quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018


Almas mortas, de Nikolai Gógol

 


Uma crítica radical da Rússia do século XIX

 


Мёртвые души





                                                                                               Almas mortas, por Sergey Alimov

Pelos portões da estalagem-sede da província NN entrou uma pequena sege de molas, bastante vistosa, daquelas em que costumam viajar solteirões, comandantes reformados, capitães de Estado-Maior, proprietários rurais donos de uma centena de almas de camponeses – em suma, todos aqueles a quem se costuma chamar de senhores de condição média. Na sege viajava um cavalheiro, não muito belo, mas tampouco de aspecto desagradável, nem muito gordo, nem magro demais; não se poderia dizer que fosse velho, mas também não era demasiado jovem. Sua chegada não causou na cidade nenhuma celeuma, nem foi acompanhada por nada de excepcional; apenas dois mujiques russos, parados na porta do botequim defronte à estalagem, fizeram algumas observações, aliás, referentes mais ao veículo do que ao passageiro. - Espia aquela roda – disse um para o outro -, estás vendo que roda? Que te parece, aquela roda chegaria até Moscou, se fosse o caso, ou não chegaria? - Chegaria – respondeu o outro. - Mas até Kazan eu acho que não chegaria. - Até Kazan não chegaria, não – disse o outro. E com isso terminou a conversa. (p. 37) (1).


                                                                               "Almas mortas", Marc Chagall, gravura 75




Para o início desse passeio pela obra magna do grande autor russo-ucraniano, cabem duas observações preliminares: a magnitude dessa obra de Nikolai Vassílievitch Gógol (31/3/1809 – Aldeia de Sorótchintzi, Província de Poltava, Ucrânia, Império Russo – 4/3/1852 – Moscou, Império Russo) pode ser entendida, contrariamente ao que o título dá a entender, pelo fato de que o leitor se verá às gargalhadas, por diversas vezes, diante de uma novela publicada há cento e setenta e seis anos (a Primeira Parte foi publicada em 1842). Por fim, trata-se de uma obra inacabada; a Segunda Parte foi publicada em 1855, após a morte do autor, sem que os manuscritos tivessem sido completados. Essa falta de uma conclusão, não tira à obra, contudo, o seu poder, atualidade e grandeza para as literaturas russa e universal; ao contrário, esse inacabamento diz muito sobre o autor e a Rússia de então, como se verá a seguir.



Uma mostra do vigor da literatura russa do século XIX dá-se pelo fato de que dois grandes escritores, como Púchkin e Gógol, foram não só contemporâneos (Gógol é nove anos mais novo do que Púchkin), mas estiveram unidos por laços de uma profunda amizade: Púchkin, já um escritor consagrado, apoiou e estimulou o jovem escritor que se dirigira a Petersburgo aos vinte anos e deu-lhe as sugestões do que seriam as duas obras mais importantes de Gógol, a peça O Inspetor geral (1836) e Almas mortas – nesse último caso, com base em notícias de jornal. A morte trágica de Púchkin, em 1837, em um duelo, da qual tomou conhecimento quando se encontrava em uma estadia em Paris, causou profundo impacto em Gógol, que o levou a interromper temporariamente a sua atividade de escrita; após isso, como uma homenagem ao amigo, toma a si com novo ânimo a tarefa de retomar a criação de Almas mortas.




Um talento precoce

Filho da nobreza rural, Gógol esteve desde sempre ligado aos costumes, aos contos e canções populares, às lendas e ao folclore de sua Ucrânia natal, que influenciarão toda a sua visão artística. Com as desilusões que teve em Petersburgo, seja como funcionário público, seja como acadêmico ou atingido pelo embate entre eslavófilos e ocidentalistas, a visão de mundo de Gógol foi, em todo o seu percurso artístico, marcada pela sua origem na nobreza rural, com uma visão crítica da Corte, da burocracia, da corrupção e dos costumes da capital, muito embora o seu olhar satírico não tivesse limites, expondo igualmente os vícios do meio rural e de toda a Rússia, estagnada pelas amarras do regime servil a que estavam submetidos os mujiques, isto é, os camponeses e que dá a moldura para a composição de Almas mortas.



Desde a adolescência, a vocação literária de Gógol já se manifesta, por meio de poemas, de uma tragédia, uma novela e uma sátira, divulgados no colégio.

Em 1829, muda-se para Petersburgo, onde obtém modesto emprego numa repartição pública, o que lhe fornecerá farto material para a sua inspiração. A publicação da sua primeira novela no ano seguinte, Bassavriúk ou Noite de São João, põe o jovem escritor em contato com Púchkin, dentre outros artistas.


A publicação do primeiro volume das novelas da vida ucraniana, Serões numa granja perto de Dikanka, em 1831, traz-lhe reconhecimento da crítica e notoriedade popular.

Com a publicação, em 1835, das duas coletâneas de narrativas curtas, Mirgorod (contém, entre outras, “Tarás Bulba”) e Arabescos (contém, entre outras, “Diário de um louco”), fixam-se características que marcam a sua obra, como o riso e o grotesco, e vem a consagração: passa a ser considerado um dos mais importantes escritores da sua época. Nesse mesmo ano, inicia a redação de Almas mortas.


Em 1836, a vida cultural de Petersburgo sofre um impacto após o czar Nicolau I ter autorizado e ser apresentada no Teatro Alexandrino a peça O Inspetor geral, contendo crítica ácida à burocracia provinciana. Fortemente atacado pelos setores retratados na peça, Gógol apoia-se nos intelectuais eslavófilos, não obstante a peça justamente colocar em evidência as mazelas da cultura e das tradições da velha Rússia, defendida pelos membros dessa corrente. Vítima de uma crise interior por todos esses acontecimentos, viaja nesse mesmo ano à Alemanha, Suíça e França.


A notícia da morte do amigo Púchkin, no ano seguinte, em 1837, leva-o a nova e grave crise depressiva; visões místicas e sombrias passam a ocupar a sua mente. Com o apoio de amigos, Gógol recupera-se, mas essas crises serão, doravante, recorrentes.


Em 1841, depois de nova estadia em Roma, retorna à Rússia e submete os originais da Primeira Parte de Almas mortas ao Comitê de Censura de Moscou, que manifesta parecer contrário à obra. No ano seguinte, Gógol envia a obra para avaliação do Comitê de Petersburgo, que libera a obra com cortes e correções. A Primeira Parte da novela é publicada no mesmo ano de 1842.


A publicação, em 1847, de Trechos escolhidos de correspondência com amigos gera críticas contundentes de amigos, adversários e de Bielínski, o maior crítico literário da época. Nova crise nervosa. Gógol queima os manuscritos da Segunda Parte de Almas mortas, ao qual se dedicara por cinco anos. Retomará a redação da obra no ano seguinte.


Em 1852, Gógol ordena ao criado, pela manhã, que queime os manuscritos de Almas mortas. Recusa-se a comer e medicar-se, para desespero dos amigos e jovens admiradores que o cercam. Morre no dia 4 de março. A Segunda Parte de Almas mortas viria à luz, incompleta, em 1855, com base em textos conservados por amigos à revelia do autor.



*



Uma pista para a razão de a literatura russa do século XIX ser um campo de batalha de ideias, de contrastes, de abrigar toda a ebulição da vida social, política e cultural de sua época e os impactos na vida dos indivíduos e dos diversos segmentos sociais, dá-nos o grande estudioso estadunidense da cultura russa Joseph Frank:



Um conhecimento da história cultural é, claro, indispensável para o estudo de qualquer literatura, mas pode-se argumentar que isso é mais verdadeiro para a literatura russa do que para qualquer outra literatura europeia importante do mesmo período. Devido à dificuldade para expressar ideias controversas diretamente na imprensa (embora seja espantoso quantas dessas ideias conseguiam chegar até os periódicos devido à obtusidade – mas algumas vezes também à tolerância – da censura czarista), a literatura serviu, mais ou menos, como uma válvula de escape através da qual assuntos proibidos podiam ser apresentados ou, pelo menos, sugeridos. Daí a notória densidade ideológica da melhor literatura russa – um traço que ainda continua a distinguir seus escritores – novelistas ou poetas – de seus colegas ocidentais mais livres, que às vezes invejam a reação russa à literatura sem compreender completamente a razão para tal fervor. Isto se deve apenas ao fato de que a literatura não é um adorno ou acessório da existência cotidiana; é a única forma na qual os russos podem ver discutidos os verdadeiros problemas com os quais se preocupam e que seus governantes sempre acharam melhor que eles ignorassem.

Se a literatura russa foi, assim, criada em conexão tão íntima com o pensamento russo, foi também porque esse pensamento era ele mesmo tão amplamente focalizado nas preocupações políticas e socioculturais que ocupavam todo cidadão russo pensante; não havia qualquer incongruência na criação de personagens conscientemente absortas em questões aparentemente tão abstratas, “filosóficas”. (2)


                      "Almas mortas", Marc Chagall, gravura 84



Um caso único na literatura russa

Gógol é um caso à parte e único na literatura russa novecentista. Um dos maiores humoristas da literatura universal, no dizer de Otto Maria Carpeaux, e curiosamente esse humor não deixou herdeiros entre os grandes na literatura do seu país até o final do século (3). Ainda segundo esse grande crítico vienense, radicado no Brasil, “Gógol inspirou à literatura russa do século XIX inteiro o intenso sentimento social, a simpatia para com os ofendidos e humilhados, a indignação contra as injustiças da vida russa e, em última consequência, a atitude revolucionária.” (4). Ocorre que, como vimos antes, Gógol foi acometido por crises depressivas periódicas entrelaçadas com visões místicas e proféticas, que, num crescendo, levou-o ao colapso final. E, por fim, Gógol, crítico radical das mazelas da Rússia, era um conservador convicto. Para Boris Schnaiderman, “[Gógol] se considerava um fiel súdito do império dos czares. Embora ucraniano, encarava os eslavos orientais, isto é, russos, bielo-russos (naturais da atual Belarus) e ucranianos, como um povo só, sob a égide dos czares e as bençãos da Igreja greco-ortodoxa” (5).



Pleno de contrastes, mitômano compulsivo, Gógol parece carregar em si todas as contradições de uma Rússia imobilizada por um modo de produção servil em uma economia rural, pelo absolutismo anacrônico, agarrando-se às suas tradições contra as tentações modernizantes do Ocidente, o que é motivo de embates profundos entre as correntes dos eslavófilos e dos ocidentalizantes. Esse caldo fervente transfigura-se, em Gógol, por meio da sátira, do non sense, do exagero, da caricatura, que são os seus instrumentos de denúncia radical e sem limites do absurdo da realidade. Deformando a realidade na sua matéria artística, o escritor escancara as deformações da própria realidade ela mesma. Ou então, citando aquela que se tornou a melhor síntese do estilo de escritor, nas palavras de seu amigo e conselheiro, Púchkin: Gógol leva o leitor ao “riso entre lágrimas”.



Para Arlete Cavalieri, professora de teatro, arte e cultura russa (ECA/USP), tratando da função do riso e da comédia na obra de Gógol, “a simples anedota pode se transformar repentinamente em comicidade amarga, estranha, por vezes melancólica, lançando o universo artístico de Gógol para o campo da estética do grotesco.” (6)



Almas mortas, um ambicioso projeto – provocativamente caracterizado pelo autor como “Poema” - que se desenvolveu de maneira não contínua ao longo dos últimos dezessete anos da vida do autor seria, na intenção de Gógol, uma espécie de Divina comédia russa, em que as partes corresponderiam ao Inferno, ao Purgatório e, por fim, com a superação das faltas das personagens, ao Paraíso (7).

Na própria obra, há menção de passagem a esse projeto, no fim da Primeira Parte:



Ao leitor pouco se lhe dá que Tchítchicov fique ou não zangado com ele: mas o autor, este em hipótese alguma pode permitir-se brigar com o seu herói: ainda é longo o caminho que os dois terão de percorrer juntos, ombro a ombro; ainda há duas grandes partes pela frente – isto não é coisa de somenos. (p. 293).


A utopia inalcançável dessa redenção, contudo, em uma Rússia presa ao passado, com Gógol crescentemente se embatendo com os seus próprios fantasmas, levando-o, em consequência, a choques com amigos e adversários, faz com que o seu grande projeto deságue numa ambição que não encontra saídas. Assim, há uma mudança visível de tom da Primeira para a Segunda Parte, esta última, como antes exposto, incompleta: a exposição do ridículo e dos vícios de tudo e de todos, da Primeira Parte – aquela que concentra todo o brilhantismo de Gógol e é a culminância de sua trajetória artística - dá lugar a uma personagem virtuosa, Constantin Fiódorovitch Costangioglio, que personifica a “resistência do caráter russo”. Apesar disso, contudo, Tchítchicov, o protagonista, golpista contumaz, sucessivamente é flagrado, faz juras de regeneração e, ato contínuo, volta ao leito das suas trapaças.

Voltemos, todavia, ao início.



*



Temos aqui uma novela, caracterizada pela horizontalidade de sua estrutura: a narrativa desenvolve-se pela sucessão de locais e personagens visitados pelo protagonista. Podemos conceituá-la como uma novela picaresca, de maneira precária, pelo fato de que esse subgênero não teve precedentes na literatura russa. A novela picaresca inaugura-se na Espanha com a Vida de Lazarillo de Tormes e sus fortunas e adversidades, de autor anônimo; a edição mais antiga conhecida é de 1554. Ensina-nos Massaud Moisés que “o qualificativo picaresco e picaresca deriva de pícaro, que designa uma criatura de vida irregular, vadia, empregada de sucessivos patrões e vivendo de expedientes astuciosos e inescrupulosos para saciar sua fome de miserável.” (8)




Estrutura da obra

O título da obra – uma contradição em si - é outra provocação do autor, tendo, inclusive, sido uma das objeções da censura, por motivos religiosos; como corretivo, a novela foi publicada originalmente como Aventuras de Tchítchicov ou As almas mortas. Se houver uma lista de grandes títulos de obras literárias de todos os tempos, a obra-prima de Gógol ocupará, certamente, um lugar privilegiado. Sob a insígnia do “riso entre lágrimas”, enganoso, como já dissemos, irônico, absurdo, o substantivo provocativamente qualificado do título abraça toda a narrativa; remete à trapaça que foi o argumento sugerido por Púchkin ao amigo, mas também, no contexto da crítica radical da obra, aponta para a desolação da Rússia sob o reinado de Nicolau I, e a podridão moral que decorre do sistema de servidão, no qual os mujiques são obrigados a trabalhar nas terras dos grandes proprietários rurais, os pomiêchtchiki.



No início da novela, vemos o conselheiro civil Pável Ivánovitch Tchítchicov chegando à província de NN. Havia pouco tempo, a Rússia triunfara sobre as tropas napoleônicas, naquela que é conhecida, naquele país, orgulhosamente, como a Guerra Patriótica de 1812.



Tanto na esclarecida Europa como na esclarecida Rússia existe agora muita gente respeitável que não consegue comer num restaurante sem puxar conversa com o criado e, às vezes, até pilheriar alegremente com ele. Entretanto, o viajante não fazia apenas perguntas ociosas: indagou com extrema precisão quem era o governador da cidade, quem o procurador, quem o presidente da Câmara – numa palavra, não deixou escapar nenhum funcionário graduado; mas com precisão ainda maior, senão até com especial interesse, ele pediu pormenores sobre todos os proprietários rurais importantes: quantas almas de servos possuía cada um desses pomiêchtchiki, a que distância da cidade moravam, com que frequência viajavam para a cidade e até qual era o caráter de cada um deles. Fez muitas perguntas a respeito da situação da região: se não tinha havido quaisquer doenças nessa província – epidemias mortais, febres infecciosas, varíola ou semelhantes -, tudo isso com uma insistência e minuciosidade que davam provas de mais do que simples curiosidade. (p. 40).


Pouco mais adiante, o leitor já começará a sorrir, no que será uma constante na obra, ou seja, diante da forma como é apresentada a decrepitude que se espalha pelos ambientes, pelas pessoas, pelas instituições sociais, pela alma da velha Rússia:



Após o almoço, o cavalheiro tomou uma xícara de café e sentou-se no sofá, colocando atrás das costas uma almofada, dessas que nas estalagens russas costumam encher, em lugar de com lã macia, com algo mais semelhante a tijolos e paralelepípedos. (p. 40).



Como visto pelo trecho acima da novela, era prática, na antiga Rússia, denominar-se como “almas” os camponeses que um proprietário rural possuía.




                     "Almas mortas", Marc Chagall, Gravura 83




Personagens inesquecíveis

Chegando à província, terá início um desfile de personagens impagáveis, clássicos da literatura russa, proprietários rurais procurados pelo “nosso herói” - forma como repetidas vezes o Narrador refere-se ao protagonista, Tchítchicov, o que é mais uma ironia, dentre tantas, pois se trata, naturalmente de um anti-herói -, que é um golpista contumaz, mas o completo entendimento sobre isso o leitor o terá muito tempo depois e essa é uma das estratégias narrativas para seduzir a audiência, a saber, por meio do retardamento da exposição (9). Por dezenas de páginas, acompanham-se os esforços obstinados de Tchítchicov para visitar proprietários rurais e convencê-los a que estes lhe vendam as almas mortas. Explica-se: os proprietários rurais pagavam tributos calculados sobre a base da quantidade de almas de suas fazendas; essa base de cálculo mantinha-se mesmo que um ou mais camponeses falecessem. São justamente essas almas mortas que Tchítchicov quer comprar, para espanto e perplexidade dos pomiêchtchiki visitados; entre os primeiros, estão Manílov, a total nulidade sorridente:



Só Deus poderia dizer como era o caráter de Manílov. Existe uma espécie de gente da qual se diz: é gente assim-assim, nem isso nem aquilo, nem na cidade de Bogdan nem na aldeia Selifan, como diz o provérbio. Talvez tenhamos de incluir Manílov nessa categoria. (p. 54).


Nozdriov, burlesco, dada a uma farra e mitômano compulsivo:


Nenhuma reunião de que ele participava acabava sem uma história; sempre acontecia uma história qualquer: ou ele era obrigado a deixar a sala de braço dado com dois gendarmes, ou os próprios companheiros eram forçados a empurrá-lo para fora. E, se não acontecia isso, sempre acontecia alguma outra coisa que jamais poderia ocorrer com outro: ou embebedava-se no bufê até ficar reduzido a um riso ininterrupto, ou então contava tantas fanfarronadas que acabava com vergonha das próprias mentiras. (p. 105).


O troncudo e glutão Sobakêvith:


É de conhecimento geral que no mundo existem muitas dessas faces, na leitura das quais a natureza não quis dar-se muito trabalho, não usou nenhum dos instrumentos finos, tais como lixas, brocas e quejandos, mas simplesmente desceu a machadinha com toda a força: uma machadada, e saiu o nariz, outra, e resultaram os lábios; dois movimentos de verruma grossa, fez os olhos, e soltou o resultado, sem lixá-lo, para o mundo dizendo: “Vive!”. Essa imagem troncuda e solidamente construída era também a de Sobakêvitch. (p. 131).


Não sabem eles e toda a província, que se encanta com os bons modos do viajante, que Tchítchicov é um trapaceiro, como se revelará no decorrer da novela.




O Narrador falastrão

Capítulo à parte deve ser reservado para o Narrador intruso, saliente e falastrão de Almas mortas, na qual a narrativa é contada em terceira pessoa.

Com Machado de Assis, conhecemos o poder desse narrador irônico e loquaz. Da mesma forma, o Narrador da presente novela é grandemente responsável pelo encanto da obra e pela sedução contínua do leitor.



Lembremo-nos que ocorre no Romantismo um movimento de busca e valorização das fontes populares da nacionalidade. Para Erich Auerbach, “o Romantismo fez renascer a poesia popular e aprofundou a concepção do povo e de sua força criadora.” (10). Ora, uma das características da poesia popular é a oralidade, que, aliás, está na origem do gênero épico, como observa Walter Benjamin: “Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia.” (11)



Na origem da literatura ocidental, recorde-se, estão os poemas homéricos, que foram transpostos em texto escrito, alguns séculos depois, ainda na Grécia antiga, e dessa forma chegaram a nós, mas cujas origens estão nos rapsodos, artistas populares que ganhavam a vida recitando os poemas de Homero, deslocando-se pela Grécia. Na longa transformação ao longo dos séculos, o gênero épico – que é, primitivamente, a forma de expor uma história em que um narrador conta a um auditório alguma coisa que aconteceu (12) – evoluiu das formas simples (anedota, caso, conto de fadas, lenda, saga), orais ou não, para as formas cristalizadas do conto, da novela e do romance. O antigo narrador, artista popular, foi introjetado nas formas consolidadas em texto escrito, e pode ser mais ostensivo - “intruso”, como se denomina – ou neutro, dentre outras variantes e combinações cada vez mais complexas com o advento da literatura moderna, a partir da segunda metade do século XIX.

O narrador de um conto, de uma novela ou de um romance não deve ser confundido com o escritor da obra literária.



Pois o narrador de Almas mortas – em terceira pessoa, como dissemos – está a todo momento dirigindo-se ao leitor, com intimidade, tal como já ocorrera fortemente no romance inglês do século XVIII, ressalve-se, mas que foi muito valorizado no Romantismo.



Pode ser que alguns leitores achem tudo isso inverossímil; o autor também está disposto a concordar com eles que tudo isso é inverossímil. Mas, como que por desaforo, tudo se passou exatamente assim como está sendo contado, e é tanto mais espantoso quanto a cidade de N. não ficava perdida no interior do país, mas, pelo contrário, localizava-se na proximidade de ambas as capitais.” (p. 249).


Os leitores não devem ficar indignados com o autor, se as personagens que apareceram até agora não estão de acordo com o seu gosto: o culpado disso é Tchítchicov, ele é quem manda aqui, e para onde ele inventar de ir, teremos de segui-lo. De nossa parte, se de fato formos acusados pela pobreza de colorido e pouca beleza das personagens e dos caracteres, só poderemos alegar que no começo nunca dá para perceber o fluxo e a dimensão do assunto em toda a sua amplitude.” (p. 288).


A consciência crítica do Narrador

O último aspecto que trataremos aqui, diante de uma obra complexa e multifacetada, é a consciência do Narrador relativamente à própria obra que se desvela aos olhos do leitor, o que acontece em diversos momentos da narrativa. Nessas intervenções o Narrador mostra a sua firmeza de intenções, faz a sua profissão de fé, ao mesmo tempo que marca posição nos embates da época sobre a natureza e o papel social da obra de arte.





Nesse trecho reflexivo do Narrador, por exemplo, há uma enfática defesa de uma literatura investigadora do real e uma surpreendente menção à hipocrisia contida na falsa consciência:



Por que guardarei silêncio? Quem, a não ser o autor, tem o dever de proclamar a sagrada verdade? Vós temeis o olhar que sonda fundo, tendes medo de dirigirdes vós mesmos um olhar perscrutador a quem quer que seja, preferis deixar os olhos deslizar pela superfície de tudo, sem pensar. Podereis até rir gostosamente de Tchítchicov, podereis quem sabe até elogiar o autor, dizendo: “Apesar de tudo, ele fez algumas observações bem apanhadas, deve ser um homem divertido!”. E depois dessas palavras, voltar-vos-ei para vós mesmos com redobrado orgulho, um sorriso complacente iluminará vosso semblante, e acrescentareis: “Mas é preciso convir que existem pessoas bem estranhas e ridículas em algumas províncias, e ainda por cima são uns patifes de marca!”. Mas qual de vós, cheio de humildade cristã, não em voz alta, mas em silêncio, a sós, consigo mesmo, nos momentos de exame de consciência, cravará no fundo da própria alma esta penosa indagação: “Será que dentro de mim mesmo não existe alguma parcela de Tchítchicov?”. Pois sim, era só o que faltava! Mas se neste momento passar por perto algum conhecido, de posição nem muito alta, nem baixa demais, ele cutucará no mesmo instante o seu vizinho e lhe dirá, mal conseguindo conter o riso: “Olha, olha, lá vai Tchítchicov, foi Tchítchicov quem passou!”. E depois, qual uma criança, esquecendo o decoro devido à sua idade e posição, correrá atrás dele, provocando-o e caçoando: “ Tchítchicov! Tchítchicov! Tchítchicov!” (pp. 292 – 293).


É a isso a que se refere, essa atualidade persistente, quando se faz menção ao que é um clássico da literatura, não?



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Denise Bottmann, em seu artigo sobre traduções de literatura russa no Brasil (1900 – 1950), aponta uma tradução de Almas mortas de 1937: Almas mortas – aventura de Chichikov. Trad. Costa Neves, Rio de Janeiro: Cia. Brasil, 1937. Reeditada como Almas mortas – as aventuras de Chichikov (poemas em prosa). Coleção Fogos cruzados, Rio de Janeiro, José Olympio, 1941 (13). Não consegui saber se houve tradução anterior a essa, mas há grande possibilidade de que seja a primeira publicação da obra no Brasil.



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Registre-se aqui a gratidão a dois emigrados que prestaram serviços inestimáveis de divulgação entre nós da cultura e literatura russas e que nos deixaram há pouco: o ucraniano Boris Schnaiderman (1917 – 2016) e a russa Tatiana Belinky (1919 – 2013), tradutora dessa belíssima versão de Almas mortas.



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SOBRE PÚCHKIN



Difícil falar algo sobre Púchkin pra quem não sabe nada sobre ele. Púchkin é um grande poeta. Napoleão não é tão grande quanto Púchkin. E Bismarck em comparação a Púchkin não é nada. E Alexandre I e II e III são uns bolhas em comparação a Púchkin. E todo mundo em comparação a Púchkin é um bolha, apenas em comparação a Gógol o próprio Púchkin é um bolha.

E para que escrever sobre Púchkin se o melhor é escrever sobre Gógol?

Gógol é tão grande que não dá para escrever sobre ele, por isso mesmo vou escrever sobre Púchkin.

Mas depois de Gógol escrever sobre Púchkin é uma lástima. E sobre Gógol não dá para escrever. Por isso o melhor é não escrever nada sobre ninguém.



Daniil Kharms

15 de dezembro de 1936



(Trad. Daniela Mountian e Moissei Mountian) (14)






                                    Nikolai Gógol, por Otto Friedrich Theodor von Möller

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(1) GÓGOL, Nikolai – Almas mortas. Trad. Tatiana Belinky, São Paulo: Perspectiva, 2011. Tradução do original em russo Miórtvie Dúchi. Contém cronologia, ensaio: “Almas mortas, a visão de um poeta”, Boris Schnaiderman; Pequena biografia, Paulo Bezerra. Texto na contracapa: N. Cunha e J. Guinsburg. Textos nas duas orelhas: Alexander Herzen, Vassirion G. Biélinski, Prosper Merimée, Dostoiévski, Otto Maria Carpeaux, Vladimir Nabokov. Ilustrações: Sérgio Kon. Brochura, 21x12,5. 432 pp. ISBN 978-85-273-0810-6.



(2) FRANK, Joseph. “Pensamento russo – o caminho para a Revolução”, In: Pelo prisma russo. Ensaios sobre literatura e cultura. Trad. Paula Cox Rolim e Francisco Achcar, São Paulo: Edusp,1992, pp. 61-62.



(3) CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1962, p. 1863.



(4) Id., ibid., pp. 1862-1863.



(5) SCHNAIDERMAN, Boris - “Almas mortas, a visão de um poeta”, op. cit., p. 15.



(6) Revista Kalinka, 20/12/2011, disponível em:




(7) SCHNAIDERMAN, Boris – op. cit., p. 15.



(8) MOISÉS, Massaud. A criação literária. 3a. ed., revista e ampliada, São Paulo: Melhoramentos, 1970, p. 155.



(9) Cf. B. Tomachevski - “Temática”, In: EIKHEINBAUM, B. et allii. Teoria da literatura. Formalistas russos. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski et allii, Porto Alegre: Globo, 1973, p. 179.



(10) AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Trad. José Paulo Paes, São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 354.



(11) Walter Benjamin, “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7a. ed., trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 213.



(12) KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. 6a. ed. portuguesa revista pela 16a. alemã, trad. Paulo Quintela, Coimbra: Armênio Amado, São Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 391.



(13) BOTTMANN, Denise - “Bibliografia russa traduzida no Brasil”, In: Revista de literatura e cultura russa, Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, v. 4, n° 4, 2014.



(14) O poeta, escritor e dramaturgo Daniil Kharms (1905-1942), cujo nome verdadeiro era Daniil Ivánovitch Iuvatchóv, nasceu em São Petersburgo.

Daniil Kharms teve um percurso como o de muitos artistas do período stalinista. Distante estética e filosoficamente do que, a partir de 1932, convencionou-se chamar de “realismo socialista”, foi preso duas vezes, em 1931 e em 1941, morrendo logo depois numa cela psiquiátrica.

Em vida, praticamente apenas seus textos e poemas para crianças foram publicados. Hoje sua obra é lida e relida e comparada à de escritores do quilate de Samuel Beckett e Eugène Ionesco. Na verdade, Daniil Kharms, assim como Franz Kafka, a quem também é assemelhado, prenuncia a literatura do absurdo ou absurdista.

No Brasil, a editora Kalinka lançou em 2013 a primeira coletânea dedicada ao autor, Os sonhos teus vão acabar contigo: prosa, poesa, teatro, com tradução de Moissei Mountian, Daniela Mountian e Aurora Fornoni Bernardini.



Fonte: http://www.kalinka.com.br/index.php?modulo=Revista&id=74


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Imagens:
"Almas mortas", Sergey Alimov:
http://www.saint-petersburg.com


"Almas mortas", Marc Chagall (Vitebsk, Império Russo, 7 de julho de 1887 — Saint-Paul-de-Vence, França, 28 de março de 1985): gravuras produzidas entre 1923 e 1926:
Instituto de Artes de Chicago
http://www.artic.edu/aic


Retrato de Gógol, por Otto Friedrich Theodor von Möller (Kronstadt, Rússia, 1812 – Saaremaa, Estônia, 1874).


http://www.saint-petersburg.com/famous-people/nikolay-gogol/




“Suíte Gógol”, Alfred Schnittke (Engels, Rússia, 24/11/1934 — Hamburgo, 3/8/1998) 

I. Overture [0:02] 
II. Chichikov's Childhood [1:23] 
III. Portrait [3:42] 
IV. The Greatcoat Polka [11:03] 
V. Ferdinand [13:22] 
VI. The Clerks [14:18] 
VII. The Ball [17:03] 
VIII. Finale: The Testimony [23:37]