está dito, mas a narrativa decorre de um diário escrito por Hana. No início do relato, a narradora ainda está casada, mas já é revelado ao leitor que Hana não ama Michel. Hana passa, então, a rememorar o início desse relacionamento. O leitor, portanto, é feito cúmplice da narradora, também como efeito da característica própria de uma narrativa em primeira pessoa – mas, por outro lado, não sabemos as razões e motivações de Michel e das demais personagens – e passa a acompanhar o lento desenrolar de sinais, sonhos, pesadelos, mal entendidos, fatos e acontecimentos, os mais sutis, que levarão ao desamor do qual parte a narrativa.
Percorrer os sinais progressivos do desamor de Hana por Michel, das mais variadas e surpreendentes espécies, é, pois, um dos componentes do romance e que seduz o leitor.
Deve se acrescer que essa revelação, logo de início, do fim do amor de Hana, antes mesmo que saibamos da sua história do amor, faz com que o leitor se concentre nos caracteres das personagens, nas descrições e em cada um dos eventos, pois o nó da narrativa (o conflito que move as personagens e a narrativa) já foi de plano deslindado.

Assim, em Meu Michel o leitor é convidado a acompanhar a sucessão dos dias, semanas, meses e anos dessa relação; a narrativa desenvolve-se lentamente e a tensão dá-se não em torno de o que acontecerá, mas em como aconteceu.

No trecho a seguir, Hana e Michel conhecem-se há apenas uma semana e já estão enamorados. Estão voltando de um passeio ao kibutz Tirat Yaar, nas montanhas de Jerusalém, onde foram visitar um casal amigo de Michel. A visita foi muito aborrecida para Hana, que se sentiu deslocada na conversa:

Michel caminhava à minha esquerda calado. Não encontrava uma palavra sequer para me dizer. Ele era um estranho, e eu era uma estranha. Lembro-me de um momento singular, em que me senti invadida por uma sensação aguda, penetrante: não estou desperta e o tempo não é o presente. Tudo isso já me aconteceu. Ou alguém, há anos, havia me alertado com palavras duras sobre caminhar no escuro, nessa estrada erma, em companhia de uma criatura malvada. O tempo já não fluía ritmado e uniforme – ele se ramificava em várias sequências nervosas. Foi na minha infância. Ou um sonho. Ou alguma história de fazer medo. De repente fiquei apavorada com o homem escuro que caminhava à minha esquerda e não dizia nada. A gola de seu casaco estava levantada até o queixo. Seu corpo era magro, como uma sombra. Um boné de couro preto, tipo de estudante, cobria a maior parte do rosto. Quem é. O que você sabe sobre ele. Não é seu irmão, nem parente, nem amigo de infância, mas uma sombra estranha num lugar afastado, numa hora escura e tardia. Talvez ele queira atacar você. Quem sabe é um doente. Nenhuma pessoa responsável deu qualquer referência sobre ele a você. Por que não fala comigo. Por que mergulha em pensamentos, sem mim. Por que me arrastou até aqui. Qual é seu plano. De noite. Longe da cidade. Sozinha. Sozinho. Quem sabe se tudo o que me contou não passa de mentira deslavada. Não é estudante. Não se chama Michel Gonen. Interno de alguma instituição, de onde fugiu. Extremamente perigoso. Quando foi que tudo isso me aconteceu antes. Há muito tempo alguém já me havia dito que era exatamente assim que se daria a tragédia. Que vozes são essas vindas do campo escuro. Não se vê nem mesmo a luz das estrelas através do renque de ciprestes. O pomar não está deserto. E se eu gritar e gritar, será que alguém vai ouvir. O estranho alarga as passadas duras e rudes sem se importar com as minhas passadas. Fiquei para trás de propósito e ele nem notou. Meus dentes batem de medo e frio porque o vento de inverno uiva e açoita. O vulto encasulado não me pertence, mas está longe e imerso em si próprio. Como se eu fosse apenas um pensamento em seu coração, e não um ser real. Eu sou real, Michel. Sinto frio. Ele não ouve. Talvez eu não tenha falado em voz alta. Gritei com toda a força:
“Sinto frio e não posso correr desse jeito atrás de você.”
Como alguém que teve os pensamentos interrompidos, Michel retrucou:
“Mais um pouco. Mais um pouco e chegaremos ao ponto de ônibus. Paciência.”
Disse e tornou a se fechar, desaparecendo em seu casacão. Minha garganta se crispou e meus olhos encheram-se de lágrimas. (pp. 39 – 40).

Os sonhos e pesadelos têm papel importante para Hana e para a narrativa: por meio deles observa-se como o estado mental da narradora vai se deixando infiltrar por imagens oníricas ou alucinações. Também pelos sonhos vêm à tona alguns elementos recorrentes, como os gêmeos árabes Halil e Aziz com os quais a narradora conviveu na infância e as fantasias sexuais de Hana, como no pesadelo na antevéspera do casamento, em que, mais uma vez, Michel está distante, parece um estranho ou abandona Hana:

Depois um jipe militar parou do nosso lado. Um oficial britânico, pequeno e impecável no seu uniforme, pulou de dentro dele e tocou no ombro de Michel. Michel se virou de imediato, afastou-se bruscamente e começou a correr como um homem transtornado, derrubando barracas na fuga, até desaparecer no meio da multidão. Fiquei sozinha. As mulheres urravam. Dois homens apareceram e me puxaram pelos braços. Vestiam túnicas e só apareciam os olhos, faiscantes. Agarravam-me com força, e doía. Eles me arrastaram por um caminho sinuoso até os arredores da cidade. O lugar era parecido com as ruelas íngremes que ficam para lá da rua Habashim, a leste da cidade nova de Jerusalém. Fui arrastada por muitas escadarias, até um porão iluminado por um lampião enegrecido. Era um porão escuro. Fui atirada ao chão. Senti a umidade. Tudo cheirava a mofo. Ouviam-se lá fora latidos abafados de cachorros. De repente os gêmeos tiraram suas túnicas do deserto. Nós três tínhamos a mesma idade. A casa deles ficava em frente à nossa, do outro lado do terreno baldio, entre Katamon e Kiriat Shmuel. Eles tinham um pátio cercado por todos os lados. A construção circundava o pátio. Era um pátio interno. Videiras escalavam todas as paredes do casarão. Os muros eram construídos em pedra avermelhada, como se via em muitas casas de árabes ricos, nos bairros da parte sul de Jerusalém.
Tive medo dos gêmeos. Riam para mim. Branquíssimos, seus dentes. Eles eram escuros e elásticos. Dois lobos, cinzentos e fortes. Gritei: Michel, Michel, mas fiquei sem voz. Estava muda. A escuridão me inundava. Essa escuridão queria que Michel viesse para me salvar das mãos deles, mas só depois da dor e do prazer.
(…)
Pela manhã, a dona da casa, a sra. Tarnopoler, veio ao meu quarto dizer que tenho gritado à noite. Se a srta. Hana grita à noite a dois dias do casamento, com certeza é sinal de alguma grande angústia. Os sonhos nos mostram o que devemos fazer e o que não devemos fazer. Nos sonhos nós nos damos conta de todos os nossos atos, disse a sra. Tarnopoler. Se fosse minha mãe – e isso ela tem mesmo que dizer, mesmo que eu fique zangada -, não permitiria que eu me casasse assim de repente com um homem qualquer, encontrado por um acaso na rua. Pois tanto eu poderia ter encontrado um homem completamente diferente, como poderia não ter encontrado ninguém! Onde isso vai dar? Em desastre na certa (pp. 54 – 56).


                                                                Nahum Gutman, "As jovens na sacada"


A complexidade do artista Amós Oz transparece não apenas na sua produção literária, mas na relação que se estabelece entre o artista e o publicista comprometido com as causas da paz e da solução dos dois Estados para o conflito étnico-religioso de Israel. Não são instâncias estanques do mesmo cidadão israelense; muito pelo contrário. E esse aspecto do artista comprometido com o seu tempo ascende à genialidade quando o ficcionista evita as armadilhas de uma literatura participante e, por meio de contextos familiares ou do microcosmo da vida social, faz com que neles se reflitam os conflitos sociais e políticos nas quais as personagens estão inseridas. Não é diferente em Meu Michel.

Por mais que a vida e a consciência de Hana estejam dirigidas ao pequeno núcleo familiar que constituiu com Michel, acrescido do filho Yair, não é casual a conjunção de certos elementos que gravitam em torno da narrativa:

a) a presença recorrente, nos sonhos de Hana, dos gêmeos árabes de sua infância. No trecho acima do pesadelo de Hana, que não por acaso acontece na antevéspera de seu casamento, descreve-se que “os muros eram construídos em pedra avermelhada, como se via em muitas casas de árabes ricos, nos bairros da parte sul de Jerusalém”, a demonstrar a vida confortável dos palestinos antes da constituição do Estado de Israel. Esse fato é reiterado, em outra passagem, em alguns trechos quase que de forma literal, em que Hana, não mais em sonho (indicando a interpenetração de sonho e realidade em Hana), alude à mesma família árabe vizinha, em conversa com o marido e o filho:

Gostaria de passear pela Europa. Ter telefone em casa. Comprar um carrinho para podermos ir à praia aos sábados. Quando eu era pequena, tínhamos um vizinho árabe Rashid Shchada. Era um árabe muito rico. Agora por certo eles estão vivendo num desses acampamentos de refugiados. Tinham uma casa no bairro de Katamon. Era uma mansão construída em torno de um pátio interno. A casa rodeava o pátio. Dava para sentarmos ao ar livre e ao mesmo tempo estar protegidos e escondidos dos olhares. Quero morar numa casa igualzinha a essa. E num bairro de rochas e pinheiros. (pp. 264 – 265. Grifo nosso).

b) Jerusalém, que, como se sabe, tem vital valor religioso e cultural para as três grandes religiões monoteístas e, por conseguinte, até os dias atuais, é objeto do conflito étnico-religioso em Israel, é quase como um personagem do romance. Em certa passagem, lembrando o nosso Guimarães Rosa referindo-se ao sertão, Hana afirma que “Jerusalém não tem fim” (p. 118). Nas belíssimas descrições da paisagem natural ou das gentes da cidade em que se dá a narrativa, quase sempre se especifica que se trata de Jerusalém.
No início do capítulo 20, há uma longa descrição de lugares e paisagens de Jerusalém e, em determinado momento, Hana recusa-se a passar pela rua mítica da sua infância, em que havia a convivência fraterna com os gêmeos árabes vizinhos, mas ao qual sempre volta em sonhos:

Nasci em Kiriat Shmuel, no limite do bairro de Katamon, durante a festa de Sucot, a Festa dos Tabernáculos, em 1930. Às vezes me vejo imaginando que um deserto desolado separa a casa dos meus pais da casa de meu marido. Nunca passo na rua em que nasci. Num desses sábados, de manhã, passeamos Michel, Yair e eu até o final do bairro de Talbie. Eu me recusei a seguir adiante. Como se fosse menina mimada bati o pé: não e não. Meu marido e meu filho riram de mim, mas acabaram desistindo. (p. 118).

Essa recusa de Hana em voltar ao local da sua infância transforma-se em estranhamento em relação à própria Jerusalém:

Em cada bairro, mesmo nos mais distantes, existe um centro oculto rodeado por uma alta muralha. São fortalezas ameaçadoras, inacessíveis a quem passa. Quem poderá sentir Jerusalém como seu lar, pergunto, ainda que viva aqui cem anos. Cidade de pátios cercados, sua alma encerrada por detrás de muros sombrios, coroados por afiados cacos de vidro. Jerusalém não existe. Migalhas foram atiradas só para enganar pessoas inocentes. Cascas encobrem mais cascas, e o miolo é proibido. Escrevo: nasci em Jerusalém. Jerusalém é minha cidade, isso não posso escrever. (p. 121).

Note-se, no trecho acima, a expressão carregada de simbolismo em “um deserto desolado separa a casa dos meus pais da casa de meu marido”.

c) Tudo vai confluindo para o agravamento das tensões interiores de Hana e de seu equilíbrio interno, para o progressivo estranhamento de si para si mesma, a ponto de projetar-se em uma outra persona, Ivonne Azulay (p. 199), em uma tentativa de fuga, para a sensação de estar presa no tempo:

Os dias se parecem e se parecem. Não esqueço nada. Eu me recuso a abandonar um mísero grão de memória às garras geladas do tempo. Eu o odeio. Assim como o sofá, as poltronas e as cortinas, também os dias são matizes suaves de uma mesma cor. Menina linda e inteligente de casaco azul, uma professora de jardim-de-infância retraída, as varizes inchadas na coxa, e entre elas o vidro que vai perdendo a transparência apesar do desesperado esfregar. Ivonne Azulay ficou para trás. Um trapaceiro da pior espécie a levou no bico (p. 187). (1)

Mais uma vez não casualmente, o agravamento das tensões internas de Hana coincide com a atmosfera de tensão por ocasião da Guerra de Suez, e, tendo acordado febril devido a uma afecção na garganta, em um dia de inverno rigoroso, Hana tem um surto histérico acompanhado de impulsos autodestrutivos e fantasias eróticas:

Assim que Michel fechou a porta, pulei descalça da cama e corri para a janela. Eu era uma menina levada e rebelde. Como se estivesse bêbada, estiquei todas as cordas vocais para gritar e cantar. A dor e o prazer ampliavam um ao outro. A dor era doce e transbordante. Enchi os pulmões. Urrei, uivei e imitei os sons de animais e pássaros, como fazíamos tão bem, eu e Emanuel, quando crianças. Mas não se ouvia som algum. Era mágica pura. Só o prazer e a dor me inundavam. (p. 207).

Dr. Urbach diz a Hana que ela pode avançar na recuperação do seu estado de saúde, com a condição de “estabelecer uma convivência pacífica com a realidade objetiva.” (p. 242). É inútil. O corpo e a vida interior de Hana são o microcosmo dos impasses de seu país e dos povos que aí buscam acomodar-se.

*

Em 28 de dezembro de 2018, Amós Oz deixou-nos, mas ficou o seu inestimável legado artístico e o profundo humanismo de sua luta pela paz.




_________


(1) A expressão “Os dias se parecem e se parecem” reaparece em três outros trechos: pp. 189, 95 e 267. A respeito dessa sensação de sufocamento em relação ao tempo, significativa, igualmente, é a passagem em que Hana observa o marido e o filho: “A guerra se desenha aos olhos de Yair como um jogo extraordinariamente complexo e fascinante, onde imperam a lógica e o método. Ambos, meu marido e meu filho, veem o tempo como um conjunto de quadradinhos num caderno de matemática, e esses quadradinhos determinam linhas e formas.” (pp. 262 – 263).

*

Edição utilizada:
OZ, Amós. Meu Michel. Trad. Milton Lando, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, 302 pp. Brochura, 14x21cm. Capa de Raul Loureiro sobre ilustração de Takashi Fukushima. Livro composto em Electra, papel Pólen Soft.

*

Imagens:
Nahum Gutman (Telenesti, Bessarábia, Império Russo, 5/10/1898 – Israel, 28/11/1980), “A família” (38x56), Museu de Arte Nahum Gutman
http://www.gutmanmuseum.co.il/en/2015-05-12-09-38-14/item/121-the-family

Nahum Gutman, “Jerusalém”, (38x56), Museu de Arte Nahum Gutman
http://www.gutmanmuseum.co.il/en/2015-05-12-09-38-14/item/136-jerusalem

Nahum Gutman, “As jovens na sacada”, (38x56), Museu de Arte Nahum Gutman
http://www.gutmanmuseum.co.il/en/2015-05-12-09-38-14/item/127-girls-on-the-balcony

http://lounge.obviousmag.org/nao_mataras/2014/02/20/08_MHG_CULT_oz1.jpg
Retrato de Amós Oz

*



Shulamit Ran (Tel Aviv, 21/10/1949), “Pássaros do paraíso”, para flauta e piano; Mary Stolper (flauta), Kuang-Hao Huang (piano). Gravação em 23/9/2014, Centro Logan para as Belas Artes, Chicago.