sábado, 11 de janeiro de 2020


A chave da casa, de Tatiana Salem Levy
Identidade em fragmento e mosaico



                                                                    Bedri Rahmi Eyüboglu, "Efkarli" 



Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quarto, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar. Porque eu já nasci velha, numa cadeira de rodas, com as pernas enguiçadas, os braços ressequidos. Nasci com cheiro de terra úmida, o bafo de tempos antigos sobre o meu dorso. Por mais estranho que isso possa parecer, a verdade é que nasci com os pés na cova. Não falo de aparência física, mas de um peso que carrego nas costas, um peso que me endurece os ombros e me torce o pescoço, que me deixa dias a fio – às vezes um, dois meses – com a cabeça no mesmo lugar. Um peso que não é de todo meu, pois já nasci com ele. Como se toda vez em que digo “eu” estivesse dizendo “nós”. Nunca falo sozinha, falo sempre na companhia desse sopro que me segue desde o primeiro dia. (p. 9).


Para Aristóteles, “a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular. Por ‘referir-se ao universal’ entendo eu atribuir a um indivíduo determinada natureza, pensamentos e ações que, por liame de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu”. (1)

É, pois, por intermédio da poesia, no caso a épica, que a narradora de A chave da casa (2007), da escritora brasileira Tatiana Salem Levy (Lisboa, Portugal, 24/1/1979), serve-se para investigar as suas origens e a relação de seus ancestrais com a História; narradora, ressalte-se, que traz ressonâncias da própria trajetória pessoal da escritora, no contexto da tendência, na literatura brasileira contemporânea, da autoficção, como vimos em postagem anterior a propósito do romance A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf. Mas a matéria primária da vida, é preciso dizer, é apenas um motivador para a obra ficcional altamente elaborada de Tatiana Salem Levy que põe em questão identidade, história e o próprio suporte da estrutura narrativa e a sua correlação com a realidade.

De fato, a protagonista, da qual não é citado o nome e que narra a história em primeira pessoa, é, assim como a própria escritora, judia sefardita descendente de turcos e nasceu em Lisboa, em janeiro de 1979, durante o exílio de seus pais, que para lá se dirigiram por participação em organização clandestina atuante contra a ditadura militar.

Os sefarditas são o segmento judaico da diáspora que se estabeleceu na Península Ibérica; com as perseguições advindas da Inquisição, esse ramo emigrou para o Novo Mundo, principalmente ao Brasil, para o norte da África e também para o Império Otomano, como é o caso dos ancestrais da narradora e da escritora e que, no romance, estão representados pelo avô da protagonista.

O início da narrativa, como vimos, é sombrio: a protagonista afirma estar imobilizada, desde há muito tempo, em seu quarto:

Um sopro que me paralisa. Uma espécie de fardo. Pesado. Mais do que isso: bruto, acimentado, capaz de me tirar todas as possibilidades de movimento, amarrando as articulações uma à outra, colando todos os espaços vazios do meu corpo. Não que eu seja uma pessoa triste. Não se trata de ser ou não ser feliz, mas de uma herança que trago comigo e da qual quero me livrar. (p. 9)

E a escrita, “dar nome às coisas” (p. 10), é o instrumento para se libertar do fardo.

E por isso, só por isso, escrevo. (p. 10).

O desencadeamento da ação é dado quando o avô da narradora entrega-lhe a chave da casa em que ele morava na Turquia, sem dizer o que ela deve fazer com a chave, remetendo às mensagens enigmáticas dos antigos oráculos:

E o que vou fazer com ela? Você é quem sabe, ele respondeu, como se não tivesse nada a ver com isso. As pessoas vão ficando velhas e, com medo da morte, passam aos outros aquilo que deveriam ter feito mas, por motivos diversos, não fizeram.
E agora cabe a mim inventar que destino dar a essa chave, se não quiser passá-la adiante. (p. 13; grifo nosso).

A narradora resolve, assim, refazer a circularidade da trajetória das gerações a que está presa e de cujo fardo quer se livrar, a saber: os sefaraditas fugiram, na Idade Média, de Portugal para o Império Otomano; o avô da narradora, saiu da Turquia em direção ao Brasil; os pais da narradora exilaram-se em Portugal, onde ela veio a nascer, meses antes da anistia política, em 1979, quando então os seus pais retornam ao Brasil.


                                                                 Bedri Rahmi Eyüboglu, sem título


Como se sabe, a identidade étnico-religiosa dos judeus é um componente muito forte desse povo, com poucos paralelos na história: mesmo desterritorializados por muitos séculos, até a criação do Estado de Israel em 1948, esse povo permaneceu unido na diáspora, mantendo crenças e costumes. Essa resistência à assimilação, contudo, custou perseguições e tragédias aos judeus ao longo da sua história. É justamente o peso dessa história sobre cada um dos herdeiros dessa corrente que é o centro da indagação do romance.


A chave da casa está estruturado em um jogo de armar. Os capítulos são, via de regra, curtos e sucedem-se fragmentos dos seguintes planos narrativos: o desencanto amoroso do avô na Turquia e a posterior emigração para o Brasil; a viagem da narradora à Turquia e, depois, a Portugal, a dolorosa convivência da narradora com o câncer da mãe, a vida dos pais na clandestinidade política - aí incluída uma trágica passagem da mãe pela tortura - e o posterior exílio em Portugal e a turbulenta relação amorosa da narradora.

A viagem, um topos fundamental da literatura ocidental – pense-se, no tocante às fundações da literatura, em Ulisses, em Eneias, em Dante -, expressa no romance seja pela viagem interior da narradora ao seu passado e às suas origens, seja a viagem propriamente dita à terra dos antepassados, é o fio condutor da narrativa.

O simbolismo da viagem, particularmente rico, resume-se no entanto na busca da verdade, da paz, da imortalidade, da procura e da descoberta de um centro espiritual. (2)

A isso, adicione-se a imagem simbólica da chave:

Nos contos, como nas lendas, muitas vezes se mencionam três chaves: elas introduzem sucessivamente em três recintos secretos que são outras tantas antecâmaras do mistério. (…) A chave é, aqui, o símbolo do mistério a penetrar, do enigma a resolver, da ação dificultosa a empreender, em suma, das etapas que conduzem à iluminação e à descoberta. (3)

A chave da casa deixa claro, contudo, que mais do que contar a história como um meio para se livrar “das dores de toda uma família” (p. 106), vale dizer, a sucessão de tragédias da história, trata-se de recontar ou, ainda além, de criar uma história, uma vez que a própria forma-narrativa convencional é colocada em questão.

Conto (crio) essa história dos meus antepassados (…) (p. 133).


                                                                            Bedri Rahmi Eyüboglu, sem título, 48x33cm.


A propósito: estamos no campo da modernidade tardia, ou seja, do questionamento das grandes narrativas totalizantes.

Em oposição ao entendimento do passado “como ele de fato foi”, para recorrermos a Walter Benjamim (4), A chave da casa dá centralidade à criação, ao lúdico, ao jogo, em detrimento do factual:

Parece que quanto mais me aproximo dos fatos mais me afasto da verdade. (p. 99)

Pois, é a mensagem implícita do romance, a forma de deter o carrossel das gerações e a transmissão irresolvida do trauma é fazer com que cada geração aproprie-se criativamente do passado, pois contar a história é recontá-la (p. 132).

Esse primado da criação remete à ousada e clarividente formulação estética do poeta, filósofo e historiador alemão Friedrich Schiller, no final do século XVIII nas Cartas sobre a educação estética do homem. Diante da realidade alienante do mundo da revolução industrial que então se descortinava:

A utilidade é o grande ídolo da época, ela exige que todas as forças lhe sejam submetidas e que todos os talentos lhe prestem homenagem. (5)

Estabelece o pensador uma conexão entre o exercício lúdico da imaginação, o gozo da liberdade e, no plano agregado da vida social, um Estado com garantia de igualdade entre os cidadãos, por meio da experiência do belo:

No Estado estético, todo mundo, mesmo um servente, que é apenas um instrumento, é um cidadão livre cujos direitos são iguais aos de maior nobreza. (6)

Herbert Marcuse retoma essas reflexões de Schiller, que ele qualifica como “uma das mais avançadas posições do pensamento” (7):

Assim que realmente ganhar ascendência como um princípio da civilização, o impulso lúdico transformará literalmente a realidade. A natureza, o mundo objetivo, seriam então experimentados primordialmente, não como domínio sobre o homem (tal como na sociedade primitiva) nem como dominados pelo homem (tal como na civilização estabelecida) mas, pelo contrário, como objetos de contemplação.

Assim, sugerir que a peregrinação à terra dos ancestrais seja tão somente produto da viagem interior, ou seja, da imaginação, transcende o mero jogo artístico, para alçar-se ao elogio da liberdade como busca da redenção diante da História, nesse belo primeiro romance de Tatiana Salem Levy, justificadamente agraciado com o Prêmio São Paulo de Literatura 2008, de melhor livro de autor estreante.

Então, continuei a lhe contar. Contei como tinha sido a viagem à Turquia, as pessoas que tinha encontrado, a casa que não estava mais lá. Contei que tinha feito esse percurso para tentar sair do lugar, porque havia muito eu não me levantava da cama, no Brasil. Contei também da morte da minha mãe, da dor, do luto. Disse-lhe que falo com ela ainda hoje. Falo com os mortos, afirmei, com os mortos que me acompanham. (p. 200).



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(1) ARISTÓTELES. Metafísica: livro 1 e livro 2; Ética a Nicômaco; Poética. Trad. Vincenzo Cocco, São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 249.

(2) CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 6a. ed., trad. Vera da Costa e Silva et allii, Rio de Janeiro,: José Olympio, 1992, p. 951.

(3) Id., ibid., p. 232.

(4) BENJAMIM, Walter. “Sobre o conceito da história”, In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7a. ed., trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224.

(5) SCHILLER, Friedrich, “A educação estética segundo Schiller”, In: JIMENEZ, Marc. O que é Estética. Trad. Fúlvia M. L. Moretto, São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 1999, p. 156.

(6) Id., ibid., pp. 160 – 161.

(7) MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. 6a. ed., trad. Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 167.

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Edição utilizada:
Tatiana Salem Levy. A chave da casa. 3a. ed., Rio de Janeiro: Record, 2009. 206 pp.. Brochura, 13,5x20,5cm. Capa: Victor Burton. Fonte: ClassGaramond 11/15. Papel off-white 90g/m2.

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Imagens
Bedri Rahmi Eyüboglu (Görele, Província de Giresun, Império Otomano, 1911 - Istambul, Turquia, 1975), "Efkarli", óleo sobre tela, 50x35cm, ca. 1950.
Bedri Rahmi Eyüboglu, sem título, 121x93cm.
Bedri Rahmi Eyüboglu, sem título, 48x33cm.
Fonte: mutualart.com

Retrato de Tatiana Salem Levy:
www.premiosaopaulodeliteratura.org.br

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Pinar Köksal (Adana, Turquia, 1946), "Bir Şarkı İstedim", canção curda, interpretado pela própria compositora.