Acre, de Lucrecia Zappi
Na selva das cidades
Prédio na Vila Buarque, São Paulo
Eu só lembrava do sinteco novo quando chegava em casa. Não estava de mau humor, mas não era possível que nem eu nem a Marcela, que ninguém nesta casa pensasse antes de sair que o sol estaria forte – hoje mais forte que ontem, e amanhã mais forte que hoje – e faria o sinteco crepitar até no escuro.Agachei para sentir nos dedos a madeira machucada, e pensei no cara que tinha passado o fim de semana ajoelhado no chão da nossa sala, falando da vida no celular, a gente comprando lanche para ele, o sujeito enchendo o saco, tudo para eu me ver parado ali, mais uma vez lamentando minha distração, enquanto o sol já tinha ido e voltado quinhentas vezes no horizonte. Contemplei por um instante a claridade da noite que se espalhava pela sala e fechei a cortina.Ao dar as costas para a janela, notei uma silhueta na penumbra: era Marcela sentada sobre a bancada da cozinha americana, como ela gostava de chamar aquele vão sem porta.Pensei em começar perguntando por que não fechara a cortina. Ou que era esquisito que ela ficasse daquele jeito no escuro com as pernas balançantes como se fosse uma menina pequena demais para alcançar o chão.O que você tá fazendo aí, Marcela?Nada.Ela alongou o corpo até o interruptor e tapou os olhos para se proteger do clarão súbito. Minha mulher parecia mesmo uma criança em cima da bancada, com os pés longe do chão.Tá me vendo agora? Com a mão ligeiramente elevada diante do rosto, Marcela passou de criança a um desses anjos de cemitério, que escondem o rosto das trevas. Você não sabe quem subiu comigo no elevador.Quem?O Nelson. O de Santos.Achei que esse cara tinha morrido. (pp. 7 - 8)
Não
obstante cidadã do mundo - nascida em Buenos Aires, em 1972,
mudou-se para o Brasil aos quatro anos, tendo vivido posteriormente
no México, na Holanda e na Bélgica -, a escritora, jornalista e
tradutora Lucrecia Zappi considera-se brasileira e paulistana. A
artista reside atualmente em West Village, Nova Iorque. Tal
sentimento fica evidente na forma como a cidade de São Paulo ou,
mais especificamente, a Vila Buarque - onde de fato a escritora
viveu, após se mudar da Argentina, aos quatro anos -, fornece o
quadro social e espacial no qual se movem as personagens do romance
Acre (2017). Chama
a atenção, de imediato, assim, que essa relevância da cidade e da
região onde se dá a trama seja contrastada pelo título ambíguo do
romance; pois é justamente o deslocamento, a inadequação, o
estranhamento, a incerteza, que criam, em parte, a atmosfera
opressiva dessa obra bem recebida pela crítica, a segunda obra de
ficção da autora: antes, estreara com o romance Onça preta
(São José dos Campos: Benvirá, 2013).
Tolstói
afirmou que “toda grande literatura é uma destas duas histórias:
um homem que parte numa viagem ou um forasteiro que chega a uma
cidade.” Pois bem, em Acre temos claramente, numa apreciação
formal da narrativa, a segunda situação: Nelson, à semelhança do
que se viu em Não falei, de Beatriz Bracher, é uma
assombração do passado, um forasteiro que vem de longe, seja
temporalmente, seja espacialmente, do Acre, levando à ressurgência
dos conflitos recalcados na consciência de Oscar, o narrador em
primeira pessoa do romance, que se desenvolve em dois planos
espaço-temporais.
Não
há marcas temporais definidas para o plano em que se inicia o
romance, mas se depreende que seja a época contemporânea, na Vila
Buarque, onde reside, em um condomínio predial, na rua Major
Sertório, o casal Oscar e Marcela, ambos com cerca de 50 anos.
No
centro da trama há um quadrilátero amoroso ocorrido entre trinta
anos e trinta e dois anos antes, na cidade de Santos, envolvendo,
Oscar, Marcela, Nelson e seu primo, Washington. Um fato trágico
levou à ruptura da convivência dessas personagens, em Santos, e,
por fim, Oscar e Marcela se casam e fixam residência em São Paulo.
O casal vivera, a princípio, por dezoito anos em uma quitinete na
Praça Roosevelt. Quando o romance se inicia, o casal já mora há
onze anos em um apartamento na rua Major Sertório. Oscar tem uma
loja de luminárias na rua da Consolação, herdada do pai, e Marcela
tem um restaurante a quilo na Vila Buarque. Oscar cursou apenas dois
anos de Arquitetura e não concluiu a Faculdade. Marcela, a
enigmática personagem, que remete à Capitu machadiana, nessa trama
movida pelo ciúme obsessivo do seu marido, tem origem em uma família
muito pobre.
Como
dissemos, a vinda de Nelson, do Acre, move a trama e os ciúmes de
Oscar. A mãe de Nelson, Dona Vera, é vizinha de parede do casal.
Nelson, essa presença aterradora, fica, assim, separado apenas por
uma parede de Oscar, o que só faz aumentar a angústia deste.
Como
é esperável em uma narrativa exclusivamente em primeira pessoa,
muito da tensão da obra advém do fato de que a trama é gerada
unicamente pelo relato, pela consciência e pela memória do narrador
e, assim sendo, não sabemos quais são as intenções e motivações
das demais personagens, o que realça uma narrativa que tem como fio
condutor o ciúme.
O
aparecimento do “forasteiro” Nelson desata os traumas e as
suspeitas do narrador e ficamos sabendo, aos poucos, em flashback,
desses fatos pretéritos por meio de alternância dos planos
temporais.
O
trauma: Nelson é uma personagem bestial. A mãe despachou-o,
adolescente, para a casa do irmão, em Santos, depois de arrancar a
orelha de um jovem, em uma briga e, com isso, ter passado uma
temporada em uma instituição pública de abrigo de menores
infratores. Em Santos, Oscar e Nelson passam a fazer parte do mesmo
grupo de jovens, com características de gangue, e acabam se
envolvendo em uma briga, na qual Oscar leva a pior, dramaticamente,
ficando hospitalizado por traumatismo craniano. É, pois, esse
fantasma, que fora namorado de Marcela naquela época, que ressurge
na vida de Oscar.
Na praia, o instinto foi o de proteger minha longboard, mas o chute que levei na cara fez com que eu batesse a cabeça na quina da prancha. Minha voz saiu débil, senti que o som vindo de dentro da cabeça despedaçava meu crânio. Eram descargas elétricas que me faziam arranhar a areia. Ouvia as pessoas ao redor em eco e o céu tremia ao mesmo tempo, com um azul tão estridente que chegava a enjoar. Minha boca se encheu de sangue, por isso o que eu tentava dizer saía incompreensível. Cuspi e limpei o nariz ensanguentado. Juntou mais gente, a torcida pela briga cresceu.Foi quando vi Marcela. Estava parada na roda, abraçada a um cara loiro queimado de sol. Como no filme do surfista que lixava a prancha. Não sei dizer por que fui fixar a vista nela, naquela moça de olhos escuros. Achei-a bonita. Foi a última certeza que tive antes de apagar. (p. 31).
Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo
As
assombrações do passado e o ciúme são, contudo, apenas a
superfície da narrativa; a atmosfera sufocante e angustiante daí
decorrente servem, em verdade, para dar relevo a uma outra personagem
e a um tema subjacente que lhe é conexo: a Vila Buarque e a sua
degradação, talvez a própria cidade de São Paulo e, no limite, a
crise civilizatória ou, emprestando a expressão de Celso Furtado, a
construção reiteradamente interrompida de nosso país. Disso
trataremos a seguir.
A
Vila Buarque, bairro da cidade de São Paulo, faz parte do processo
histórico de expansão urbanística da atual megalópole, o maior
centro metropolitano do país e um dos maiores do mundo. A região
era originalmente uma chácara, cujo terreno e imóvel tiveram
sucessivos proprietários, cujos nomes, posteriormente atribuídos a
vias locais, são familiares aos paulistanos: Marechal José Toledo
de Arouche Rendon, Senador Antonio Pinto do Rego Freitas, Engenheiro
Manoel Buarque de Macedo. Com a venda e posterior desmembramento da
chácara, a região abrigou, a partir de fins do século XIX e início
do século XX, as residências amplas e luxuosas de famílias de
posses que se afastavam do núcleo central da cidade. A partir de
meados do século XX, aí se construíram também edifícios de
classe média.
Um corte brutal na história da Vila Buarque ocorre, na década de
1970, com o surgimento de uma obra polêmica, batizada
sintomaticamente com o nome de um general do período ditatorial, o
Elevado Costa e Silva (posteriormente a obra passou a denominar-se
Elevado Presidente João Goulart, em uma dessas irônicas inversões
da História), conhecido popularmente como “Minhocão”: trata-se
de uma via expressa elevada que liga a Praça Roosevelt ao bairro da
Barra Funda, em um percurso de 3,4km. Desde a sua inauguração, em
1971, o Minhocão, por causa dos danos paisagísticos, da poluição
do ar e sonora causada aos edifícios próximos, da degradação
urbana e social, com moradores de rua, prostituição e usuários de
drogas, tornou-se um caso exemplar de estudos na área de urbanismo,
por ser fruto típico do planejamento autoritário na gestão de um
Prefeito não eleito, em época de regime de exceção, e igualmente
fonte de polêmicas sem fim que se arrastam até os dias atuais.
O
Minhocão é apenas uma das faces grotescas de uma cidade e sua
região metropolitana onde vivem incrivelmente mais de vinte e um
milhões de pessoas, situação a que se chegou sem planejamento
urbano algum, em uma realidade sócio-econômica totalmente
contrastiva, a qual faz conviver encraves populacionais altamente
abastados, globalizados e de consumo de alto luxo, ao lado de
populações pobres ou miseráveis, com a violência e a
marginalidade inevitáveis decorrentes desse atrito e contradições
social.
A
Vila Buarque de passado elegante, atualmente degradada, em que
populações de classe média convivem com moradores de rua,
travestis e drogados é, dessa forma, tomada como um microcosmo e
sinal dos impasses de uma cidade e de um país.
Além
do mais, o romance reflete o clima caótico do Brasil posterior às
jornadas de junho de 2013 e antecipa a atmosfera sombria e regressiva
do país atual.
Os
nomes do condomínio onde mora o casal e da loja de luminárias de
Oscar - “Trapézio Imperial” e “Lustres Imperial” - são
alusões irônicas e nostálgicas de um tempo perdido em meio ao
rebaixamento atual do horizonte de expectativas.
O
romance respira a degradação: das edificações, da vida urbana,
dos padrões de vida e de civilidade, das consciências, e que se
consubstancia na violência ameaçadora e onipresente.
Do lado da praça, dava para notar o efeito do tempo nos prédios. À exceção do nosso edifício, cuja fachada era um retângulo alto de vidros antigos, nada se destacava na quadra. Era um conjunto de construções baixas, com fissuras e remendos, caixotes de ar-condicionado isolados e uma cortina ou outra de cor forte. No nível da rua, entradas de prédios residenciais se misturavam a fachadas comerciais. Eram soluções totalmente diversas que conduzia a uma homogeneidade opaca de arrebiques. (p. 82).Nelson provavelmente não fazia ideia de que sua mãe andava descendo com uma sacola para pegar restos de comida depois da feira, junto com os mendigos, e que acabava ficando por ali. Queria companhia, decerto, e tinha pouco dinheiro mesmo. Não sei se chegou a passar fome, mas Vera não parecia ter vergonha de se juntar aos da rua. Até Marcela, que não era de se comover com a miséria, quando ficou sabendo do desespero de nossa vizinha, entre abandono e falta de grana, começou a pensar a respeito.Imagina chegar à velhice assim, comendo sobras, disse ela. Se não fosse a gente, ela poderia acabar feito essa indigência doida do centro da cidade. Reparou na quantidade de pessoas que mora nas ruas? (p.41).Ana seguiu adiante, cada vez mais diluída na distância e na escuridão, parando para conversar com outro vizinho. Vera aproveitou para contar ao filho que Ana tinha sido assaltada recentemente.O dano que faz uma arma apontada na cabeça, ouvi dona Vera dizer baixinho. E o pior é que foi bem ali na praça, quase na frente do prédio, perto do posto policial. Parece que abusaram dela.Nelson cuspiu na mão um caroço de azeitona. Abusaram como?Não sei detalhes, não. Ela acha que o perigo está em todos os lados e que a violência nas ruas é uma maldição entre nós. (p. 69).
A
bestialidade de Nelson, acometido de um vitiligo que avança pelos
seus braços, a sua violência instintiva, a incontrolável tendência
ao trambique, à atuação à margem da lei, a ameaça que representa
aos laços sociais, à família, é, igualmente, símbolo tanto do
terror que inspira, principalmente às camadas médias, que anseiam
por uma vida cosmopolita e estável, mas que se defrontam
continuamente, em uma realidade subdesenvolvida, com a realidade
bruta, instável e contraditória de suas vidas, como da própria
incerteza do projeto de nação. A impotência e passividade de Oscar
diante da ameaça representada pelo forasteiro Nelson é muito
significativa, aí incluída, como seu ápice trágico, a própria
incapacidade de decifrar os gestos, os significados e as intenções
de sua esposa.
Muito
bem estruturado, o início do romance, pautado pela preocupação de
Oscar com o sinteco, a demonstrar o achatamento de horizontes e a
mediocridade em que está imersa a vida do protagonista, encerra-se
em anticlímax: a coroação corrosiva da capitulação de Oscar e de
tudo o que ele representa.
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Há
notícias de que Lucrecia Zappi está trabalhando em sua terceira
obra ficcional: eis uma notícia alvissareira para os admiradores das
novas vozes artísticas e da vertente crítica e instigante da nossa
literatura.
Lucrecia Zappi, na Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo
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Edição
utilizada:
Lucrecia
Zappi. Acre. São Paulo: Todavia, 2107. 208 pp.. Brochura, 13,5x21cm.
Capa: Daniel Trench. Fotos de capa: Bianca Vasconcellos; a foto da
capa é de detalhe do prédio Santa Rita, na Vila Buarque, onde a
escritora morou. Fonte: Register. Papel Munken print cream 80 g/m2.
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A
própria autora traduziu a obra para o espanhol, em publicação para
a Editorial La Huerta Grande (2017), assinando-se como Lucrecia Zappi
Luhring.
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Acre
foi finalista do Prêmio Jabuti, 2018.
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Imagens
Prédio na Vila Buarque, São Paulo
vivareal.com.br
Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo
br.kekanto.com
Lucrecia Zappi, na Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo.
Foto: Filipe Redondo / ÉPOCA
https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/08/novo-livro-de-lucrecia-zappi-reproduz-o-ruido-do-bairro-onde-ela-cresceu.html
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Lucrecia Zappi fala sobre o romance Acre.
José Antonio
Resende de Almeida Prado (Santos, 8 de fevereiro de 1943 — São
Paulo, 21 de novembro de 2010). Noturno n. 4. Piano: Alexandre Dias.
Festival "Vamos Ouvir Música?", Teatro Nacional Claudio
Santoro, Brasília, 2007.
https://www.youtube.com/watch?v=nF4uv8w24a4