Pais e filhos, de Ivan Turguêniev
No bicentenário do grande escritor russo
Иван
Сергеевич Тургенев
Отцы
и дети
- E então, Piotr, nada ainda? - perguntou, no dia 20 de maio de 1859, ao sair sem chapéu para a varandinha baixa de uma estação de muda de cavalos na estrada de ***, um fidalgo de uns quarenta e poucos anos, de casaco empoeirado e calça xadrez, ao seu criado, um jovem bochechudo com uma penugem esbranquiçada no queixo e uns olhinhos opacos.
O criado, em quem tudo, o brinco azul-turquesa em uma orelha, os cabelos multicolores e empomadados, os gestos corteses, em suma, tudo acusava um homem de uma geração moderna e sofisticada, olhou para a estrada com ar condescendente e respondeu:
- Nada, nem sombra.
- Não vê nada? - repetiu o fidalgo.
- Nada – respondeu pela segunda vez o criado.
O fidalgo deu um suspiro e sentou-se num banquinho. Enquanto está sentado sobre as próprias pernas dobradas e lança olhares pensativos em redor, vamos apresentá-lo ao leitor. (p. 19).
Pais
e filhos (1862) traz muitas recompensas ao leitor: o contato com
um importante representante da literatura russa da segunda metade do
século XIX, o romancista, contista, poeta, dramaturgo e tradutor
Ivan Serguêievitch Turguêniev (Oriol, Império Russo, 9/11/1818 –
Bougival, Seine-et-Oise, França, 3/9/1883), o primeiro escritor
russo a gozar de prestígio na Europa ocidental; o contato com a sua
obra-prima, não obstante esse romance, pelo seu caráter polêmico,
como se verá a seguir, tenha causado ao autor muitos dissabores que
se estenderam até fim o fim da sua vida – registre-se, aliás, que
os debates e embates em torno do presente romance, os maiores de toda
a literatura russa, ultrapassaram as fronteiras do século, chegando
até mesmo à Rússia soviética; por fim, mas não menos relevante,
em Pais e filhos revela-se a genialidade de um artista que,
por meio de um enredo aparentemente singelo envolvendo poucas
personagens, conseguiu captar a História a quente, a saber, a fase
inicial de um período de grande turbulência política no Império
Russo, com reflexos em todos os demais âmbitos do país: na
economia, na sociedade, na intelectualidade, na vida cultural, nas
artes em especial. É conveniente, a propósito, partir desse
contexto.
O
Império Russo após a Guerra da Crimeia
Se
o período posterior ao levante dezembrista de 1825 (a respeito, v.
nesse blog a postagem sobre o romance Um herói do
nosso tempo, de Mikhail Liérmontov) foi marcado pela sensação
de estagnação, em consequência da severa repressão imposta pelo
czar Nicolau I ao movimento rebelde, todas as tensões até então
reprimidas vêm à tona com a crise decorrente da Guerra da Crimeia
(1853 - 1856), que foi decorrência conjunta dos interesses das
potências europeias e do declínio do Império Otomano. O Império
Russo foi arrastado ao conflito militar por esse complexo xadrez
geopolítico, mas o fato é que a guerra em si, seus pesados custos
humanos e materiais, a que se adiciona um Tratado, que encerrou as
hostilidades, extremamente desfavorável ao Império Russo, com
perdas territoriais, perda dos direitos navais no mar Negro, do
direito de passagem por mar para o Mediterrâneo e do protetorado
sobre os cristãos ortodoxos nos territórios otomanos, tudo isso,
essa perda de influência e de prestígio, calou fundo principalmente
na intelectualidade, nas camadas médias, nos burocratas e em certas
parcelas da pequena nobreza.
Outros
elementos de diversas naturezas colaboraram para elevar a
peculiaridade desse movimento de agitações: durante a Guerra, em
1855, morreu Nicolau I, sucedido pelo czar Alexandre II, mais aberto
às manifestações da sociedade, o que possibilitou uma distensão
do regime repressivo anterior e, assim, uma maior circulação de
ideias e abertura ao debate público, justamente em meio à crise
econômica causada principalmente pelos custos com a guerra e pela
elevação dos impostos e preços. Nesse mesmo período da Guerra e
nos anos imediatamente posteriores, houve tensão social no campo,
como fruto de diversas revoltas de camponeses, em reação às duras
condições em que trabalhavam e viviam nas propriedades dos senhores
de terras. Frise-se, aliás, que foi justamente a coletânea de
contos Memórias de um caçador (1852), de Turguêniev, que
colocou em evidência para as camadas letradas as ásperas condições
de vida dos servos e as injustiças e humilhações a que eram
submetidos.
Pois
foi exatamente no período de escrita de Pais e filhos, entre
os anos de 1860 e 1862, iniciando o período das Grandes Reformas de
Alexandre II – uma forma de resposta às turbulências social e
política -, que ocorreu a abolição da servidão, em 1861.
Konstantin
Yegorovitch Makovsky, “Retrato de Lucien Guitry”
Populismo
e niilismo na Rússia da década de 1860
As
raízes do radicalismo na Rússia Imperial da segunda metade do
século XIX, movimento que ficou conhecido como populismo, repousam
no descompasso deste país, com industrialização muito incipiente e
vidas social, econômica e política estruturadas sobre a realidade
hegemônica das grandes propriedades rurais, com as aceleradas
transformações da Revolução Industrial, com toda a razão
instrumental que lhe serve de
apoio, pelas quais passavam os países da Europa
ocidental.
Grande
parte do debate intelectual no Império Russo no século XIX,
notadamente após o movimento dezembrista, é tomado pela oposição
entre os ocidentalistas e os eslavófilos, o que reflete, de certa
maneira, tensões de longa duração na cultura russa, advindas do
entrechoque entre visões ou mais suscetíveis às ideias europeias
ou às tradições orientais, principalmente, nesse último caso, por
força da religiosidade cristão ortodoxa.
O
populismo russo foi um movimento social amplo e, por isso mesmo,
heterogêneo em suas bases doutrinárias, muito influente
principalmente nas décadas de sessenta e setenta do século XIX, que
atua sob inspiração sobretudo de ideólogos e reformadores radicais
e socialistas (anteriores a Marx e Engels) europeus ou publicistas
russos que abrigavam esses novos ideários, como, por exemplo,
Proudhon, Saint Simon, Fourier e Herzen.
Para
Isaiah Berlin, “a exemplo de seus antecessores, os conspiradores
dezembristas da década de 1820, e os círculos que se reuniram em
torno de Aleksandr Herzen e Bielinski nos anos 30 e 40, [os
populistas russos] encaravam o governo e a estrutura social de seu
país como uma monstruosidade moral e política, obsoleta, bárbara,
estúpida e odiosa, e dedicaram suas vidas à sua completa
destruição” (2).
“Completa
destruição”: o populismo russo foi um movimento enragé,
adepto da ação direta, anti-sistema e reativo à paralisia da
institucionalidade – Governo e Partidos – e sua incapacidade de
reformar as várias instâncias da vida russa, com o fim de trazer
igualdade e justiça sociais, eliminando, assim, a miséria e a
opressão sobre os despossuídos, que, no caso do Império Russo,
eram, basicamente, os camponeses, pois o operariado era uma porção
ainda pouco significativa do universo dos trabalhadores.
A
concepção de prática politica do populismo, por meio da ação
direta, atingirá a sua culminância em 13 de março de 1881 com um
atentado a bomba, cuidadosamente planejado e executado, vitimando o
czar Alexandre II, após o que se seguirá um declínio do movimento.
Os
adeptos do populismo dedicavam uma devoção e idealização do
campesinato, de sua vida natural e da organização comunitária, nos
quais viam a essência dos valores do país, ao mesmo tempo que
depositavam a crença de que a ciência e a tecnologia deveriam ser
absorvidas pelo Império Russo, sem a alienação a que o homem fora
levado nos países em que ocorrera a Revolução Industrial.
Delineia-se,
dessa forma, portanto, o quadro em que se insere Pais e filhos:
a geração da década de sessenta não crê mais nas soluções do
liberalismo da geração da década de 40. Bazárov, protagonista do
presente romance, uma das grandes personagens da literatura russa,
personifica, com a sua impetuosidade no limite da arrogância e
desprezo, essa nova geração que quer por abaixo radicalmente as
estruturas carcomidas do Império Russo.
Gerações
em embate em Pais e filhos
Em
Turguêniev insinuam-se muitos elementos que viriam a caracterizar a
literatura da modernidade. O escritor passava largas temporadas na
Europa ocidental, em contato constante com os grandes escritores e,
portanto, com as tendências contemporâneas da literatura europeia.
Era muito próximo de Flaubert, entre outros escritores e artistas.
Em Pais e filhos, por exemplo, já se percebe uma rarefação
do enredo; a fabulação exuberante, frequentemente associada ao
Romantismo, aqui cede lugar à exposição e ao estudo de caracteres,
principalmente por meio dos diálogos, nos quais Turguêniev é um
mestre. Daí a relevância do protagonista, Ievgueni Vassílievitch
Bazárov, no qual o autor procura concentrar muitos dos aspectos que
estavam em jogo naquele momento histórico: jovens estudantes movidos
por um impulso radical de contestar a realidade russa.
No
começo do romance, narrado em terceira pessoa, Nikolai Petróvitch
Kirsánov, agrônomo e senhor de terras decadente da pequena
aristocracia, aguarda a chegada do seu filho Arkádi, vindo da
Universidade. Ele chega acompanhado de Bazárov, filho de um militar
médico e também ele estudante de Medicina, a quem Arkádi se coloca
como um admirador e discípulo.
Tão
logo pai, filho e seu amigo chegam à casa dos Kirsánov, o Narrador
já expõe uma cena em que se sintetiza a tensão sobre a qual a
narrativa se desenvolverá:
O
coração de Arkádi encolheu-se
um pouco. Como que de propósito, todos os mujiques que encontrava
estavam esfarrapados e montavam pangarés deploráveis; como
indigentes em andrajos, alguns salgueiros descascados e de galhos
partidos margeavam a estrada; vacas descarnadas, enrugadas, como se
fossem só pele e osso, tosavam esfomeadas o capim das valas. Parecia
que haviam acabado de escapar de garras terríveis e mortíferas –
e, despertado pelo aspecto lastimável das criaturas exauridas em
meio àquele radioso dia de primavera, ergueu-se o espectro branco do
inverno desolador e interminável, com suas tempestades de neve, de
gelo e suas ondas de frio… “Não”, pensou Arkádi, “esta não
é uma região rica, não impressiona nem pela fartura, nem pela
dedicação ao trabalho; não é possível, não é possível que
continue assim, reformas são imprescindíveis… mas como
executá-las, como dar o primeiro passo?” (p. 32).
Causará
impacto, ao longo do romance, como Bazárov, um niilista – é assim
que Arkádi qualifica o amigo, ao apresentá-lo ao tio – irá se
postar e emitir a sua opinião a respeito desse quadro de desolação
social e econômica, criticando, de forma contundente, a
aristocracia, a sua mentalidade e os seus modos, a tudo isso opondo a
superioridade da ciência e da técnica e investigação metódicas.
Nikolai
tem alma bondosa e adota uma postura de curiosidade em relação a
Bazárov; não é o caso do tio de Arkádi, Pável Petróvitch
Kirsánov, que representa, por excelência, a geração de 40, e com
o qual Bazárov terá duras e ácidas discussões.
-
Ele é um niilista – repetiu Arkádi.
(…)
-
Digamos: que não respeita nada – emendou Pável Petróvitch e
novamente se pôs a passar manteiga no pão.
-
Aquele que considera tudo de um ponto de vista crítico – observou
Arkádi.
-
E não é a mesma coisa? - indagou Pável Petróvitch.
-
Não, não é a mesma coisa. O niilista é uma pessoa que não se
curva a nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito
sem provas, com base na fé, por mais que esse princípio esteja
cercado de respeito. (pp. 46 – 47).
-
Aristocratismo, liberalismo, progresso, princípios – dizia
Bazárov, enquanto isso. - Vejam só! Quantas palavras estrangeiras e
inúteis! O homem russo não necessita delas, não as quer nem de
graça.
-
E do que ele necessita, na opinião do senhor? A julgar pelo que o
senhor nos diz, estamos simplesmente fora do âmbito humano, além de
suas leis. Queira perdoar, mas a lógica da história exige que…
-
Ora, e de que serve essa lógica? Podemos passar muito bem sem ela.
-
Como assim?
-
Assim mesmo, ora. O senhor, eu creio, não necessita de lógica para
por um pedaço de pão dentro da boca quando tem fome. Para que
servem essas abstrações?
Pável
Petróvitch sacudiu as mãos.
-
Não o entendo, depois disso. O senhor insulta o povo russo. Não
entendo como é possível não reconhecer os princípios, as normas!
Em que o senhor fundamenta suas ações?
-
Já lhe disse, titio, que nós não reconhecemos as autoridades –
interveio Arkádi.
-
Nossas ações se fundamentam naquilo que julgamos útil – declarou
Bazárov. - Nos tempos atuais, o mais útil é a negação: nós
negamos.
-
Tudo?
-
Tudo.
-
Como assim? Não só a arte, a poesia… mas também… é horrível
dizê-lo…
-
Tudo – repetiu Bazárov, com indescritível serenidade. (pp.
84 – 85).
A
esse plano, de oposições ideológicas, justapõe-se e entrelaça-se
outro, o das oposições amorosas. E, com isso, o escritor, com
argúcia, alça o seu romance a outro patamar, apesar das polêmicas
que o romance gerou.
Não
foi por acaso que Pais e filhos obteve uma quase unanimidade
de críticas negativas, à esquerda, ao centro e à direita. O fato
de ter mantido a sua visão pessoal com esse romance, não se
alinhando claramente a nenhuma das correntes ideológicas de seu
tempo, em uma trajetória, até o final da redação da obra, não
isenta, é certo, de hesitações, causou-lhe grandes dissabores até
o final de sua vida.
Isaiah
Berlin dá a devida dimensão do impacto de Pais e filhos no
debate entre os intelectuais e publicistas da época, mesmo durante a
redação da obra, tendo em vista o autor ter antecipado trechos do
romance a algumas pessoas do seu círculo íntimo, entre os quais o
seu editor, com o qual, posteriormente, viria a romper:
Aqueles
que ainda o consideram um artista desengajado, acima das batalhas
ideológicas, poderão ficar surpreendidos ao saber que ninguém, em
toda a história da literatura russa e, talvez, da literatura em
geral, foi tão feroz e continuamente atacado quanto Turguêniev, não
só pela direita, como também pela esquerda. Dostoiévski e Tolstói
tinham opiniões muito mais violentas, mas eram figuras temíveis,
profetas irados, tratados com nervoso respeito mesmo por seus mais
encarniçados adversários. Turguêniev não era de modo algum
temível; amável, cético, “bom e mole como cera”, era por
demais cortês e confiava muito pouco em si mesmo para assustar quem
quer que fosse. Não encarnava nenhum princípio claro, não advogava
doutrinas, não tinha panaceias para as “malditas questões”,
conforme passaram a ser denominadas, fossem elas pessoas ou sociais.
E
adiciona mais adiante:
É
bem verdade que Tolstói jamais nos deixa em dúvidas a respeito de
quem ele prefere e a quem condena; Dostoiévski não oculta o que
considera ser o caminho da salvação. No meio desses grandes e
atormentados Laocoontes, Turguêniev permaneceu cauteloso e cético.
O leitor é deixado em suspenso, num estado de dúvida. (2)
Ressalta-se,
assim, a postura de Turguêniev, pela autonomia da obra de arte, que
prenuncia a modernidade e, alguns anos depois, na Rússia, já estará
muito evidente, por exemplo, para Tchékhov:
O
artista não deve ser o juiz de suas personagens, nem do que elas
falam, mas apenas uma testemunha imparcial. Ouvi uma conversa sem
nexo entre dois russos sobre o pessimismo, que não resolvia nada, e
devo transmitir essa conversa exatamente como a ouvi, e os jurados,
ou seja, os leitores, irão julgá-la. Meu papel é apenas ter
talento, ou seja, saber distinguir as declarações importantes das
insignificantes, saber iluminar as personagens e falar a língua
delas.. Chtcheglóv-Leôntiev me recrimina por eu ter concluído o
conto com a frase: “Não se compreende nada neste mundo!” Na sua
opinião, o artista-psicólogo deve compreender, pois ele é
psicólogo, mas eu não concordo com ele. Já está na hora de as
pessoas que escrevem, sobretudo os artistas, perceberem que neste
mundo não se compreende nada, como reconheceu outrora Sócrates e
como Voltaire reconhecia. A multidão pensa que sabe tudo e entende
tudo; e quanto mais estúpida ela é, mais amplo parece-lhe o seu
horizonte. Mas se um artista, em quem a multidão acredita, decide
declarar que não compreende nada do que vê, só isto já
constituirá um grande saber no domínio do pensamento e um grande
passo avante (…). (3)
As
trincheiras da razão, as convicções e as ortodoxias não só em
Bazárov, mas em todas as demais personagens do romance irão se
diluir, nuançar-se e desestabilizar-se pelas fissuras abertas pelo
desejo.
Arkádi,
retornando à casa paterna é surpreendido ao saber que tem um irmão,
um bebê, fruto da união não oficial do pai com uma mulher muito
mais jovem, Fedóssia (Feniêtchka) Nikoláievna, filha da governanta
que veio a falecer enquanto trabalhava para os Kirsánov.
Em
torno de Feniêtchka movem-se os desejos de Bazárov e de Pável
Petróvitch, que leva, inclusive a um duelo patético entre os dois.
A
mesma palpitação do desejo envolverá Arkádi e Bazárov em torno
da proprietária de terras Ana Sergueiêvna Odíntsova, de vinte e
nove anos, “inteligente, rica, viúva” (p. 111). Arkádi acabará
envolvendo-se com Kátia, irmã de Ana Sergueiêvna, ao passo que
Bazárov será atraído, de maneira ambivalente, por essa sedutora
mulher.
Antes
numa postura de desprezo para o jogo amoroso e para a mulher ou,
então, movido simplesmente pela atração concupiscente, Bazárov
vê-se enredado nas forças elusivas do desejo:
Odíntsova
lhe agradava: os rumores que corriam a respeito dela, a liberdade e a
independência do seu pensamento, a indubitável simpatia que tinha
por ele – tudo parecia estar a seu favor; porém Bazárov logo
compreendeu que, no caso de Odíntsova, não conseguiria “tirar
algum proveito” e, no entanto, para sua própria surpresa, não
tinha forças para lhe dar as costas. Seu sangue fervia só de pensar
nela; poderia facilmente dominar seu sangue, porém uma outra coisa
criava raízes dentro dele, algo que ele não admitia de maneira
alguma, algo de que sempre zombava, algo que punha todo o seu orgulho
em pé de guerra. Nas conversas com Ana Sergueiêvna,
Bazárov manifestava, ainda mais do que antes, seu inabalável
desprezo por todo e qualquer romantismo; quando sozinho, porém,
indignava-se ao reconhecer um romântico em si mesmo. (p.
143).
Eis
a sutil ironia que o Narrador desvela aos olhos do leitor: pelas
cintilações do desejo, Bazárov chega ao avesso de si mesmo, pondo
em questão as bases da sua crispada arquitetura da razão. É dessa
forma que um grande escritor transpõe os impasses do seu tempo,
alcançando, pelos mecanismos próprios da arte, novas sínteses e
novos territórios da sensibilidade e do conhecimento.
Saudemos,
pois, em seu bicentenário, Ivan Turguêniev e seu legado artístico.
_________
(1)
BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988, p. 214.
(2)
Id., ibid., p. 271.
(3)
Anton P. Tchpekhov, Carta n°
3: par Alekséi S. Suvórin; Sumi, 30 de maio de 1888. In: Irlemar
Chiampi (org.). Fundadores da
modernidade. Trad. Aurora Fornoni Bernardini, São Paulo:
Ática, 1991, p. 165.
*
Edição
utilizada:
TURGUÊNIEV,
Ivan. Pais
e filhos. Tradução,
prefácio de Rubens Figueiredo, São
Paulo: Cosacnaify,
2004, 360
pp. Coleção Prosa do Mundo.
Ensaios de Ivan Turguêniev e Henry
James. 1ª
reimpressão, 2006. Capa
dura, 14,5x21cm.
Imagem da sobrecapa:
caricaturas de Ivan Turguêniev e
Pauline Viardot. Livro
composto em Bembo,
papel Pólen Print
90 g/m².
*
Imagens:
Konstantin
Yegorovitch Makovsky (Moscou, 20/6/1839 – São Petersburgo,
17/9/1915), “Retrato de um homem” (1200 x 1525), coleção
privada
https://www.the-athenaeum.org/art/detail.php?ID=233856
Konstantin
Yegorovitch Makovsky, “Retrato de Lucien Guitry”, (2070 x 2500),
coleção privada
https://www.the-athenaeum.org/art/detail.php?ID=137099
Konstantin
Yegorovitch Makovsky, “Retrato de uma jovem senhora com laçarote
rosa”, (1200 x 1495), Galeria Nacional Komi, Rússia
https://www.the-athenaeum.org/art/full.php?ID=234050
Konstantin
Yegorovitch Makovsky, “Retrato da
família Volkov”,
(1598
x 2000),
Museu Hermitage, São
Petersburgo
*
Turguêniev
e seus colegas escritores
Na
primeira fileira: Ivan Goncharov, Ivan Turguêniev, Alexandre
Vassilievich Drujinin e Alexandr Nikolievich Ostrovsky; atrás, em
pé: Leo Tolstói, Dimitri Vassiliévich Grigorovich.
Fotografia
de Sergei Lvovich Levitsky, março de 1856. Escritores que
colaboravam para a revista “Sovremennik”.
https://russkiymir.ru/en/magazines/article/143873/
Mikhail
Ivanovitch Glinka (1804 – 1857), Finale da ópera “Uma vida pelo
czar” (1836)
Coro
e Orquestra do Teatro Mikhailovsky, São Petersburgo, 6/3/2013.