domingo, 5 de fevereiro de 2017






O Exército de Cavalaria, de Isaac Bábel

A obra-prima de um correspondente na guerra russo-polonesa

 



                               "Você já se alistou?"

O comdiv 6 relatou que Novograd-Volynsk tinha sido tomada hoje, ao amanhecer. O Estado-Maior saiu de Krapivno, e nosso comboio, uma barulhenta retaguarda, espalhou-se pela estrada de pedra que vai de Brest a Varsóvia, construída sobre os ossos dos camponeses por Nicolau I.
Campos de papoulas púrpura florescem à nossa volta, o vento do meio-dia brinca por entre o centeio amarelado, e o virginal trigo sarraceno ergue-se no horizonte como a muralha de um mosteiro longínquo. O plácido Volýnia serpenteia. O Volýnia afasta-se de nós na bruma perolada das moitas de bétulas, infiltra-se através das colinas floridas e, com seus braços cansados, enreda-se nas touceiras de lúpulo. Um sol alaranjado rola pelo céu como uma cabeça decepada, uma luz suave acende-se nos desfiladeiros das nuvens, e os estandartes do poente ondulam sobre nossa cabeça. O cheiro do sangue de ontem e dos cavalos mortos pinga no frescor da tarde. O Zbrutch negrejante rumoreja e retorce os espumosos emaranhados de suas cascatas. As pontes foram destruídas, e nós atravessamos a vau. Uma lua majestosa paira sobre as ondas. Os cavalos afundam na água até o dorso, e sonoras torrentes borbotam entre as centenas de patas equinas. Alguém afunda e pragueja em voz alta contra a Virgem. Os quadrados negros das carroças espalham-se pelo rio, que se enche de ruído, assobios e canções que trovejam por cima do serpentear da lua e dos turbilhões brilhantes.


(Do conto “A travessia do Zbrutch”, publicado originalmente com a data “Novograd-Volynsk, julho de1920”, no jornal “Pravda”, de 3 de agosto de 1924. In: Isaac Bábel – O Exército de Cavalaria, trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, 2ª ed, Cosac Naify, coleção Prosa do Mundo, 2015, p. 9-10). (comdiv: comandante de divisão).

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Mais um dentre tantos artistas oprimidos pelo stalinismo, e, por fim, por este vitimado, consolida-se crescentemente a avaliação de Isaac Emanuélovitch Bábel (Rússia, Odessa, 1894 – Moscou, 1941?) como um dos mais importantes escritores das literaturas russa e mundial do século XX.

Bábel viveu num período incendiário da história russa, com profundas marcas sobre as primeira décadas do século, sobre a sua obra e, finalmente, expressas em seu próprio martírio. Desde meados da década de trinta, decresce a produção de Bábel, pressionado pelas críticas negativas dos setores ortodoxos do stalinismo que se amparavam no modelo artístico do “realismo socialista”, imposto pelo regime aos artistas soviéticos. A situação agrava-se com a morte de seu protetor, o escritor Máxim Górki, em 1936.
Em maio de 1939, Bábel foi retirado de sua “dacha” pela polícia política e interrogado sob tortura. Morreu em condições ainda obscuras, em 1941, segundo a versão oficial.
Com a abertura do regime, a partir de Khruschev, Bábel é reabilitado pelo Estado, em dezembro de 1954. Em 1957, um volume de obras escolhidas do autor é publicado na URSS, voltando a colocar Bábel em evidência no país e, progressivamente, no mundo. 
 
Trotski discursa ao Exército Vermelho por ocasião da Guerra contra a Polônia

Com evidente teor de narrativa de sua própria experiência como correspondente, na Sexta Divisão do Primeiro Exército de Cavalaria, durante a guerra russo-polonesa, entre os meses de junho a setembro de 1920, os contos são narrados, contudo, em primeira pessoa, pela personagem Kirill Vassílievitch Liútov.

O Exército de cavalaria consiste de trinta e seis narrativas curtas, independentes, mas relacionadas à citada evolução da tropa a que Bábel se engajou: à semelhança de “numerosos fragmentos de uma epopeia despedaçada”, no dizer de Otto Maria Carpeaux, que o considerava o maior contista que já surgiu no século XX (História da literatura ocidental, Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1966, pp. 3131-32).

A marca distintiva do estilo de Bábel na obra é, em primeiro lugar, a concisão. Por analogia com a pintura, é como se as cenas se definissem aos olhos do espectador com poucas e precisas pinceladas.
A seguir, a forma seca e desdramatizada como as violências da guerra, de parte a parte, são apresentadas pelo Narrador. Não se trata de insensibilidade ou indiferença: eis aqui a chave do estilo de Bábel. Ao expor a rotinização das brutalidades da guerra, a que estão expostos combatentes, civis e animais, muitas vezes com humor sutil (próprio da cultura judaica), o Narrador de Bábel quer evitar a armadilha imediata do envolvimento sentimental do leitor e transpor a relação deste com os fatos narrados para um outro plano, após esse primeiro estranhamento.

A propósito, avulta o intrometimento constante e insistente das forças e elementos da Criação – o sol, a lua, os ventos, os rios, a chuva, as árvores, a imensidão do céu, o frio e as incertezas da noite, a miríade de cores dos seres vegetais, das aves, do arrebol ou do crepúsculo – na sucessão dos eventos. Essas forças naturais não são mero adorno narrativo, como foi muito comum em certa literatura do Romantismo, pródiga em longas descrições de paisagens, caracteres e figuras. Ao contrário e justamente, não se vê em Bábel descrição física das personagens, enquanto a todo momento despontam as forças naturais, não na forma de descrições estáticas, mas entrelaçadas com os fatos. Desloca-se, assim, a suposta indiferença do Narrador pela insânia dos homens; é como se, furtivamente, o Narrador pusesse as forças naturais a falar por si; essa manifestação aparece, entre outros mecanismos, pela ironia e/ou situando os fatos humanos em escala com os elementos naturais, desvelando destes a sua marcha intemporal, avassaladora e irrefreável diante do caráter errático, frágil e insensato do humano.

Trata-se, à vista do caos de um mundo conflagrado, de uma mutação do narrador onisciente, que reinou absoluto no século anterior; daí a “epopeia despedaçada” a que se refere Carpeaux, refletida, inclusive, na própria organização da narrativa: temos um romance em fragmentos, “quadros de uma exposição”, como se verá progressivamente, nas mais diversas soluções e propostas, pelos ficcionistas no decorrer do século XX.

Logo no início da obra e do primeiro conto, que é já uma obra-prima, esmera-se o Narrador nessa tapeçaria em que o humano se apequena, como se viu acima: 

O cheiro do sangue de ontem e dos cavalos mortos pinga no frescor da tarde.


Os quadrados negros das carroças espalham-se pelo rio, que se enche de ruído, assobios e canções que trovejam por cima do serpentear da lua e dos turbilhões brilhantes.


E assim será, ao longo de toda a obra:

Ele dorme aos sobressaltos, enquanto lá fora, no jardim coberto pela negra paixão do céu, a alameda reverbera. Rosas sedentas oscilam na escuridão. Relâmpagos verdes acendem-se nas cúpulas. Um cadáver nu repousa largado ao pé do morro. O luar banha suas pernas inertes, escancaradas. (“A Igreja de Novograd”, p. 14).


Sentamo-nos sobre pequenos barris de cerveja. Guedáli torce e alisa a barbicha minguada. Seu chapéu cilíndrico balança sobre nós feito uma pequena torre negra. Um ar morno nos acaricia e o céu muda de cor. Um sangue mole jorra de uma garrafa caída lá de cima, e um suave perfume de corrupção me envolve. (“Guedáli”, p. 44)


Budiónni girou rapidamente sobre os tacões e cumprimentou o novo chefe de brigada. Este levou à viseira seus cinco dedos juvenis, cobertos de suor, foi embora, seguindo pela beira de um campo lavrado. Os cavalos esperavam-no a cem braças dali. Ele andava cabisbaixo, movendo com penosa lentidão as pernas longas e arqueadas. O rubor do crepúsculo derramava-se sobre ele, escarlate e inverossímel como a morte iminente. (“O combrig da segunda”, p. 72).


Chovia. Vento e escuridão encobriam a terra empapada. Inchadas de tinta, as nuvens apagavam as estrelas. Os cavalos, estafados, resfolegavam e pateavam nas trevas. Nada havia para lhes dar. Atei a brida do cavalo no meu pé, embrulhei-me no capote e deitei numa cova cheia d'água. A terra encharcada envolveu-me num tranquilizante abraço de túmulo.” (“Zámostie”, p. 163).

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A obra literária de Bábel, afora artigos e reportagens jornalísticos, roteiros cinematográficos e contos diversos publicados entre 1925 e 1938, consta de Diários de 1920 (também sobre a sua experiência na guerra russo-polonesa; publicado apenas na década de 90), Contos de Odessa (1923), O Exército de Cavalaria (1926), considerada a sua obra-prima e as peças teatrais Crepúsculo (1928) e Maria (1935).


Isaac Bábel nos anos 30

Dê-se o crédito ao renomado crítico literário, ensaista e acadêmico estadunidense Lionel Trilling que fez a apresentação de um Bábel ainda em relativa obscuridade - após o prestígio internacional posterior à publicação de O Exército de Cavalaria, em 1926 - no volume Collected stories (1955).

Em 1990, foram publicados em Moscou dois volumes sob o título de Sotchiniênia [Obras] (Khudójestvienaia Litieratura). A filha de Bábel, Nathalie, organizou e prefaciou, em 2002, The complete works of Isaac Babel (Nova Iorque, Londres, W. W. Norton & Company).
Antes da primeira tradução direta do russo, pela Cosac Naify, traduções de O Exército de Cavalaria, a partir do inglês, francês ou espanhol, foram feitas por Jorge Amado, Berenice Xavier e Roniwalter Jatobá. Importantes divulgadores de Bábel no Brasil foram também Otto Maria Carpeaux e Boris Schnaiderman.
Outras obras de Bábel publicadas no Brasil: Maria – uma peça e cinco histórias (trad. Aurora Fornoni Bernardini, Boris Schnaiderman e Homero Freitas de Andrade, São Paulo, Cosac Naify, 2003) e No campo da honra e outros contos (trad. Nivaldo dos Santos, São Paulo, Editora 34, 2014).

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Para os saudosos da Editora Cosac Naify, registre-se o prazer de ler O Exército de Cavalaria numa edição em capa dura, em um exemplar com cores e fontes criteriosamente escolhidas. Bela imagem de capa, extraída do pôster de rua, destinado a recrutamento (a primeira ilustração desta postagem): “Ingresse na Cavalaria Vermelha!” (1920), de Boris Sylkin (Museu Nacional de Arte da Ucrânia). A capa contém unicamente essa ilustração; de forma muito original, os nomes da obra e do autor estão na quarta capa. Nas folhas de guarda, em papel escuro, há grafismos em fonte escura, contendo nomes de autores da coleção “Prosa do mundo”. Fotografia do autor na falsa folha de rosto. Folhas do apêndice em papel cinza claro. Quanto ao conteúdo: primeira tradução da obra, no Brasil, diretamente do russo; apresentação dos tradutores, com esboço biográfico e contextualização histórica do enredo, dados bibliográficos sobre cada um dos contos (!) e exposição de alguns critérios utilizados para a tradução; textos de Boris Schnaiderman e de Otto Maria Carpeaux; glossário; sugestões de leitura. Parabéns aos profissionais: Eugênio Vinci de Moraes (preparação), Mário Ferraz (composição), Wagner Fernandes (tratamento de imagem), Sirlene Nascimento (produção gráfica), sob a coordenação editorial de Samuel Titan Jr., também responsável pela concepção original da coleção, juntamente com Augusto Massi e Davi Arrigucci Jr..
É um exemplo de rigor e excelência, inscrevendo essa coleção – que nos trouxe, entre outros, Canetti, Jacobsen, Petrônio, Bruno Schulz – como um marco na história editorial brasileira. 


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Imagens:
Dmitry Moor (1883 - 1946), "Você já se alistou?", 1920
https://sputniknews.com/photo/201802221061891541-poster-red-army/
Consultado em 5/4/2018. 
Dmitry Moor foi um dos mestres na arte dos cartazes, modalidade de propaganda de grande afluência nos anos soviéticos.

"Trotski discursa ao Exército Vermelho":
http://marxismoa.blogspot.com.br/2011/11/polish-soviet-war.html

"Retrato de Bábel nos anos 30": www.everipedia.com

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Atualização (3/2/2017):

Na primavera de 1920, com as credenciais de correspondente de guerra em nome de Kiríll Líutov, [Isaac Bábel] é enviado para acompanhar o Primeiro Exército de Cavalaria em ação na Ucrânia. O fato de usar outro nome era explicado como uma precaução necessária para proteger alguém com um nome judaico entre os combatentes cossacos, anti-semitas. (p. 59)


Da tese de doutorado de Henady Malarenko – Isaak Bábel e o seu Diário de guerra de 1920, apresentada ao programa de pós-graduação em Literatura e cultura russa, Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Línguas Orientais, São Paulo, 2011, com base na biografia de Bábel escrita por R. Krumm: R. KRUMM – Isaak Bábel – uma biografia. Moscou, Rosspen, 2008 (p. 50).
Na tese de Henady Malarenko há uma tradução para o português do “Diário de guerra de 1920”, de Bábel. Além do mais, em uma notícia biográfica do autor, há mais detalhes sobre as circunstâncias da morte de Bábel por obra da máquina de terror stalinista.


Tese disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde-11102011-133125/pt-br.php




Gavriil Popov (Rússia, Novocherkassk,1904 - URSS, Repino, Leningradskaia Oblast, 1972) - "A Campanha da Cavalaria Vermelha"