Almas mortas, de Nikolai Gógol
Uma crítica radical da Rússia do século XIX
Мёртвые души
Pelos portões da estalagem-sede da província NN entrou uma pequena sege de molas, bastante vistosa, daquelas em que costumam viajar solteirões, comandantes reformados, capitães de Estado-Maior, proprietários rurais donos de uma centena de almas de camponeses – em suma, todos aqueles a quem se costuma chamar de senhores de condição média. Na sege viajava um cavalheiro, não muito belo, mas tampouco de aspecto desagradável, nem muito gordo, nem magro demais; não se poderia dizer que fosse velho, mas também não era demasiado jovem. Sua chegada não causou na cidade nenhuma celeuma, nem foi acompanhada por nada de excepcional; apenas dois mujiques russos, parados na porta do botequim defronte à estalagem, fizeram algumas observações, aliás, referentes mais ao veículo do que ao passageiro. - Espia aquela roda – disse um para o outro -, estás vendo que roda? Que te parece, aquela roda chegaria até Moscou, se fosse o caso, ou não chegaria? - Chegaria – respondeu o outro. - Mas até Kazan eu acho que não chegaria. - Até Kazan não chegaria, não – disse o outro. E com isso terminou a conversa. (p. 37) (1).
"Almas mortas", Marc Chagall, gravura 75
Para
o início desse passeio pela obra magna do grande autor
russo-ucraniano, cabem duas observações preliminares: a magnitude
dessa obra de Nikolai Vassílievitch Gógol (31/3/1809 – Aldeia de
Sorótchintzi, Província de Poltava, Ucrânia, Império Russo –
4/3/1852 – Moscou, Império Russo) pode ser entendida,
contrariamente ao que o título dá a entender, pelo fato de que o
leitor se verá às gargalhadas, por diversas vezes, diante de uma
novela publicada há cento e setenta e seis anos (a Primeira Parte
foi publicada em 1842). Por fim, trata-se de uma obra inacabada; a
Segunda Parte foi publicada em 1855, após a morte do autor, sem que
os manuscritos tivessem sido completados. Essa falta de uma
conclusão, não tira à obra, contudo, o seu poder, atualidade e
grandeza para as literaturas russa e universal; ao contrário, esse
inacabamento diz muito sobre o autor e a Rússia de então, como se
verá a seguir.
Uma
mostra do vigor da literatura russa do século XIX dá-se pelo fato
de que dois grandes escritores, como Púchkin e Gógol, foram não só
contemporâneos (Gógol é nove anos mais novo do que Púchkin), mas
estiveram unidos por laços de uma profunda amizade: Púchkin, já um
escritor consagrado, apoiou e estimulou o jovem escritor que se
dirigira a Petersburgo aos vinte anos e deu-lhe as sugestões do que
seriam as duas obras mais importantes de Gógol, a peça O
Inspetor geral (1836) e Almas mortas – nesse
último caso, com base em notícias de jornal. A morte trágica
de Púchkin, em 1837, em um duelo, da qual tomou conhecimento quando
se encontrava em uma estadia em Paris, causou profundo impacto em
Gógol, que o levou a interromper temporariamente a sua atividade de
escrita; após isso, como uma homenagem ao amigo, toma a si com novo
ânimo a tarefa de retomar a criação de Almas mortas.
Um talento precoce
Filho
da nobreza rural, Gógol esteve desde sempre ligado aos costumes, aos
contos e canções populares, às lendas e ao folclore de sua Ucrânia
natal, que influenciarão toda a sua visão artística. Com as
desilusões que teve em Petersburgo, seja como funcionário público,
seja como acadêmico ou atingido pelo embate entre eslavófilos e
ocidentalistas, a visão de mundo de Gógol foi, em todo o seu
percurso artístico, marcada pela sua origem na nobreza rural, com
uma visão crítica da Corte, da burocracia, da corrupção e dos
costumes da capital, muito embora o seu olhar satírico não tivesse
limites, expondo igualmente os vícios do meio rural e de toda a
Rússia, estagnada pelas amarras do regime servil a que estavam
submetidos os mujiques, isto é, os camponeses e que dá a moldura
para a composição de Almas mortas.
Desde
a adolescência, a vocação literária de Gógol já se manifesta,
por meio de poemas, de uma tragédia, uma novela e uma sátira,
divulgados no colégio.
Em
1829, muda-se para Petersburgo, onde obtém modesto emprego numa
repartição pública, o que lhe fornecerá farto material para a sua
inspiração. A publicação da sua primeira novela no ano seguinte,
Bassavriúk ou Noite de São João, põe o jovem escritor em
contato com Púchkin, dentre outros artistas.
A
publicação do primeiro volume das novelas da vida ucraniana, Serões
numa granja perto de Dikanka, em 1831, traz-lhe reconhecimento da
crítica e notoriedade popular.
Com
a publicação, em 1835, das duas coletâneas de narrativas curtas,
Mirgorod (contém, entre outras, “Tarás Bulba”) e
Arabescos (contém, entre outras, “Diário de um louco”),
fixam-se características que marcam a sua obra, como o riso e o
grotesco, e vem a consagração: passa a ser considerado um dos mais
importantes escritores da sua época. Nesse mesmo ano, inicia a
redação de Almas mortas.
Em
1836, a vida cultural de Petersburgo sofre um impacto após o czar
Nicolau I ter autorizado e ser apresentada no Teatro Alexandrino a
peça O Inspetor geral, contendo crítica ácida à burocracia
provinciana. Fortemente atacado pelos setores retratados na peça,
Gógol apoia-se nos intelectuais eslavófilos, não obstante a peça
justamente colocar em evidência as mazelas da cultura e das
tradições da velha Rússia, defendida pelos membros dessa corrente.
Vítima de uma crise interior por todos esses acontecimentos, viaja
nesse mesmo ano à Alemanha, Suíça e França.
A
notícia da morte do amigo Púchkin, no ano seguinte, em 1837, leva-o
a nova e grave crise depressiva; visões místicas e sombrias passam
a ocupar a sua mente. Com o apoio de amigos, Gógol recupera-se, mas
essas crises serão, doravante, recorrentes.
Em
1841, depois de nova estadia em Roma, retorna à Rússia e submete os
originais da Primeira Parte de Almas mortas ao Comitê de
Censura de Moscou, que manifesta parecer contrário à obra. No ano
seguinte, Gógol envia a obra para avaliação do Comitê de
Petersburgo, que libera a obra com cortes e correções. A Primeira
Parte da novela é publicada no mesmo ano de 1842.
A
publicação, em 1847, de Trechos escolhidos de correspondência
com amigos gera críticas contundentes de amigos, adversários e
de Bielínski, o maior crítico literário da época. Nova crise
nervosa. Gógol queima os manuscritos da Segunda Parte de Almas
mortas, ao qual se dedicara por cinco anos. Retomará a redação
da obra no ano seguinte.
Em
1852, Gógol ordena ao criado, pela manhã, que queime os manuscritos
de Almas mortas. Recusa-se a comer e medicar-se, para
desespero dos amigos e jovens admiradores que o cercam. Morre no dia
4 de março. A Segunda Parte de Almas mortas viria à luz,
incompleta, em 1855, com base em textos conservados por amigos à
revelia do autor.
*
Uma
pista para a razão de a literatura russa do século XIX ser um campo
de batalha de ideias, de contrastes, de abrigar toda a ebulição da
vida social, política e cultural de sua época e os impactos na vida
dos indivíduos e dos diversos segmentos sociais, dá-nos o grande
estudioso estadunidense da cultura russa Joseph Frank:
Um conhecimento da história cultural é, claro, indispensável para o estudo de qualquer literatura, mas pode-se argumentar que isso é mais verdadeiro para a literatura russa do que para qualquer outra literatura europeia importante do mesmo período. Devido à dificuldade para expressar ideias controversas diretamente na imprensa (embora seja espantoso quantas dessas ideias conseguiam chegar até os periódicos devido à obtusidade – mas algumas vezes também à tolerância – da censura czarista), a literatura serviu, mais ou menos, como uma válvula de escape através da qual assuntos proibidos podiam ser apresentados ou, pelo menos, sugeridos. Daí a notória densidade ideológica da melhor literatura russa – um traço que ainda continua a distinguir seus escritores – novelistas ou poetas – de seus colegas ocidentais mais livres, que às vezes invejam a reação russa à literatura sem compreender completamente a razão para tal fervor. Isto se deve apenas ao fato de que a literatura não é um adorno ou acessório da existência cotidiana; é a única forma na qual os russos podem ver discutidos os verdadeiros problemas com os quais se preocupam e que seus governantes sempre acharam melhor que eles ignorassem.
Se a literatura russa foi, assim, criada em conexão tão íntima com o pensamento russo, foi também porque esse pensamento era ele mesmo tão amplamente focalizado nas preocupações políticas e socioculturais que ocupavam todo cidadão russo pensante; não havia qualquer incongruência na criação de personagens conscientemente absortas em questões aparentemente tão abstratas, “filosóficas”. (2)
Um caso único na literatura russa
Gógol
é um caso à parte e único na literatura russa novecentista. Um dos
maiores humoristas da literatura universal, no dizer de Otto Maria
Carpeaux, e curiosamente esse humor não deixou herdeiros entre os
grandes na literatura do seu país até o final do século (3). Ainda
segundo esse grande crítico vienense, radicado no Brasil, “Gógol
inspirou à literatura russa do século XIX inteiro o intenso
sentimento social, a simpatia para com os ofendidos e humilhados, a
indignação contra as injustiças da vida russa e, em última
consequência, a atitude revolucionária.” (4). Ocorre que, como
vimos antes, Gógol foi acometido por crises depressivas periódicas
entrelaçadas com visões místicas e proféticas, que, num
crescendo, levou-o ao colapso final. E, por fim, Gógol, crítico
radical das mazelas da Rússia, era um conservador convicto. Para
Boris Schnaiderman, “[Gógol] se considerava um fiel súdito do
império dos czares. Embora ucraniano, encarava os eslavos orientais,
isto é, russos, bielo-russos (naturais da atual Belarus) e
ucranianos, como um povo só, sob a égide dos czares e as bençãos
da Igreja greco-ortodoxa” (5).
Pleno
de contrastes, mitômano compulsivo, Gógol parece carregar em si
todas as contradições de uma Rússia imobilizada por um modo de
produção servil em uma economia rural, pelo absolutismo anacrônico,
agarrando-se às suas tradições contra as tentações modernizantes
do Ocidente, o que é motivo de embates profundos entre as correntes
dos eslavófilos e dos ocidentalizantes. Esse caldo fervente
transfigura-se, em Gógol, por meio da sátira, do non sense,
do exagero, da caricatura, que são os seus instrumentos de denúncia
radical e sem limites do absurdo da realidade. Deformando a realidade
na sua matéria artística, o escritor escancara as deformações da
própria realidade ela mesma. Ou então, citando aquela que se tornou
a melhor síntese do estilo de escritor, nas palavras de seu amigo e
conselheiro, Púchkin: Gógol leva o leitor ao “riso entre
lágrimas”.
Para
Arlete Cavalieri, professora de teatro, arte e cultura russa
(ECA/USP), tratando da função do riso e da comédia na obra de
Gógol, “a simples anedota pode se transformar repentinamente em
comicidade amarga, estranha, por vezes melancólica, lançando o
universo artístico de Gógol para o campo da estética do grotesco.”
(6)
Almas
mortas, um ambicioso projeto –
provocativamente caracterizado pelo autor como “Poema” -
que se desenvolveu de maneira não contínua ao longo dos
últimos dezessete anos da vida do autor seria, na intenção de
Gógol, uma espécie de Divina comédia
russa, em que as partes corresponderiam ao Inferno, ao Purgatório e,
por fim, com a superação das faltas das
personagens, ao Paraíso (7).
Na
própria obra, há menção de passagem a esse projeto, no fim da
Primeira Parte:
Ao leitor pouco se lhe dá que Tchítchicov fique ou não zangado com ele: mas o autor, este em hipótese alguma pode permitir-se brigar com o seu herói: ainda é longo o caminho que os dois terão de percorrer juntos, ombro a ombro; ainda há duas grandes partes pela frente – isto não é coisa de somenos. (p. 293).
A
utopia inalcançável dessa redenção, contudo, em
uma Rússia presa ao passado,
com Gógol crescentemente se embatendo com os seus próprios
fantasmas, levando-o, em
consequência, a choques com
amigos e adversários, faz com que o seu
grande projeto deságue
numa ambição que não encontra saídas. Assim, há uma mudança
visível de tom da Primeira para a Segunda Parte, esta última, como
antes exposto, incompleta: a exposição do ridículo e dos vícios
de tudo e de todos, da Primeira Parte – aquela
que concentra todo o brilhantismo de Gógol e é a culminância de
sua trajetória artística -
dá lugar a uma personagem
virtuosa, Constantin Fiódorovitch Costangioglio, que personifica a
“resistência do caráter russo”. Apesar
disso, contudo, Tchítchicov,
o protagonista, golpista contumaz, sucessivamente
é flagrado, faz juras de regeneração e, ato contínuo, volta ao
leito das suas trapaças.
Voltemos,
todavia, ao início.
*
Temos
aqui uma novela, caracterizada pela horizontalidade de sua estrutura:
a narrativa desenvolve-se pela sucessão de locais e personagens
visitados pelo protagonista. Podemos conceituá-la como uma novela
picaresca, de maneira precária, pelo fato de que esse subgênero não
teve precedentes na literatura russa. A novela picaresca inaugura-se
na Espanha com a Vida de Lazarillo de Tormes e sus fortunas e
adversidades, de autor anônimo; a edição mais antiga conhecida
é de 1554. Ensina-nos Massaud Moisés que “o qualificativo
picaresco e picaresca deriva de pícaro, que
designa uma criatura de vida irregular, vadia, empregada de
sucessivos patrões e vivendo de expedientes astuciosos e
inescrupulosos para saciar sua fome de miserável.” (8)
Estrutura da obra
O
título da obra – uma contradição em si - é outra provocação
do autor, tendo, inclusive, sido uma das objeções da censura, por
motivos religiosos; como corretivo, a novela foi publicada
originalmente como Aventuras de Tchítchicov ou As almas mortas.
Se houver uma lista de grandes títulos de obras literárias de todos
os tempos, a obra-prima de Gógol ocupará, certamente, um lugar
privilegiado. Sob a insígnia do “riso entre lágrimas”,
enganoso, como já dissemos, irônico, absurdo, o substantivo
provocativamente qualificado do título abraça toda a narrativa;
remete à trapaça que foi o argumento sugerido por Púchkin ao
amigo, mas também, no contexto da crítica radical da obra, aponta
para a desolação da Rússia sob o reinado de Nicolau I, e a
podridão moral que decorre do sistema de servidão, no qual os
mujiques são obrigados a trabalhar nas terras dos grandes
proprietários rurais, os pomiêchtchiki.
No
início da novela, vemos o conselheiro civil Pável Ivánovitch
Tchítchicov chegando à província de NN. Havia pouco tempo, a
Rússia triunfara sobre as tropas napoleônicas, naquela que é
conhecida, naquele país, orgulhosamente, como a Guerra Patriótica
de 1812.
Tanto na esclarecida Europa como na esclarecida Rússia existe agora muita gente respeitável que não consegue comer num restaurante sem puxar conversa com o criado e, às vezes, até pilheriar alegremente com ele. Entretanto, o viajante não fazia apenas perguntas ociosas: indagou com extrema precisão quem era o governador da cidade, quem o procurador, quem o presidente da Câmara – numa palavra, não deixou escapar nenhum funcionário graduado; mas com precisão ainda maior, senão até com especial interesse, ele pediu pormenores sobre todos os proprietários rurais importantes: quantas almas de servos possuía cada um desses pomiêchtchiki, a que distância da cidade moravam, com que frequência viajavam para a cidade e até qual era o caráter de cada um deles. Fez muitas perguntas a respeito da situação da região: se não tinha havido quaisquer doenças nessa província – epidemias mortais, febres infecciosas, varíola ou semelhantes -, tudo isso com uma insistência e minuciosidade que davam provas de mais do que simples curiosidade. (p. 40).
Pouco
mais adiante, o leitor já começará a sorrir, no que será uma
constante na obra, ou seja, diante da forma como é apresentada a
decrepitude que se espalha pelos ambientes, pelas pessoas, pelas
instituições sociais, pela alma da velha Rússia:
Após o almoço, o cavalheiro tomou uma xícara de café e sentou-se no sofá, colocando atrás das costas uma almofada, dessas que nas estalagens russas costumam encher, em lugar de com lã macia, com algo mais semelhante a tijolos e paralelepípedos. (p. 40).
Como
visto pelo trecho acima da novela, era prática, na antiga Rússia,
denominar-se como “almas” os camponeses que um proprietário
rural possuía.
Personagens inesquecíveis
Chegando
à província, terá início um desfile de personagens impagáveis,
clássicos da literatura russa, proprietários rurais procurados pelo
“nosso herói” - forma como repetidas vezes o Narrador refere-se
ao protagonista, Tchítchicov, o que é mais uma ironia, dentre
tantas, pois se trata, naturalmente de um anti-herói -, que é um
golpista contumaz, mas o completo entendimento sobre isso o leitor o
terá muito tempo depois e essa é uma das estratégias narrativas
para seduzir a audiência, a saber, por meio do retardamento da
exposição (9). Por dezenas de páginas, acompanham-se os esforços
obstinados de Tchítchicov para visitar proprietários rurais e
convencê-los a que estes lhe vendam as almas mortas. Explica-se: os
proprietários rurais pagavam tributos calculados sobre a base da
quantidade de almas de suas fazendas; essa base de cálculo
mantinha-se mesmo que um ou mais camponeses falecessem. São
justamente essas almas mortas que Tchítchicov quer comprar, para
espanto e perplexidade dos pomiêchtchiki visitados; entre os
primeiros, estão Manílov, a total nulidade sorridente:
Só Deus poderia dizer como era o caráter de Manílov. Existe uma espécie de gente da qual se diz: é gente assim-assim, nem isso nem aquilo, nem na cidade de Bogdan nem na aldeia Selifan, como diz o provérbio. Talvez tenhamos de incluir Manílov nessa categoria. (p. 54).
Nozdriov,
burlesco, dada a uma farra e mitômano compulsivo:
Nenhuma reunião de que ele participava acabava sem uma história; sempre acontecia uma história qualquer: ou ele era obrigado a deixar a sala de braço dado com dois gendarmes, ou os próprios companheiros eram forçados a empurrá-lo para fora. E, se não acontecia isso, sempre acontecia alguma outra coisa que jamais poderia ocorrer com outro: ou embebedava-se no bufê até ficar reduzido a um riso ininterrupto, ou então contava tantas fanfarronadas que acabava com vergonha das próprias mentiras. (p. 105).
O
troncudo e glutão Sobakêvith:
É de conhecimento geral que no mundo existem muitas dessas faces, na leitura das quais a natureza não quis dar-se muito trabalho, não usou nenhum dos instrumentos finos, tais como lixas, brocas e quejandos, mas simplesmente desceu a machadinha com toda a força: uma machadada, e saiu o nariz, outra, e resultaram os lábios; dois movimentos de verruma grossa, fez os olhos, e soltou o resultado, sem lixá-lo, para o mundo dizendo: “Vive!”. Essa imagem troncuda e solidamente construída era também a de Sobakêvitch. (p. 131).
Não
sabem eles e toda a província, que se encanta com os bons modos do
viajante, que Tchítchicov é um trapaceiro, como se revelará no
decorrer da novela.
O Narrador falastrão
Capítulo
à parte deve ser reservado para o Narrador intruso, saliente e
falastrão de Almas mortas, na qual a narrativa é contada em
terceira pessoa.
Com
Machado de Assis, conhecemos o poder desse narrador irônico e
loquaz. Da mesma forma, o Narrador da presente novela é grandemente
responsável pelo encanto da obra e pela sedução contínua do
leitor.
Lembremo-nos
que ocorre no Romantismo um movimento de busca e valorização das
fontes populares da nacionalidade. Para Erich Auerbach, “o
Romantismo fez renascer a poesia popular e aprofundou a concepção
do povo e de sua força criadora.” (10). Ora, uma das
características da poesia popular é a oralidade, que, aliás, está
na origem do gênero épico, como observa Walter Benjamin: “Quem
escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê
partilha dessa companhia.” (11)
Na
origem da literatura ocidental, recorde-se, estão os poemas
homéricos, que foram transpostos em texto escrito, alguns séculos
depois, ainda na Grécia antiga, e dessa forma chegaram a nós, mas
cujas origens estão nos rapsodos, artistas populares que ganhavam a
vida recitando os poemas de Homero, deslocando-se pela Grécia. Na
longa transformação ao longo dos séculos, o gênero épico – que
é, primitivamente, a forma de expor uma história em que um narrador
conta a um auditório alguma coisa que aconteceu (12) – evoluiu das
formas simples (anedota, caso, conto de fadas, lenda, saga), orais ou
não, para as formas cristalizadas do conto, da novela e do romance.
O antigo narrador, artista popular, foi introjetado nas formas
consolidadas em texto escrito, e pode ser mais ostensivo - “intruso”,
como se denomina – ou neutro, dentre outras variantes e combinações
cada vez mais complexas com o advento da literatura moderna, a partir
da segunda metade do século XIX.
O
narrador de um conto, de uma novela ou de um romance não deve ser
confundido com o escritor da obra literária.
Pois
o narrador de Almas mortas – em terceira pessoa, como
dissemos – está a todo momento dirigindo-se ao leitor, com
intimidade, tal como já ocorrera fortemente no romance inglês do
século XVIII, ressalve-se, mas que foi muito valorizado no
Romantismo.
Pode ser que alguns leitores achem tudo isso inverossímil; o autor também está disposto a concordar com eles que tudo isso é inverossímil. Mas, como que por desaforo, tudo se passou exatamente assim como está sendo contado, e é tanto mais espantoso quanto a cidade de N. não ficava perdida no interior do país, mas, pelo contrário, localizava-se na proximidade de ambas as capitais.” (p. 249).
Os leitores não devem ficar indignados com o autor, se as personagens que apareceram até agora não estão de acordo com o seu gosto: o culpado disso é Tchítchicov, ele é quem manda aqui, e para onde ele inventar de ir, teremos de segui-lo. De nossa parte, se de fato formos acusados pela pobreza de colorido e pouca beleza das personagens e dos caracteres, só poderemos alegar que no começo nunca dá para perceber o fluxo e a dimensão do assunto em toda a sua amplitude.” (p. 288).
A consciência crítica do Narrador
O
último aspecto que trataremos aqui, diante de uma obra complexa e
multifacetada, é a consciência do Narrador relativamente à própria
obra que se desvela aos olhos do leitor, o que acontece em diversos
momentos da narrativa. Nessas intervenções o Narrador mostra a sua
firmeza de intenções, faz a sua profissão de fé, ao mesmo tempo
que marca posição nos embates da época sobre a natureza e o papel
social da obra de arte.
Nesse
trecho reflexivo do Narrador, por exemplo, há uma enfática defesa
de uma literatura investigadora do real e uma surpreendente menção
à hipocrisia contida na falsa consciência:
Por que guardarei silêncio? Quem, a não ser o autor, tem o dever de proclamar a sagrada verdade? Vós temeis o olhar que sonda fundo, tendes medo de dirigirdes vós mesmos um olhar perscrutador a quem quer que seja, preferis deixar os olhos deslizar pela superfície de tudo, sem pensar. Podereis até rir gostosamente de Tchítchicov, podereis quem sabe até elogiar o autor, dizendo: “Apesar de tudo, ele fez algumas observações bem apanhadas, deve ser um homem divertido!”. E depois dessas palavras, voltar-vos-ei para vós mesmos com redobrado orgulho, um sorriso complacente iluminará vosso semblante, e acrescentareis: “Mas é preciso convir que existem pessoas bem estranhas e ridículas em algumas províncias, e ainda por cima são uns patifes de marca!”. Mas qual de vós, cheio de humildade cristã, não em voz alta, mas em silêncio, a sós, consigo mesmo, nos momentos de exame de consciência, cravará no fundo da própria alma esta penosa indagação: “Será que dentro de mim mesmo não existe alguma parcela de Tchítchicov?”. Pois sim, era só o que faltava! Mas se neste momento passar por perto algum conhecido, de posição nem muito alta, nem baixa demais, ele cutucará no mesmo instante o seu vizinho e lhe dirá, mal conseguindo conter o riso: “Olha, olha, lá vai Tchítchicov, foi Tchítchicov quem passou!”. E depois, qual uma criança, esquecendo o decoro devido à sua idade e posição, correrá atrás dele, provocando-o e caçoando: “ Tchítchicov! Tchítchicov! Tchítchicov!” (pp. 292 – 293).
É
a isso a que se refere, essa atualidade persistente, quando se faz
menção ao que é um clássico da literatura, não?
*
Denise
Bottmann, em seu artigo sobre traduções de literatura russa no
Brasil (1900 – 1950), aponta uma tradução de Almas mortas de
1937: Almas mortas – aventura de Chichikov. Trad. Costa
Neves, Rio de Janeiro: Cia. Brasil, 1937. Reeditada como Almas
mortas – as aventuras de Chichikov (poemas em prosa). Coleção
Fogos cruzados, Rio de Janeiro, José Olympio, 1941 (13). Não
consegui saber se houve tradução anterior a essa, mas há grande
possibilidade de que seja a primeira publicação da obra no Brasil.
*
Registre-se
aqui a gratidão a dois emigrados que prestaram serviços
inestimáveis de divulgação entre nós da cultura e literatura
russas e que nos deixaram há pouco: o ucraniano Boris Schnaiderman
(1917 – 2016) e a russa Tatiana Belinky (1919 – 2013), tradutora
dessa belíssima versão de Almas mortas.
*
SOBRE
PÚCHKIN
Difícil
falar algo sobre Púchkin pra quem não sabe nada sobre ele. Púchkin
é um grande poeta. Napoleão não é tão grande quanto Púchkin. E
Bismarck em comparação a Púchkin não é nada. E Alexandre I e II
e III são uns bolhas em comparação a Púchkin. E todo mundo em
comparação a Púchkin é um bolha, apenas em comparação a Gógol
o próprio Púchkin é um bolha.
E
para que escrever sobre Púchkin se o melhor é escrever sobre Gógol?
Gógol
é tão grande que não dá para escrever sobre ele, por isso mesmo
vou escrever sobre Púchkin.
Mas
depois de Gógol escrever sobre Púchkin é uma lástima. E sobre
Gógol não dá para escrever. Por isso o melhor é não escrever
nada sobre ninguém.
Daniil
Kharms
15
de dezembro de 1936
(Trad.
Daniela Mountian e Moissei Mountian) (14)
Nikolai Gógol, por Otto Friedrich
Theodor von Möller
__________
(1)
GÓGOL, Nikolai – Almas mortas. Trad. Tatiana Belinky, São
Paulo: Perspectiva, 2011. Tradução do original em russo Miórtvie
Dúchi. Contém cronologia, ensaio: “Almas mortas, a
visão de um poeta”, Boris Schnaiderman; Pequena biografia, Paulo
Bezerra. Texto na contracapa: N. Cunha e J. Guinsburg. Textos nas
duas orelhas: Alexander Herzen, Vassirion G. Biélinski, Prosper
Merimée, Dostoiévski, Otto Maria Carpeaux, Vladimir Nabokov.
Ilustrações: Sérgio Kon. Brochura, 21x12,5. 432 pp. ISBN
978-85-273-0810-6.
(2)
FRANK, Joseph. “Pensamento russo – o caminho para a Revolução”,
In: Pelo prisma russo. Ensaios sobre literatura e cultura.
Trad. Paula Cox Rolim e Francisco Achcar, São Paulo: Edusp,1992, pp.
61-62.
(3)
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de
Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1962, p. 1863.
(4)
Id., ibid., pp. 1862-1863.
(5)
SCHNAIDERMAN, Boris - “Almas mortas, a visão de um poeta”,
op. cit., p. 15.
(6)
Revista Kalinka, 20/12/2011, disponível em:
<http://www.kalinka.com.br/index.php?modulo=Revista&id=25>.
Consultado em 19/2/2018.
(7)
SCHNAIDERMAN, Boris – op. cit., p. 15.
(8)
MOISÉS, Massaud. A criação literária. 3a. ed.,
revista e ampliada, São Paulo: Melhoramentos, 1970, p. 155.
(9)
Cf. B. Tomachevski - “Temática”, In: EIKHEINBAUM, B. et
allii. Teoria da literatura. Formalistas russos. Trad. Ana
Maria Ribeiro Filipouski et allii, Porto Alegre: Globo, 1973,
p. 179.
(10)
AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Trad.
José Paulo Paes, São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 354.
(11)
Walter Benjamin, “O narrador. Considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov”, In: Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. 7a. ed.,
trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 213.
(12)
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária.
6a. ed. portuguesa revista pela 16a. alemã,
trad. Paulo Quintela, Coimbra: Armênio Amado, São Paulo: Martins
Fontes, 1976, p. 391.
(13)
BOTTMANN, Denise - “Bibliografia russa traduzida no Brasil”, In:
Revista de literatura e cultura russa, Universidade de São Paulo,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, v. 4, n° 4,
2014.
(14)
O poeta,
escritor e dramaturgo Daniil Kharms (1905-1942), cujo nome verdadeiro
era Daniil Ivánovitch Iuvatchóv, nasceu em São Petersburgo.
Daniil
Kharms teve um percurso como o de muitos artistas do período
stalinista. Distante estética e filosoficamente do que, a partir de
1932, convencionou-se chamar de “realismo socialista”, foi preso
duas vezes, em 1931 e em 1941, morrendo logo depois numa cela
psiquiátrica.
Em
vida, praticamente apenas seus textos e poemas para crianças foram
publicados. Hoje sua obra é lida e relida e comparada à de
escritores do quilate de Samuel Beckett e Eugène Ionesco. Na
verdade, Daniil Kharms, assim como Franz Kafka, a quem também é
assemelhado, prenuncia a literatura do absurdo ou absurdista.
No
Brasil, a editora Kalinka lançou em 2013 a primeira coletânea
dedicada ao autor, Os sonhos teus vão acabar contigo: prosa,
poesa, teatro, com tradução de Moissei Mountian, Daniela
Mountian e Aurora Fornoni Bernardini.
Fonte:
http://www.kalinka.com.br/index.php?modulo=Revista&id=74
*
Imagens:
"Almas mortas", Sergey Alimov:
http://www.saint-petersburg.com
"Almas mortas", Marc Chagall (Vitebsk, Império Russo, 7 de julho de 1887 — Saint-Paul-de-Vence, França, 28 de março de 1985): gravuras produzidas entre 1923 e 1926:
Instituto de Artes de Chicago
Retrato de Gógol, por Otto Friedrich
Theodor von Möller (Kronstadt, Rússia, 1812 – Saaremaa, Estônia,
1874).
http://www.saint-petersburg.com/famous-people/nikolay-gogol/
“Suíte Gógol”, Alfred Schnittke (Engels, Rússia, 24/11/1934 — Hamburgo, 3/8/1998)
I. Overture [0:02]
II. Chichikov's Childhood [1:23]
III. Portrait [3:42]
IV. The Greatcoat Polka [11:03]
V. Ferdinand [13:22]
VI. The Clerks [14:18]
VII. The Ball [17:03]
VIII. Finale: The Testimony [23:37]
I. Overture [0:02]
II. Chichikov's Childhood [1:23]
III. Portrait [3:42]
IV. The Greatcoat Polka [11:03]
V. Ferdinand [13:22]
VI. The Clerks [14:18]
VII. The Ball [17:03]
VIII. Finale: The Testimony [23:37]