A
chave da casa,
de Tatiana Salem Levy
Identidade
em fragmento e mosaico
Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quarto, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar. Porque eu já nasci velha, numa cadeira de rodas, com as pernas enguiçadas, os braços ressequidos. Nasci com cheiro de terra úmida, o bafo de tempos antigos sobre o meu dorso. Por mais estranho que isso possa parecer, a verdade é que nasci com os pés na cova. Não falo de aparência física, mas de um peso que carrego nas costas, um peso que me endurece os ombros e me torce o pescoço, que me deixa dias a fio – às vezes um, dois meses – com a cabeça no mesmo lugar. Um peso que não é de todo meu, pois já nasci com ele. Como se toda vez em que digo “eu” estivesse dizendo “nós”. Nunca falo sozinha, falo sempre na companhia desse sopro que me segue desde o primeiro dia. (p. 9).
Para
Aristóteles, “a poesia é algo de mais filosófico e mais sério
do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e
esta o particular. Por ‘referir-se ao universal’ entendo eu
atribuir a um indivíduo determinada natureza, pensamentos e ações
que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal
natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que
dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que
fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu”. (1)
É,
pois, por intermédio da poesia, no caso a épica, que a narradora de
A chave da casa (2007), da escritora brasileira Tatiana Salem
Levy (Lisboa, Portugal, 24/1/1979), serve-se para investigar as suas
origens e a relação de seus ancestrais com a História; narradora,
ressalte-se, que traz ressonâncias da própria trajetória pessoal
da escritora, no contexto da tendência, na literatura brasileira
contemporânea, da autoficção, como vimos em postagem anterior a propósito do romance A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf. Mas a matéria primária da vida, é
preciso dizer, é apenas um motivador para a obra ficcional
altamente elaborada de Tatiana Salem Levy que põe em questão identidade, história e o
próprio suporte da estrutura narrativa e a sua correlação com a
realidade.
De
fato, a protagonista, da qual não é citado o nome e que narra a
história em primeira pessoa, é, assim como a própria escritora,
judia sefardita descendente de turcos e nasceu em Lisboa, em janeiro
de 1979, durante o exílio de seus pais, que para lá se dirigiram
por participação em organização clandestina atuante contra a
ditadura militar.
Os
sefarditas são o segmento judaico da diáspora que se estabeleceu na
Península Ibérica; com as perseguições advindas da Inquisição,
esse ramo emigrou para o Novo Mundo, principalmente ao Brasil, para o
norte da África e também para o Império Otomano, como é o caso
dos ancestrais da narradora e da escritora e que, no romance, estão
representados pelo avô da protagonista.
O
início da narrativa, como vimos, é sombrio: a protagonista afirma
estar imobilizada, desde há muito tempo, em seu quarto:
Um sopro que me paralisa. Uma espécie de fardo. Pesado. Mais do que isso: bruto, acimentado, capaz de me tirar todas as possibilidades de movimento, amarrando as articulações uma à outra, colando todos os espaços vazios do meu corpo. Não que eu seja uma pessoa triste. Não se trata de ser ou não ser feliz, mas de uma herança que trago comigo e da qual quero me livrar. (p. 9)
E
a escrita, “dar nome às coisas” (p. 10), é o instrumento para
se libertar do fardo.
E por isso, só por isso, escrevo. (p. 10).
O
desencadeamento da ação é dado quando o avô da narradora
entrega-lhe a chave da casa em que ele morava na Turquia, sem dizer o
que ela deve fazer com a chave, remetendo às mensagens enigmáticas
dos antigos oráculos:
E o que vou fazer com ela? Você é quem sabe, ele respondeu, como se não tivesse nada a ver com isso. As pessoas vão ficando velhas e, com medo da morte, passam aos outros aquilo que deveriam ter feito mas, por motivos diversos, não fizeram.E agora cabe a mim inventar que destino dar a essa chave, se não quiser passá-la adiante. (p. 13; grifo nosso).
A
narradora resolve, assim, refazer a circularidade da trajetória das
gerações a que está presa e de cujo fardo quer se livrar, a saber:
os sefaraditas fugiram, na Idade Média, de Portugal para o Império
Otomano; o avô da narradora, saiu da Turquia em direção ao Brasil;
os pais da narradora exilaram-se em Portugal, onde ela veio a nascer,
meses antes da anistia política, em 1979, quando então os seus pais
retornam ao Brasil.
Bedri Rahmi Eyüboglu, sem título
Como
se sabe, a identidade étnico-religiosa dos judeus é um componente
muito forte desse povo, com poucos paralelos na história: mesmo
desterritorializados por muitos séculos, até a criação do Estado
de Israel em 1948, esse povo permaneceu unido na diáspora, mantendo
crenças e costumes. Essa resistência à assimilação, contudo,
custou perseguições e tragédias aos judeus ao longo da sua
história. É justamente o peso dessa história sobre cada um dos
herdeiros dessa corrente que é o centro da indagação do romance.
A
chave da casa está estruturado em um jogo de armar. Os capítulos
são, via de regra, curtos e sucedem-se fragmentos dos seguintes
planos narrativos: o desencanto amoroso do avô na Turquia e a
posterior emigração para o Brasil; a viagem da narradora à Turquia
e, depois, a Portugal, a dolorosa convivência da narradora com o
câncer da mãe, a vida dos pais na clandestinidade política - aí
incluída uma trágica passagem da mãe pela tortura - e o posterior
exílio em Portugal e a turbulenta relação amorosa da narradora.
A
viagem, um topos fundamental da literatura ocidental –
pense-se, no tocante às fundações da literatura, em Ulisses, em
Eneias, em Dante -, expressa no romance seja pela viagem interior da
narradora ao seu passado e às suas origens, seja a viagem
propriamente dita à terra dos antepassados, é o fio condutor da
narrativa.
O simbolismo da viagem, particularmente rico, resume-se no entanto na busca da verdade, da paz, da imortalidade, da procura e da descoberta de um centro espiritual. (2)
A
isso, adicione-se a imagem simbólica da chave:
Nos contos, como nas lendas, muitas vezes se mencionam três chaves: elas introduzem sucessivamente em três recintos secretos que são outras tantas antecâmaras do mistério. (…) A chave é, aqui, o símbolo do mistério a penetrar, do enigma a resolver, da ação dificultosa a empreender, em suma, das etapas que conduzem à iluminação e à descoberta. (3)
A
chave da casa deixa claro, contudo, que mais do que contar
a história como um meio para se livrar “das dores de toda uma
família” (p. 106), vale dizer, a sucessão de tragédias da
história, trata-se de recontar ou, ainda além, de criar uma
história, uma vez que a própria forma-narrativa convencional é
colocada em questão.
Conto (crio) essa história dos meus antepassados (…) (p. 133).
Bedri
Rahmi Eyüboglu, sem título, 48x33cm.
A
propósito: estamos no campo da modernidade tardia, ou seja, do
questionamento das grandes narrativas totalizantes.
Em
oposição ao entendimento do passado “como ele de fato foi”,
para recorrermos a Walter Benjamim (4), A chave da casa dá
centralidade à criação, ao lúdico, ao jogo, em detrimento do
factual:
Parece que quanto mais me aproximo dos fatos mais me afasto da verdade. (p. 99)
Pois,
é a mensagem implícita do romance, a forma de deter o carrossel
das gerações e a transmissão irresolvida do trauma é fazer com
que cada geração aproprie-se criativamente do passado, pois contar
a história é recontá-la (p. 132).
Esse
primado da criação remete à ousada e clarividente formulação
estética do poeta, filósofo e historiador alemão Friedrich
Schiller, no final do século XVIII nas Cartas sobre a educação
estética do homem. Diante da realidade alienante do mundo da
revolução industrial que então se descortinava:
A utilidade é o grande ídolo da época, ela exige que todas as forças lhe sejam submetidas e que todos os talentos lhe prestem homenagem. (5)
Estabelece o pensador
uma conexão entre o exercício lúdico da imaginação, o gozo da
liberdade e, no plano agregado da vida social, um Estado com garantia
de igualdade entre os cidadãos, por meio da experiência do belo:
No Estado estético, todo mundo, mesmo um servente, que é apenas um instrumento, é um cidadão livre cujos direitos são iguais aos de maior nobreza. (6)
Herbert
Marcuse retoma essas reflexões de Schiller, que ele qualifica como
“uma das mais avançadas posições do pensamento” (7):
Assim que realmente ganhar ascendência como um princípio da civilização, o impulso lúdico transformará literalmente a realidade. A natureza, o mundo objetivo, seriam então experimentados primordialmente, não como domínio sobre o homem (tal como na sociedade primitiva) nem como dominados pelo homem (tal como na civilização estabelecida) mas, pelo contrário, como objetos de contemplação.
Assim,
sugerir que a peregrinação à terra dos ancestrais seja tão
somente produto da viagem interior, ou seja, da imaginação,
transcende o mero jogo artístico, para alçar-se ao elogio da
liberdade como busca da redenção diante da História, nesse belo
primeiro romance de Tatiana Salem Levy, justificadamente agraciado
com o Prêmio São Paulo de Literatura 2008, de melhor livro de autor
estreante.
Então, continuei a lhe contar. Contei como tinha sido a viagem à Turquia, as pessoas que tinha encontrado, a casa que não estava mais lá. Contei que tinha feito esse percurso para tentar sair do lugar, porque havia muito eu não me levantava da cama, no Brasil. Contei também da morte da minha mãe, da dor, do luto. Disse-lhe que falo com ela ainda hoje. Falo com os mortos, afirmei, com os mortos que me acompanham. (p. 200).
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(1)
ARISTÓTELES. Metafísica: livro 1 e livro 2; Ética a Nicômaco;
Poética. Trad. Vincenzo Cocco, São Paulo: Abril Cultural, 1979,
p. 249.
(2)
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos.
6a. ed., trad. Vera da Costa e Silva et allii, Rio de
Janeiro,: José Olympio, 1992, p. 951.
(3)
Id., ibid., p. 232.
(4)
BENJAMIM, Walter. “Sobre o conceito da história”, In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. 7a. ed., trad. Sérgio Paulo Rouanet, São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224.
(5)
SCHILLER, Friedrich, “A educação estética segundo Schiller”,
In: JIMENEZ, Marc. O que é Estética. Trad. Fúlvia M. L.
Moretto, São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 1999, p. 156.
(6)
Id., ibid., pp. 160 – 161.
(7)
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. 6a. ed., trad.
Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 167.
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Edição
utilizada:
Tatiana
Salem Levy. A chave da casa. 3a. ed., Rio de Janeiro:
Record, 2009. 206 pp.. Brochura, 13,5x20,5cm. Capa: Victor Burton.
Fonte: ClassGaramond 11/15. Papel off-white 90g/m2.
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Imagens
Bedri
Rahmi Eyüboglu (Görele, Província de Giresun, Império Otomano,
1911 - Istambul, Turquia, 1975), "Efkarli", óleo sobre
tela, 50x35cm, ca. 1950.
Bedri
Rahmi Eyüboglu, sem título, 121x93cm.
Bedri
Rahmi Eyüboglu, sem título, 48x33cm.
Fonte:
mutualart.com
Retrato
de Tatiana Salem Levy:
www.premiosaopaulodeliteratura.org.br
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Pinar
Köksal (Adana, Turquia, 1946), "Bir Şarkı İstedim",
canção curda, interpretado pela própria compositora.