sábado, 14 de setembro de 2019

Acre, de Lucrecia Zappi

Na selva das cidades




                        Prédio na Vila Buarque, São Paulo


Eu só lembrava do sinteco novo quando chegava em casa. Não estava de mau humor, mas não era possível que nem eu nem a Marcela, que ninguém nesta casa pensasse antes de sair que o sol estaria forte – hoje mais forte que ontem, e amanhã mais forte que hoje – e faria o sinteco crepitar até no escuro.
Agachei para sentir nos dedos a madeira machucada, e pensei no cara que tinha passado o fim de semana ajoelhado no chão da nossa sala, falando da vida no celular, a gente comprando lanche para ele, o sujeito enchendo o saco, tudo para eu me ver parado ali, mais uma vez lamentando minha distração, enquanto o sol já tinha ido e voltado quinhentas vezes no horizonte. Contemplei por um instante a claridade da noite que se espalhava pela sala e fechei a cortina.
Ao dar as costas para a janela, notei uma silhueta na penumbra: era Marcela sentada sobre a bancada da cozinha americana, como ela gostava de chamar aquele vão sem porta.
Pensei em começar perguntando por que não fechara a cortina. Ou que era esquisito que ela ficasse daquele jeito no escuro com as pernas balançantes como se fosse uma menina pequena demais para alcançar o chão.
O que você tá fazendo aí, Marcela?
Nada.
Ela alongou o corpo até o interruptor e tapou os olhos para se proteger do clarão súbito. Minha mulher parecia mesmo uma criança em cima da bancada, com os pés longe do chão.
Tá me vendo agora? Com a mão ligeiramente elevada diante do rosto, Marcela passou de criança a um desses anjos de cemitério, que escondem o rosto das trevas. Você não sabe quem subiu comigo no elevador.
Quem?
O Nelson. O de Santos.
Achei que esse cara tinha morrido. (pp. 7 - 8)


Não obstante cidadã do mundo - nascida em Buenos Aires, em 1972, mudou-se para o Brasil aos quatro anos, tendo vivido posteriormente no México, na Holanda e na Bélgica -, a escritora, jornalista e tradutora Lucrecia Zappi considera-se brasileira e paulistana. A artista reside atualmente em West Village, Nova Iorque. Tal sentimento fica evidente na forma como a cidade de São Paulo ou, mais especificamente, a Vila Buarque - onde de fato a escritora viveu, após se mudar da Argentina, aos quatro anos -, fornece o quadro social e espacial no qual se movem as personagens do romance Acre (2017). Chama a atenção, de imediato, assim, que essa relevância da cidade e da região onde se dá a trama seja contrastada pelo título ambíguo do romance; pois é justamente o deslocamento, a inadequação, o estranhamento, a incerteza, que criam, em parte, a atmosfera opressiva dessa obra bem recebida pela crítica, a segunda obra de ficção da autora: antes, estreara com o romance Onça preta (São José dos Campos: Benvirá, 2013).

Tolstói afirmou que “toda grande literatura é uma destas duas histórias: um homem que parte numa viagem ou um forasteiro que chega a uma cidade.” Pois bem, em Acre temos claramente, numa apreciação formal da narrativa, a segunda situação: Nelson, à semelhança do que se viu em Não falei, de Beatriz Bracher, é uma assombração do passado, um forasteiro que vem de longe, seja temporalmente, seja espacialmente, do Acre, levando à ressurgência dos conflitos recalcados na consciência de Oscar, o narrador em primeira pessoa do romance, que se desenvolve em dois planos espaço-temporais.

Não há marcas temporais definidas para o plano em que se inicia o romance, mas se depreende que seja a época contemporânea, na Vila Buarque, onde reside, em um condomínio predial, na rua Major Sertório, o casal Oscar e Marcela, ambos com cerca de 50 anos.

No centro da trama há um quadrilátero amoroso ocorrido entre trinta anos e trinta e dois anos antes, na cidade de Santos, envolvendo, Oscar, Marcela, Nelson e seu primo, Washington. Um fato trágico levou à ruptura da convivência dessas personagens, em Santos, e, por fim, Oscar e Marcela se casam e fixam residência em São Paulo. O casal vivera, a princípio, por dezoito anos em uma quitinete na Praça Roosevelt. Quando o romance se inicia, o casal já mora há onze anos em um apartamento na rua Major Sertório. Oscar tem uma loja de luminárias na rua da Consolação, herdada do pai, e Marcela tem um restaurante a quilo na Vila Buarque. Oscar cursou apenas dois anos de Arquitetura e não concluiu a Faculdade. Marcela, a enigmática personagem, que remete à Capitu machadiana, nessa trama movida pelo ciúme obsessivo do seu marido, tem origem em uma família muito pobre.

Como dissemos, a vinda de Nelson, do Acre, move a trama e os ciúmes de Oscar. A mãe de Nelson, Dona Vera, é vizinha de parede do casal. Nelson, essa presença aterradora, fica, assim, separado apenas por uma parede de Oscar, o que só faz aumentar a angústia deste.

Como é esperável em uma narrativa exclusivamente em primeira pessoa, muito da tensão da obra advém do fato de que a trama é gerada unicamente pelo relato, pela consciência e pela memória do narrador e, assim sendo, não sabemos quais são as intenções e motivações das demais personagens, o que realça uma narrativa que tem como fio condutor o ciúme.

O aparecimento do “forasteiro” Nelson desata os traumas e as suspeitas do narrador e ficamos sabendo, aos poucos, em flashback, desses fatos pretéritos por meio de alternância dos planos temporais.

O trauma: Nelson é uma personagem bestial. A mãe despachou-o, adolescente, para a casa do irmão, em Santos, depois de arrancar a orelha de um jovem, em uma briga e, com isso, ter passado uma temporada em uma instituição pública de abrigo de menores infratores. Em Santos, Oscar e Nelson passam a fazer parte do mesmo grupo de jovens, com características de gangue, e acabam se envolvendo em uma briga, na qual Oscar leva a pior, dramaticamente, ficando hospitalizado por traumatismo craniano. É, pois, esse fantasma, que fora namorado de Marcela naquela época, que ressurge na vida de Oscar.


Na praia, o instinto foi o de proteger minha longboard, mas o chute que levei na cara fez com que eu batesse a cabeça na quina da prancha. Minha voz saiu débil, senti que o som vindo de dentro da cabeça despedaçava meu crânio. Eram descargas elétricas que me faziam arranhar a areia. Ouvia as pessoas ao redor em eco e o céu tremia ao mesmo tempo, com um azul tão estridente que chegava a enjoar. Minha boca se encheu de sangue, por isso o que eu tentava dizer saía incompreensível. Cuspi e limpei o nariz ensanguentado. Juntou mais gente, a torcida pela briga cresceu.
Foi quando vi Marcela. Estava parada na roda, abraçada a um cara loiro queimado de sol. Como no filme do surfista que lixava a prancha. Não sei dizer por que fui fixar a vista nela, naquela moça de olhos escuros. Achei-a bonita. Foi a última certeza que tive antes de apagar. (p. 31).



                       Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo


As assombrações do passado e o ciúme são, contudo, apenas a superfície da narrativa; a atmosfera sufocante e angustiante daí decorrente servem, em verdade, para dar relevo a uma outra personagem e a um tema subjacente que lhe é conexo: a Vila Buarque e a sua degradação, talvez a própria cidade de São Paulo e, no limite, a crise civilizatória ou, emprestando a expressão de Celso Furtado, a construção reiteradamente interrompida de nosso país. Disso trataremos a seguir.

A Vila Buarque, bairro da cidade de São Paulo, faz parte do processo histórico de expansão urbanística da atual megalópole, o maior centro metropolitano do país e um dos maiores do mundo. A região era originalmente uma chácara, cujo terreno e imóvel tiveram sucessivos proprietários, cujos nomes, posteriormente atribuídos a vias locais, são familiares aos paulistanos: Marechal José Toledo de Arouche Rendon, Senador Antonio Pinto do Rego Freitas, Engenheiro Manoel Buarque de Macedo. Com a venda e posterior desmembramento da chácara, a região abrigou, a partir de fins do século XIX e início do século XX, as residências amplas e luxuosas de famílias de posses que se afastavam do núcleo central da cidade. A partir de meados do século XX, aí se construíram também edifícios de classe média. 

Um corte brutal na história da Vila Buarque ocorre, na década de 1970, com o surgimento de uma obra polêmica, batizada sintomaticamente com o nome de um general do período ditatorial, o Elevado Costa e Silva (posteriormente a obra passou a denominar-se Elevado Presidente João Goulart, em uma dessas irônicas inversões da História), conhecido popularmente como “Minhocão”: trata-se de uma via expressa elevada que liga a Praça Roosevelt ao bairro da Barra Funda, em um percurso de 3,4km. Desde a sua inauguração, em 1971, o Minhocão, por causa dos danos paisagísticos, da poluição do ar e sonora causada aos edifícios próximos, da degradação urbana e social, com moradores de rua, prostituição e usuários de drogas, tornou-se um caso exemplar de estudos na área de urbanismo, por ser fruto típico do planejamento autoritário na gestão de um Prefeito não eleito, em época de regime de exceção, e igualmente fonte de polêmicas sem fim que se arrastam até os dias atuais. 
 
O Minhocão é apenas uma das faces grotescas de uma cidade e sua região metropolitana onde vivem incrivelmente mais de vinte e um milhões de pessoas, situação a que se chegou sem planejamento urbano algum, em uma realidade sócio-econômica totalmente contrastiva, a qual faz conviver encraves populacionais altamente abastados, globalizados e de consumo de alto luxo, ao lado de populações pobres ou miseráveis, com a violência e a marginalidade inevitáveis decorrentes desse atrito e contradições social.

A Vila Buarque de passado elegante, atualmente degradada, em que populações de classe média convivem com moradores de rua, travestis e drogados é, dessa forma, tomada como um microcosmo e sinal dos impasses de uma cidade e de um país.

Além do mais, o romance reflete o clima caótico do Brasil posterior às jornadas de junho de 2013 e antecipa a atmosfera sombria e regressiva do país atual.

Os nomes do condomínio onde mora o casal e da loja de luminárias de Oscar - “Trapézio Imperial” e “Lustres Imperial” - são alusões irônicas e nostálgicas de um tempo perdido em meio ao rebaixamento atual do horizonte de expectativas.

O romance respira a degradação: das edificações, da vida urbana, dos padrões de vida e de civilidade, das consciências, e que se consubstancia na violência ameaçadora e onipresente.

Do lado da praça, dava para notar o efeito do tempo nos prédios. À exceção do nosso edifício, cuja fachada era um retângulo alto de vidros antigos, nada se destacava na quadra. Era um conjunto de construções baixas, com fissuras e remendos, caixotes de ar-condicionado isolados e uma cortina ou outra de cor forte. No nível da rua, entradas de prédios residenciais se misturavam a fachadas comerciais. Eram soluções totalmente diversas que conduzia a uma homogeneidade opaca de arrebiques. (p. 82).

Nelson provavelmente não fazia ideia de que sua mãe andava descendo com uma sacola para pegar restos de comida depois da feira, junto com os mendigos, e que acabava ficando por ali. Queria companhia, decerto, e tinha pouco dinheiro mesmo. Não sei se chegou a passar fome, mas Vera não parecia ter vergonha de se juntar aos da rua. Até Marcela, que não era de se comover com a miséria, quando ficou sabendo do desespero de nossa vizinha, entre abandono e falta de grana, começou a pensar a respeito.
Imagina chegar à velhice assim, comendo sobras, disse ela. Se não fosse a gente, ela poderia acabar feito essa indigência doida do centro da cidade. Reparou na quantidade de pessoas que mora nas ruas? (p.41).

Ana seguiu adiante, cada vez mais diluída na distância e na escuridão, parando para conversar com outro vizinho. Vera aproveitou para contar ao filho que Ana tinha sido assaltada recentemente.
O dano que faz uma arma apontada na cabeça, ouvi dona Vera dizer baixinho. E o pior é que foi bem ali na praça, quase na frente do prédio, perto do posto policial. Parece que abusaram dela.
Nelson cuspiu na mão um caroço de azeitona. Abusaram como?
Não sei detalhes, não. Ela acha que o perigo está em todos os lados e que a violência nas ruas é uma maldição entre nós. (p. 69).

A bestialidade de Nelson, acometido de um vitiligo que avança pelos seus braços, a sua violência instintiva, a incontrolável tendência ao trambique, à atuação à margem da lei, a ameaça que representa aos laços sociais, à família, é, igualmente, símbolo tanto do terror que inspira, principalmente às camadas médias, que anseiam por uma vida cosmopolita e estável, mas que se defrontam continuamente, em uma realidade subdesenvolvida, com a realidade bruta, instável e contraditória de suas vidas, como da própria incerteza do projeto de nação. A impotência e passividade de Oscar diante da ameaça representada pelo forasteiro Nelson é muito significativa, aí incluída, como seu ápice trágico, a própria incapacidade de decifrar os gestos, os significados e as intenções de sua esposa.

Muito bem estruturado, o início do romance, pautado pela preocupação de Oscar com o sinteco, a demonstrar o achatamento de horizontes e a mediocridade em que está imersa a vida do protagonista, encerra-se em anticlímax: a coroação corrosiva da capitulação de Oscar e de tudo o que ele representa.

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Há notícias de que Lucrecia Zappi está trabalhando em sua terceira obra ficcional: eis uma notícia alvissareira para os admiradores das novas vozes artísticas e da vertente crítica e instigante da nossa literatura.


              Lucrecia Zappi, na Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo

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Edição utilizada:
Lucrecia Zappi. Acre. São Paulo: Todavia, 2107. 208 pp.. Brochura, 13,5x21cm. Capa: Daniel Trench. Fotos de capa: Bianca Vasconcellos; a foto da capa é de detalhe do prédio Santa Rita, na Vila Buarque, onde a escritora morou. Fonte: Register. Papel Munken print cream 80 g/m2.

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A própria autora traduziu a obra para o espanhol, em publicação para a Editorial La Huerta Grande (2017), assinando-se como Lucrecia Zappi Luhring.

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Acre foi finalista do Prêmio Jabuti, 2018.

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Imagens

Prédio na Vila Buarque, São Paulo
vivareal.com.br
 
Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo
br.kekanto.com 

Lucrecia Zappi, na Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo.
Foto: Filipe Redondo / ÉPOCA
https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/08/novo-livro-de-lucrecia-zappi-reproduz-o-ruido-do-bairro-onde-ela-cresceu.html



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Lucrecia Zappi fala sobre o romance Acre.





José Antonio Resende de Almeida Prado (Santos, 8 de fevereiro de 1943 — São Paulo, 21 de novembro de 2010). Noturno n. 4. Piano: Alexandre Dias. Festival "Vamos Ouvir Música?", Teatro Nacional Claudio Santoro, Brasília, 2007.

https://www.youtube.com/watch?v=nF4uv8w24a4



domingo, 16 de junho de 2019

ENTREVISTA COM MARIA VALÉRIA REZENDE

A autora de Vasto mundo responde ao blog




                              José Costa Leite, "Cavalo-marinho", xilogravura


Em entrevista ao Búfalo Celeste, a escritora Maria Valéria Rezende fala sobre a origem do volume de contos Vasto mundo, diz que escreve para seus personagens, revela que o conto “Aurora dos Prazeres” baseia-se em fatos que vivenciou e comenta sobre a possibilidade de dedicar-se à literatura memorialística.

Em sua participação na série “Encontros com o escritor”, em 2018, promovida pela Editora Unesp, na cidade de São Paulo, a Sra. relatou a forte ambiência cultural que fez com que a sua vida, desde sempre, em Santos, fosse cercada por livros, poemas, saraus, recitais. Assim, escrever histórias ou versos foi-lhe algo natural e que se manteve ao longo de toda a sua vida. Por que, então, tardou tanto a vir a público essa coletânea de contos, Vasto mundo?
Escrever as histórias inspiradas nos fatos que eu via ou pressentia sempre foi uma prática para mim, um meio de tentar me por no lugar dos outros, compreender, adivinhar, e também, por que não?, me divertir em noites silenciosas do interior nordestino. Mas meu projeto de vida era mesmo a educação popular, a conscientização e a organização dos oprimidos, e não ser "escritora". Foi quase por acaso que se publicou meu primeiro livro. Sem dinheiro pra presentes comprados, eu escrevia uma dessas histórias, desenhava uma capa bonitinha e dava de presente aos amigos... assim, um amigo, Frei Betto, acabou por passar um texto meu a um editor, Pascoal Soto, que um dia me telefonou pedindo mais... daí foi ainda uma longa história até que se publicasse. Com a idade, eu já não podia mais continuar nas mesmas andanças, com a mochila às costas, então escrever tornou-se uma atividade que, penso, pode também contribuir para que se veja o que muitas vezes fica escondido e, da força do nosso povo, colher esperança.


Guimarães Rosa, do qual há uma citação em epígrafe em Vasto mundo, transfigurou radicalmente toda a tradição brasileira do regionalismo, unindo o local a uma temática universal em uma experiência de linguagem que representa um dos cumes das nossas Letras. Foi desafiador escrever à sombra do grande escritor de Cordisburgo, ao situar os seus contos no interior do Nordeste brasileiro?
Como sempre escrevi espontaneamente, simplesmente porque tinha uma história para contar a mim mesma, porque, mesmo para quem a vê e vive, uma história só se revela quando a gente a conta, e não tinha a pretensão de ser escritora reconhecida, nunca comparei o que escrevia com outro autor... muito menos com o grande Rosa, que li inúmeras vezes, desde minha adolescência, assim como centenas, talvez milhares de outros livros que absorvi ao longo da minha vida. Quando me perguntam para quem escrevo, a única resposta que posso dar é que escrevo para meus personagens. Sempre me pergunto se eles se reconhecerão ali. E parece que sim.

À semelhança de Flaubert, a Sra. pode dizer que “Aurora dos Prazeres, c’est moi”?
Aurora dos Prazeres, que é fabulação a partir de fatos realmente acontecidos, não sou eu, somos milhares de religiosas que, sobretudo a partir dos anos 60, deixamos a proteção dos muros dos conventos para nos "inserir" por longos anos entre os mais pobres e oprimidos, no interior, no campo ou nas periferias das grandes cidades, para compartilhar sua vida, para tentar ser entre eles "fermento na massa" como diz o Evangelho. Então, creio que se dissermos "Aurora dos Prazeres c'est nous", estaremos constatando um fato bem mais concreto e exato do que dizia Flaubert na sua tirada literária!

A Sra. é uma das grandes ficcionistas brasileiras em atividade, mas a sua própria vida certamente está cercada de inúmeras passagens que podem contar muito sobre a História recente do Brasil ou sobre as difíceis condições de vida de populações de diversos países. Os seus leitores podem aguardar a publicação de suas memórias?
Na verdade nem seria capaz de escrever minhas memórias, senão como já as escrevo, ficcionalmente... só sabemos da realidade o que nos entra pelos nossos fracos cinco sentidos... são fragmentos do real, como retalhos que nós vamos ligando uns aos outros com crochê para fazer uma colcha cujo desenho faça sentido. Acho que toda memória tem ficção e toda ficção tem memória. Acho bem mais divertido fazer livremente ficção juntado peças de memória e fazendo um novo desenho do que tentar "dizer a verdade" num texto de "memórias".


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Imagem:
Xilogravura do cordelista José Costa Leite (Sapé, Paraíba, Brasil, 1925).
Fonte:
http://www.paraibacriativa.com.br/artista/jose-costa-leite/


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Marlos Nobre, “Dengues da mulata desinteressada”, op. 20 (1966).
Duo Cappuccino: Mere Oliveira, mezzo-soprano; André Simão, violão.
St. Edigienkirche, Beerbach, Nuremberg, Alemanha, 9/5/2010.

Sobre poema de Ribeiro Couto:

Te dei um vidro de cheiro
Te dei um colar de conchas
De nenhum fizeste conta
Comprei artigo estrangeiro
outro vidro, outro colar
Não quiseste olhar,
Não quiseste olhar
Vendo que eras ambiciosa
te prometi um vestido
Te prometi um vestido
disseste “Eu rasgo atrevido!”
Mas falei baixinho: “Rosa”...
Fui buscar o meu violão,
E suspiraste, suspiraste: “Romão”
Te dei um vidro de cheiro
Te dei um colar de conchas
De nenhum fizeste conta
Comprei artigo estrangeiro
outro vidro, outro colar.



Vasto mundo, de Maria Valéria Rezende

Grandezas e misérias humanas no povoado de Farinhada




                                                                      José Costa Leite, xilogravura



A moça chegou do Rio. Logo se vê… tão alvinha! Saiu daqui miúda, não diferenciava em nada das outras meninas da escola municipal. Foi o padrinho que a levou. Voltou essa moçona. Veio passar o São João. No meio das outras moças, na frente da igreja, ela agora diferencia até demais. O vestido bonito, mais altura, as unhas compridas e vermelhas, movendo os braços, dando voltas e requebros enquanto fala. E fala sem parar. As outras, mais matutas ainda junto dela, são apenas moldura para o quadro. Para os olhos de Preá, nem moldura. Não existem. Não existem maia a igreja, a praça, a vila, nada. Só a moça. (p. 15).

Maria Valéria Rezende (Santos, Estado de S. Paulo, Brasil, 1942), uma das mais premiadas entre os escritores da literatura brasileira contemporânea, é um caso singular das nossas Letras: muito embora esta sua primeira obra tenha vindo a lume em 2001, quando a escritora contava quase sessenta anos, não se pode dizer, a rigor, que se trate de uma escritora bissexta, se, como a própria autora relatou pessoalmente, no fim de 2018, na série “Encontros com o Escritor”, em São Paulo, promovida pela Editora Unesp, ela viveu em um ambiente marcado pela presente constante da literatura e, sendo assim, escrever tornou-se algo natural desde sempre, ainda que em manuscritos pessoais.

Em depoimento ao jornal Folha de S. Paulo, a escritora relata:

Eu comecei a ler antes de saber ler. Nasci antes da televisão: à noite minha família costumava se sentar na varanda e dividir poemas. Meu avô tinha sido declamador e sabia muitos de cor. As pessoas sempre me perguntam quais foram os livros de que mais gostei na vida. Eu não sei dizer, faz 70 anos que sou leitora e tinha o costume de ler 2.000 páginas por semana. (1)

Outros fatores importantes para a formação de Maria Valéria Rezende foram a sua atuação na Juventude Estudantil Católica, a opção posterior pela vida religiosa, entrando na Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, em 1965, pela qual passou a dedicar-se como missionária na educação popular, o que lhe possibilitou conhecer diferentes paisagens e culturas no Brasil e no exterior.
Assim, mesmo sem publicar, Maria Valéria Rezende foi acumulando, durante uma vida laboriosa e plena em dedicação ao outro, uma valiosa experiência de observações humana e social, principalmente no tocante aos mais pobres.
Ressalta ainda na escritora, por fim, a rica produção, igualmente reconhecida e premiada, voltada aos públicos infantil e juvenil, o que mostra a sua versatilidade e dá mais valor ainda ao seu ofício de escritora.

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Vasto mundo foi publicado em 2001 e teve nova edição revisada em 2015.
Aspectos de sua trajetória de vida estão presentes nessa obra inaugural, como evidencia o depoimento da escritora à Folha de S. Paulo:

Não sei se sou uma grande escritora, mas sou uma boa contadora de histórias. Fiz muito isso de ouvir, contar e recontar no meu trabalho de educação popular. Como minha vida teve uma série de mudanças de região e de país, tive muitas experiências de aprender novas linguagens, gestos, comportamentos e histórias. E é como se a gente fosse se multiplicando. (2)


                                                                      José Costa Leite, xilogravura


Vasto mundo passa-se no povoado paraibano de Farinhada, distrito da cidade de Itapagi, denominações fictícias de localidades no sertão nordestino. As narrativas são centradas em tipos locais, com o recurso frequente à sátira, como forma de ampliar as situações expostas e, muitas vezes sob uma aparência inocente, de “causo”, servem, em verdade, ao propósito de desnudar as estruturas opressoras e associadas do latifúndio, do patriarcalismo e do mandonismo sobre as populações humildes, sobre os moradores das zonas rurais, destituídos de um pedaço de terra para lhes garantir a subsistência, e também sobre a mulher, destinada a um papel subordinado na família e na sociedade.

Ocorre que as narrativas, na maioria dos casos, flagram justamente situações em que essas estruturas opressoras são questionadas ou desafiadas. Esses momentos são como um raio, uma fissura nos sistemas de dominação, que permite aos oprimidos ou às mulheres tanto porem a nu a mecânica da opressão, causando um choque no cotidiano de reprodução do status quo e do imobilismo, assim como traz para o horizonte visível a possibilidade de emancipação. Trata-se, contudo, apenas de uma fissura, não de ruptura das estruturas, caso contrário se trataria de uma literatura escapista em confronto com as realidades sociais, políticas e culturais que, como é sabido, são resistentes a mudanças, principalmente aquelas que atingem frontalmente os interesses materiais das classes proprietárias.

É assim em “A guerra de Maria Raimunda” em que é dado o protagonismo a uma mulher de personalidade forte que terá papel determinante, em favor dos pobres, em um conflito de terras que opõe o latifundiário e deputado federal Assis Tenório, personagem recorrente em muitos dos contos, a camponeses que são pressionados pelos capangas daquele homem poderoso do povoado.

É assim que Maria Raimunda gosta de ser, dura feito pau de sucupira quando lhe pedem favor, fecha a cara e diz que não é madrinha de ninguém, que só vai fazer o favor para o outro desaparecer de sua frente; quando dá alguma coisa não é como quem dá: sacode de mau jeito o prato ou o agrado que seja para cima do outro, como coisa que não presta. Não tem dó nem de filho e marido: se Antonio Pedro chega em casa meio tocado de cachaça, ela nega a janta, passa o ferrolho na porta e larga o pobre a noite inteira no terreiro “que sereno e jejum é que é bom para bebedeira”. (pp. 37 – 38).

Pois é essa mulher, que “não se importa nem um pouco que lhe digam mulher-macho”, que isso lhe dá mais autoridade” (p. 38), que acaba envolvendo outras mulheres, por meio de um bendito, uma cantoria religiosa, na resistência à truculência de Assis Tenório.

Nesse conto, atente-se que Maria de Zuza, esposa de um dos lavradores vítimas da violência, recorre ao Padre Franz, outro personagem recorrente, mas mesmo este estando sempre ao lado dos humildes (em outro conto, “Não se vende jumento velho”, ficamos sabendo que Padre Franz veio da Alemanha e desembarcou em Farinhada, entusiasmado com a recém-nascida Teologia da Libertação), a mulher ouve do Padre “que Deus olhava pelos pobres, aguentasse, tivesse paciência, tivesse coragem”. Ou seja, a resistência contra a opressão parte dos despossuídos mesmo e ainda sob a liderança das mulheres.

O protagonismo também é da mulher em “A obrigação”, no qual Dona Ceiça não hesita em ir à zona e, aí, recorrer a Marivalda, para dar novo alento ao marido, que não cumpre mais a obrigação conjugal. Nesse conto, da mesma forma como em “Aurora dos Prazeres”, do qual trataremos a seguir, revela-se a filiação teológica da autora, com a compaixão desmedida por aqueles que mais sofrem; assim, Dona Ceiça mostra o seu agradecimento pela graça recebida:

Em Itapagi ela comprou a vela maior que havia, acendeu no altar de Nossa Senhora e deixou o resto do dinheiro na caixa das ofertas para a salvação das almas de todas as putas. (p. 47).


                                                                      José Costa Leite, xilogravura

Aurora dos Prazeres, a protagonista do conto homônimo - uma personagem com a qual certamente a escritora se identifica -, cuja mãe morre com Aurora tendo apenas dez anos, foge às injunções sociais e familiares a que estão destinadas as mulheres em seu papel subordinado na sociedade patriarcal:

Quando ficou mocinha, coisa que o pai percebeu ao ver uns trapinhos denunciadores a secar no varal, Raimundo dos Prazeres deu-lhe um vestido novo e começou a levá-la consigo para a feira de Itapagi. Com certeza sentiu-se na obrigação de apresentá-la ao mercado casamenteiro. (p. 126).

e ordena-se freira, para dedicar-se aos mais pobres.

Tinha entendido tudo o que o bispo dissera e procurou os mais pobres e desprezados para visitar e evangelizar. Descobriu o Rabo da Gata, a rua das mulheres da vida, e passava com elas as horas em que não tinham freguesia. Ouvia suas misérias, falava-lhes de Jesus e de como as putas entravam primeiro no Reino dos Céus. (p. 128).

Em “O tempo em que Dona Eulália foi feliz” revela-se que a truculência do latifúndio, associado ao mandonismo, transcende o mero privilegiamento material e procura subjugar e submeter, a fim de ressaltar e reafirmar o poder do senhor de terras. Dona Eulália, esposa de Assis Tenório, estando este doente, assume temporariamente os negócios da fazenda e, mais uma vez, abre-se uma fissura nas estruturas de poder do patriarcado, do latifúndio e do mandonismo, com a protagonista rompendo a inércia de seu papel limitado ao âmbito doméstico:

Pela primeira vez desde que se casara, longe das vistas do marido, estando ausente também Adroaldo, segunda pessoa dele, Eulália viu-se, de repente, dona de tudo, sem ninguém que lhe dissesse o que fazer ou que lhe proibisse qualquer coisa. Não se deu conta da nova situação de imediato, pois o medo e a submissão, o nada ser e nada poder, eram-lhe uma segunda natureza. Assim também a gente da fazenda teria continuado na mesma pisada de sempre: para fosse o que fosse havia que pedir licença, pedir favor, pedir desculpas, pedir transporte, pedir… a quem encontrasse de plantão na varanda da casa-grande – Assis Tenório em pessoa; Adroaldo, em sua ausência, ou mesmo Assissinho, em suas frequentes férias em Farinhada. (p.73).

Nesse conjunto de contos, portanto, que, tratando-se da primeira publicação da autora, já dá mostras de uma escritora muito segura no seu ofício, com fina capacidade de observações humana e social, com um estilo conciso, direto e cortante, causa admiração ainda maior constar pelo menos uma peça brilhante, digna de ser incluída na antologia do conto brasileiro: trata-se de “Medo”, e o início da narrativa bem o demonstra:

Sobressaltou-se com o coaxar dos sapos como se fosse um sino dando as horas, horas de trevas, de medo, de morte. Era assim todos os dias. Quando eles começavam com suas marteladas estridentes não havia mais jeito de deter a luz; ao sinal dos sapos ela partia irrevogavelmente e ele tinha de ficar no escuro para sempre até a manhã seguinte. Velas, candeeiros tornavam ainda mais escura a escuridão porque a faziam mover-se como uma coisa viva, recuar e avançar para ele, provocá-lo, zombar do pavor que o assombrava. Preferia ficar no apagado, quieto, encolhido, para que a escuridão não o visse e o deixasse em paz até o sol voltar. (p. 31).

A personagem, cujo nome não é revelado, é um matador de aluguel que está acoitado “longe da vila, no extremo da serra do Pilão” (p. 34), após ter despachado mais uma alma. Em apenas cinco páginas, em um primor de concisão, a narrativa desvela todo um mundo arcaico em que se fundem fé, violência e misticismo. Notável. Mas, nos anos seguintes à publicação da presente coletânea, voos mais altos brindarão os leitores dessa escritora ímpar da literatura brasileira contemporânea.




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(1) Maria Valéria de Rezende, “Vida de cão”, in: Jornal Folha de S. Paulo, 5/5/2019, caderno Ilustríssima, p. 2.
(2) Id., ibid..

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Edição utilizada:
Maria Valéria Rezende. Vasto mundo. Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara, 2105. 163 pp.. Brochura, 14x21cm. Capa Diogo Droschi.

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Vasto mundo foi publicado na França:
Vaste monde. Paris: Anacaona, 2017.

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Imagens
Xilogravuras do cordelista José Costa Leite (Sapé, Paraíba, Brasil, 1925).
Fonte:
http://www.paraibacriativa.com.br/artista/jose-costa-leite/

Fotografia de Maria Valéria Rezende.
https://www.camara.leg.br/internet/bancoimagem/banco/2018/12/img20181204182243032MED.jpg

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Marlos Nobre (Recife, Pernambuco, Brasil, 18/2/1939), “Cancioneiro de Lampião para coro misto a cappella" (1980),
1. Muié Rendêra; 2. É Lamp, é Lamp, é Lampa; 3. Cantigas de Lampião
Regente: Lincoln Andrade Fonte.

domingo, 7 de abril de 2019


Editora Kalinka

Entrevista com Daniela Mountian - Parte II



El Lissitzky, Segunda página da “História suprematista de dois quadrados em seis construções”


Na segunda e última parte da entrevista, Daniela Mountian, fundadora da Editora Kalinka e pós-doutoranda em teoria literária e literatura comparada – FAPESP/USP, fala sobre publicação de poesia russa no Brasil, a crise do mercado varejista de livros no país, a revisão da literatura produzida na União Soviética, o hábito da leitura entre os russos, a receptividade da literatura brasileira na Rússia, os projetos da Kalinka e, por fim, comenta a importância da Professora Aurora Fornoni Bernardini na divulgação da literatura e cultura russas entre nós e a homenagem feita pela Editora a essa intelectual.


Búfalo Celeste – Tratamos da importante parceria de Boris Schnaiderman com os Irmãos Campos e vem a propósito a questão da poesia. Apesar de todos os aspectos positivos da presença da literatura russa no Brasil, há uma desproporção entre o interesse entre nós pela prosa de ficção russa e a publicação de poesia russa.
Daniela – Para alguns, a grande arte russa é a arte poética.
Búfalo Celeste – Púchkin, por exemplo, é uma personalidade histórica com um peso na cultura russa sem equivalente aqui no Brasil.
Daniela – É curiosa a imagem do Púchkin. Ter um poeta como herói nacional fala muito dessa nação, dessa cultura.
Búfalo Celeste – A celebração a Púchkin, no dia do seu aniversário, acontece ainda hoje na Rússia?
Daniela – Púchkin é ainda uma figura incontestável, até hoje. Ela foi um pouco trabalhada, de fato, essa figura. Dovlátov falou disso no livro Parque Cultural [Kalinka, 2016], falou como na época soviética foi feita uma apropriação do mito de Púchkin; ele foi usado de forma que servisse, que se amoldasse melhor ao que a União Soviética esperava de um herói nacional. Mas, seja como for, antes ele já era conhecido e continua conhecido agora. As crianças continuam estudando Púchkin na escola, elas continuam sabendo de cor os seus poemas; em cada cidade russa há um busto de Púchkin, uma rua com seu nome... Assim, desse ponto de vista, a Rússia soube manter sua cultura viva. Claro, pode-se falar que muita coisa é turística, mas você respira aquilo, a literatura, e quem quiser vai se aprofundar.
Búfalo Celeste – Não há, assim, uma desproporção desse conhecimento dos poetas russos, tendo em vista o peso que a poesia tem na cultura russa? Ocorreu um fenômeno interessante com essa poeta polonesa, que ganhou o prêmio Nobel, a Szymborska; acho que já estamos na quarta publicação dela, aqui no Brasil, o que superou muitas expectativas. Será que o caso dela e também outros fenômenos que estão acontecendo com a poesia não indicam um momento de virada poética?
Daniela – Difícil dizer. Espero que sim
Búfalo Celeste – E a Kalinka tem planos neste sentido?
Daniela – Eu já publiquei poesia russa. Já publiquei uma pequena antologia [Poesia russa: seleta bilingue. Trad. do russo Aurora Fornoni Bernardini; organização e notas biográficas Daniela Mountian; criação gráfica Fabíola Notari, Kalinka, 2016].
Búfalo Celeste – Que é um trabalho artesanal belíssimo
Daniela – A gente já trabalhou com o Kupriyánov [Viatchesláv Kupriyánov. Luminiscência: antologia poética. Kalinka, 206], que é um poeta contemporâneo, traduzido pela Aurora. Sim, eu quero, o problema é que é difícil, é um campo mais restrito, e não é fácil achar tradutor poético. Não é como traduzir prosa.
Búfalo Celeste – Há menos tradutores de poesia?
Daniela – Sim, toma mais tempo. Mas, claro, quero publicar mais poesia russa, acho importante.
Búfalo Celeste – Há, inclusive, o caso de um prêmio Nobel, do qual nós não temos nada aqui, o Joseph Bródsky.
Daniela – Sim, o Brodsky. A gente não tem quase nada do Pasternak, que também escreveu muita poesia, quase nada da Akhmátova, quase nada de nada. Na verdade, no campo de poesia, está deserto. O que eu posso dizer é que, sim, a gente vai enveredar de novo por essa seara, que é um processo mais lento, não vai ser na mesma quantidade da prosa, mas vamos continuar. Tem que ser, a poesia russa tem que aparecer. 


"Na Rússia, o simbolismo foi um grande movimento e foi central para tudo o que aconteceu depois, para todas as vanguardas."


 
Búfalo Celeste – São nomes importantíssimos os que você citou.
Daniela – Sim, muito importantes e relativamente pouco conhecidos aqui, e são descobertas que vão ser ótimas para quem gosta de poesia, para quem gosta de cultura russa. É o caso do simbolismo russo, que foi um momento muito importante na Rússia. Houve vários simbolismos. No Brasil, houve mais uma tendência, uma corrente. Na Rússia, foi um grande movimento e foi central para tudo o que aconteceu depois, para todas as vanguardas. Houve uma profusão de poetas, de escritores. Tem muita coisa para publicar. A gente vai ter que ir devagar, no ritmo da Kalinka e do nosso mercado editorial. Agora que a gente está com um pouco de estrutura, pelo menos podemos fazer planos. Antes era muito difícil. A gente tem que cumprir também os projetos já iniciados, como os livros do Dovlátov, de quem já é o terceiro que publicamos. Vamos chegar lá, fazer novos projetos de poesia. Talvez dentro da nossa coleção Mir, que é bilíngue.
Búfalo Celeste – Essa crise das livrarias não foi uma crise do livro, foi uma crise do mercado varejista, mas vocês estão à margem disso, não é?
Daniela – É, digamos que eu nunca vendi horrores, mas, para nós, a Livraria Cultura é um cliente importante. A loja da avenida Paulista vende muito livro russo. E a Livraria Cultura é um símbolo da cidade. Mas a Livraria Cultura está assim faz tempo, vamos ver o que eles vão fazer, e o importante é que agora o mercado editorial vai ter que se definir de outra maneira. O Jorge, dono da Hedra, já vem pensando há muito tempo em outras formas de circulação do livro. Antes, não tinha muita coisa a fazer. Você publicava o livro, tentava mandar para o jornal, a Cultura pegava alguns em consignação, a Livraria Saraiva... Agora mudou muito. O editor tem contato direto com o leitor, e não tinha antes, e há a venda pelo próprio site. Então as coisas mudaram e temos que mudar. Se não mudar, vai morrer.
Búfalo Celeste – De certa forma foi uma sacudida no mercado.
Daniela – A Cultura já vem dando sinais de cansaço há algum tempo. Do jeito que foi, foi assustador. É obvio que, toda vez que eu abria um jornal, ficava deprimida, pensava que esse processo não ia terminar nunca, porque ela tem livros da Hedra, tem livros nossos, tem livros de todas as editoras. Mas é isso, é repensar um processo de mudança que já havia começado. E, realmente, não é uma crise do leitor, é uma crise do setor comercial. É que aqui o mercado editorial é muito pequeno e muito amador, se for pensar bem. Se a gente considerar que metade do mercado estava nas mãos de duas livrarias... Isso mostra um pouco o que é o nosso mundo editorial. O bom é que pode crescer.
Búfalo Celeste – Os dados de 2018 mostram que houve crescimento, pequeno, mas houve.
Daniela – Mas tem que ver direito: teve crescimento em qual área? Isso eu não cheguei a olhar. Para a Kalinka, teve a consolidação da parceria com a Hedra, então, nesse sentido, a gente publicou mais. A gente está no início de um processo, que espero que se consolide, que enraíze e que nos dê chance de publicar por muitos anos.


                            El Lissitzky, Páginas de “Dria golosa”, poemas de Maiakóvski


Búfalo Celeste – A literatura russa do século passado tem uma particularidade muito grande, que foi a repressão, a censura que aconteceu, e está havendo uma recepção tardia daquela literatura. É uma situação muito particular de obras e autores que ressurgiram de todo aquele processo político que aconteceu na União Soviética. Gostaria que você falasse rapidamente, eu sei que é um assunto complexo: essa pesquisa está acontecendo ainda?
Daniela - O que aconteceu, essa redescoberta, foi algo formidável e impensável. O período de repressão foi uma tragédia, uma série de autores e nomes desapareceu por décadas, toda a obra do Kharms, por exemplo. Ou seja, autores com uma obra de relevo, com uma linguagem não raramente muito radical.
Búfalo Celeste – E os órgãos de inteligência ou de censura preservavam as obras?
Daniela – Cada caso é um caso. Alguns autores não eram conhecidos simplesmente e alguns autores eram conhecidos parcialmente e deixaram de ser. Com o fim da União Soviética, começam a surgir nomes e obras inteiras dos anos 1920, 1930..., algumas delas impressionantes. Imagine a situação de descobrirem um novo “Mário de Andrade” aqui e agora, porque não são autores quaisquer. Como estes autores se conservaram? Cada caso foi um caso. Por exemplo, o Kharms foi por milagre. Ele hoje é considerado um dos precursores da literatura do absurdo. A gente publicou [Daniil Kharms. Os sonhos teus vão acabar contigo: prosa, poesia, teatro. Trad. Aurora Fornoni Bernardini, Daniela Mountian, Moissei Mountian; Kalinka, 2013]. O trabalho de Kharms só sobreviveu ao tempo porque um amigo dele guardou uma mala com seus escritos quando o escritor foi preso pela segunda vez. A mulher dele juntou todos os papéis nessa mala. Nada da literatura adulta de Kharms havia sido publicada em sua vida e esse amigo, o Drúskin, um filósofo, guardou esse material por anos. Isso começou a ser divulgado na Europa nos anos 1970, mas, na Rússia, Kharms para adultos, que hoje já é considerado um clássico, começou a ser conhecido, de fato, no final dos anos 1980, início dos anos 1990. 

Então cada escritor teve uma trajetória, uma sorte. Sei lá quantos foram perdidos também. O Kharms também é um caso muito trágico, porque ele fez parte de um grupo de vanguarda, “OBERIU”, que nasceu em 1928. As coisas já estavam começando a mudar na União Soviética e muitos integrantes desse grupo foram mortos. Ele já vem no segundo momento da vanguarda.

O Vida e destino a gente sabe também que foi muito difícil, a obra nos chegou por meio de microfilmes. Enfim, surgiu, pode-se dizer, quase que uma nova literatura após o fim da URSS. Foram redescobertos também alguns autores que na época foram publicados e deixaram de ser, como comentei. O Dobýtchin foi publicado em vida e deixou de ser por décadas (ele se matou em 1936), mas voltou a ser lido hoje; a novela A cidade N, principalmente, é considerada uma obra do cânone. Assim como ele, houve muitos.
Búfalo Celeste – E esse trabalho de pesquisa está em processo ainda?
Daniela – Sim, por exemplo, no caso do Kharms, que eu acompanho mais, fatos novos estão aparecendo agora. Descobriram faz pouco tempo onde ele está enterrado (ele morreu num hospital psiquiátrico em 1942). Os pesquisadores estão mexendo nos acervos, nos arquivos. Faz pouco descobriram uma imagem dele num filme. Então, as pesquisas continuam. Existem arquivos que ainda não foram tocados, porque os arquivos que restaram estão nas bibliotecas, mas é necessário que alguém vá lá e trabalhe com eles. Então, eu acho que está em andamento. Não sei se virá muita novidade de Kharms no sentido de aparecerem novas obras, mas para compreensão daquele momento talvez sim.
Búfalo Celeste - É uma situação muito peculiar.
Daniela – É uma situação peculiar, de grandes autores renascendo, de linguagem muito radical, muito interessante, muito arrojada. Por exemplo, o Dovlátov já é de uma outra geração, porque ele nasceu em 1941, mas ele também passa a ser conhecido mesmo na Rússia só após 1990 e virou ícone. São fenômenos literários que têm a ver com um fundo histórico. Enfim, a literatura russa tem esse passado que é redescoberto nas últimas décadas, que começa a fazer parte do presente e a dialogar com ele, com a literatura contemporânea. E não esqueça que a literatura russa não parou, são vários novos autores...


"Os escritores russos tinham um papel social muito importante, eram heróis nacionais, o que falavam tinha um peso na sociedade."



Búfalo Celeste – A leitura foi uma prática muito forte na Rússia; há relatos de que, apesar do drama que a União Soviética viveu na II Guerra Mundial, havia uma produção grande de livros que era levada para o front de guerra, que se lia ali nas trincheiras. Gostaria de saber se você tem informações sobre essa relação do russo hoje com a leitura.
Daniela – Ainda é forte. Claro que lá também existe internet, televisão, tudo o que existe aqui. Mas ainda é um país que lê muito. Um escritor ainda vai encher um teatro para falar de sua obra. Eu já comprei na Rússia, por exemplo, um ingresso para ver um escritor falar de Tolstói, e o teatro, que não era pequeno, estava cheio. Pode-se assistir a uma atriz lendo poemas numa filarmônica. A literatura está mais viva, não sei se de maneira uniforme na Rússia inteira, mas ela ainda tem um papel importante na sociedade. Os escritores russos tinham um papel social muito importante, eram heróis nacionais, o que falavam tinha um peso na sociedade. Não se pode dizer que é igual hoje, mas eles continuam a ter um papel relevante.
Búfalo Celeste - Por isso a repressão na época soviética
Daniela – E a literatura era a arte mais reprimida. Isso mostra o papel que a literatura tinha para esse país. Alguma coisa mudou, mas ainda vemos programas com escritores na TV, um poeta ainda é respeitado. Vamos ver o que vai acontecer ao longo dos anos. Claro que muita coisa está em jogo. As faculdades de letras já estão dando menos literatura para seus alunos... Mas eu acho que vai ser difícil essa tradição ser perdida.
Búfalo Celeste – Mudando a perspectiva, gostaria de saber a receptividade do russo em relação à nossa literatura. Imagino que o Jorge Amado deve ter sido conhecido na Rússia, pela relação dele com o PCB. Existe algum outro autor que o russo culto conhece?
Daniela – Hoje é muito diferente. Na União Soviética muitos autores brasileiros foram traduzidos. Houve muitas traduções do português para o russo e agora não tenho visto mais. Então, depende de que época é esse russo. Agora acho que é um momento ruim para os autores brasileiros lá. Mas sei que houve Monteiro Lobato, Jorge Amado, Clarice Lispector, eu acho que até o Guimarães Rosa. Machado de Assis também. Então houve um interesse. Acho que realmente deveria se fazer um esforço maior para que a nossa literatura voltasse a ser traduzida. Mas isso tem a ver um pouco com a gente. Não é que os russos não se interessem.
É desproporcional, realmente. Agora, parece que há um interesse muito maior pelos russos aqui do que vice-versa. Mas, de novo, penso que é um trabalho nosso, porque eu não acho que um russo se recuse a ler um autor brasileiro.
Búfalo Celeste – Você pode falar dos projetos da Kalinka?
Daniela – Já lançamos dois livros do Serguei Dovlátov e agora estamos lançando o terceiro, O compromisso, e o próximo livro vai ser uma tradução de meu pai, que é justamente A cidade N, a novela do Leonid Dobýtchin, a mais conhecida dele. Mas a gente vai trazer mais gente, escritores vivos ainda, estão já quase certos, ainda não falo porque faltam alguns detalhes. Mas esses são os próximos dois livros. Vamos continuar também a coleção Mir, bilíngue. O que a gente prometeu a gente vai fazer.


                                 El Lissitzky, Páginas de “Dria golosa”, poemas de Maiakóvski


Búfalo Celeste – Por fim, gostaria que fizesse um comentário rápido desse importante lançamento do livro da Professora Aurora Fornoni Bernardini, Aulas de literatura russa: de Púchkin a Gorenstein. Como surgiu a ideia de publicar essa pesquisadora fundamental?
Daniela – A Professora Aurora tem tudo a ver com o início da Kalinka, na verdade foi uma conjunção bonita de fatores. Quando eu comecei a estudar russo, trabalhar com meu pai no que seria a primeira publicação da Editora, ele falou: “olha, lá perto de casa, na rua Maria Antônia, tem uma professora dando aula de literatura russa, por que você não vai lá?”. Isso foi em 2005. Eu fui, me apresentei para a Professora e, desde então, ela faz colaborações frequentes com a gente, seja prefaciando, seja traduzindo, seja aconselhando, e eu também estou fazendo pós-doutorado com ela. Então, ela tem uma relação forte comigo, um papel importante na minha vida, na Kalinka. Ela e meu pai são dois guias para mim, digamos, que me fazem continuar, porque às vezes o dia a dia pode ser pesado. 

O livro Aulas de literatura, uma reunião de seus artigos, foi justamente uma homenagem a uma trajetória brilhante de uma pesquisadora e de uma tradutora que não tinha ainda o reconhecimento que merecia, na minha opinião. Então eu a convidei já com o intuito de fazer essa homenagem. Demorou um pouco para concretizar, mas deu certo, e o Valteir Vaz, que também estudou com a Professora Aurora no mestrado e no doutorado, organizou o livro comigo; nós reunimos textos sobre literatura russa que ela escreveu ao longo da vida, textos desde a década de 1980 até atuais e de autores diversos. O que aconteceu é que, como há uma abrangência de temas e períodos na produção dela, formou-se quase que um panorama, coisa que não havia no Brasil. Por isso, optamos por colocar no título “aulas”. 

Organizamos o livro de um jeito que o leitor passe pelos temas de forma cronológica. Começa com Púchkin, com o século XIX, incluindo um capítulo especial para Tolstói, outro para Dostoiévski. São textos de fácil leitura, ela escreve muito bem para quem já conhece literatura russa e para quem quer começar a conhecer. A gente fez notas mais didáticas, tivemos essa preocupação, justamente porque não havia um livro nesse formato. Não é que a gente está prometendo dar toda a literatura russa nesse livro, muitos autores não entraram (nós tínhamos como material apenas o que ela escreveu), mas é um apanhado bom. E é uma amostra do que era pedido a ela pela imprensa, da sua atuação no jornalismo cultural e de seu amplo interesse, tal como no caso do Professor Boris Schnaiderman. Foi um livro trabalhoso de editar (antologias de artigos escritos em épocas diversas são difíceis, pois envolve seleção, padronização, etc.), mas muito recompensador.
Búfalo Celeste – É outra personalidade importante da divulgação da literatura russa.
Daniela – Foi importante e continua atuante; ela trabalhou com o professor Boris, ela foi a primeira Professora convidada por ele para dar aula no curso de russo da USP [Boris Schnaiderman foi o primeiro professor do curso de língua e de literatura russa da USP, criado em 1963]. Ela traduz há muitos anos e formou centenas de alunos. Então, ela, assim como o Professor Boris, tem um papel acadêmico, um papel de professora, um papel de ensaísta, de divulgadora. É uma excelente tradutora, traduz poesia muito bem, ganhou inúmeros prêmios, mas eu achei que faltava essa homenagem a ela, porque, quando se fala de literatura russa, da consolidação do fenômeno da tradução direta, a gente ouve falar do professor Boris, do Paulo Bezerra, e de poucos outros. Ela normalmente não está incluída no pacote. Eu acho que é merecido que esteja. Não estou tirando o mérito de ninguém, só acho que ela tinha que estar aí também. Não é um nome que pode ser marginalizado, deixado em segundo plano. Além do mais, eu gosto muito da linguagem dela, uma linguagem muito saborosa e poética, não são textos duros, mesmo os textos mais acadêmicos. Fiquei feliz de ter feito o livro.
Búfalo Celeste – Muito obrigado pela entrevista e parabéns pelo seu trabalho e de seu pai à frente da Kalinka.

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Imagens:

El Lissitzky, “Páginas de “Dria golosa”, poemas de Maiakóvski, 1923.

Fonte:

https://www.getty.edu/research/tools/guides_bibliographies/lissitzky/index2.html
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Alexander Tcherepnin, “Suíte para violoncelo solo”

Violoncelo: Branno Cho

Sala de Concerto Pick-Staiger, Northwestern University, Evanston, Illinois, EUA, 25/5/2015