quinta-feira, 15 de outubro de 2020

 

ENTREVISTA COM SÉRGIO SCHARGEL

O pesquisador e escritor responde ao blog – Parte II



                                  Gianguido Bonfanti, s/ título, gravura, 50 x 60cm, 1980.


Na segunda parte da entrevista ao Búfalo Celeste, o pesquisador e escritor Sérgio Schargel fala sobre a ressurgência do autoritarismo e as novas manifestações de antissemitismo, dá a sua visão sobre a relação entre Universidade e sociedade e, por fim, dá indicações de leitura de obras de ficção.


No início do seu artigo para o NexoJornal, de 31/5/2020, “ 'Você não é judeu de verdade': o antissemitismo velado”, você afirma que “era de se esperar que os judeus se posicionassem maciçamente contra um presidente que, em muitos aspectos, lembra um político que nos massacrou”.

Mais adiante, você lembra do convite que o Clube Hebraica fez para que o então candidato Jair Bolsonaro expusesse o seu programa de governo e, mesmo com as ideias fortemente preconceituosas ali apresentadas, o candidato foi aplaudido.

Com tudo o que essa Presidência já demonstrou, notadamente no desapreço pela democracia, refletindo-se, inclusive, na sua imagem negativa no exterior, você acredita que possa ter ocorrido uma mudança de postura na comunidade judaica brasileira?

Bem, primeiro de tudo é importante sempre ressaltar que a comunidade judaica não é uma comunidade homogênea. Obviamente nenhuma comunidade o é, por mais que elos identitários os liguem, há uma inevitável pluralidade de ideologias e correntes políticas entre qualquer minoria, sejam elas judeus, árabes, mulheres, negros, índios. Mas, na comunidade judaica em particular, por causa da diáspora e da formação de identidades ambivalentes, assim como uma cisão entre judaísmo secular, conservador e ortodoxo, essa heterogeneidade é particularmente marcante.


Da mesma forma que 60% dos judeus apoiaram a candidatura do Bolsonaro, por conseguinte é óbvio que 40% não o apoiaram. Com as mulheres, cerca de 60% apoiaram e 40% não. Os LGBTQ+ apoiaram em 30%. 70% dos evangélicos apoiaram e 50% dos católicos. Dados do Datafolha. O próprio evento no Hebraica, clube em que eu jogava futebol quando criança, teve uma manifestação do lado de fora majoritariamente formada por judeus indignados com a presença do Jair. Meu ensaio foi criticado por não aprofundar esses pontos e eu entendo essa crítica. Na versão ampliada, com formato acadêmico, a ser publicado em breve, eu trato dessas questões. Mas por causa do espaço é impossível desenvolver discussão em múltiplas frentes em opeds.


Por que 30% da população LGBTQ+, que talvez seja a minoria que foi atacada com mais frequência pelo presidente, o apoia? É essa pergunta que eu quero fazer, é isso que eu quero entender: por que minorias apoiam candidatos que as atacam?


Mas para fins acadêmicos me interessam mais esses 60% dos judeus que votaram no Jair do que os 40% que não votaram. Por que 30% da população LGBTQ+, que talvez seja a minoria que foi atacada com mais frequência pelo presidente, o apoia? É essa pergunta que eu quero fazer, é isso que eu quero entender: por que minorias apoiam candidatos que as atacam? A priori, isso parece em certo ponto contradizer a clássica teoria da escolha racional, cânone na ciência política que determina que os eleitores imprescindivelmente votam para aqueles que representam melhor seus interesses. Um segundo formato de crítica ao meu ensaio partiu dos marxistas, que afirmam que a resposta a essa pergunta é simples e é meramente uma questão de luta de classes. É impressionante que em 2020 certos marxistas ainda sacralizem os escritos de Marx e o tomem como único pensador possível, excluindo quaisquer outras possibilidades no processo. É um pensamento em parte herdado da Terceira Internacional, quando foi decidido que o fascismo era o último suspiro de um capitalismo moribundo, antecipando a inevitável revolução. Podemos ver que esse pensamento não se sustentou e a explicação marxista sobre o fascismo é rasa e simplória. Simplesmente porque o fascismo, e podemos ver isso no bolsonarismo, espalha o seu miasma por todas as classes, assim como por todos os grupos identitários, como os dados do Datafolha mostram. Claro, a não ser que seja feito um procedimento quantitativo dentro dessa porcentagem das minorias a favor do Bolsonaro, como, por exemplo, os 30% LGBTQ+, analisando as divisões sociais dessa amostra, é impossível uma conclusão científica e absoluta (e provavelmente mesmo assim também o seria). Todavia, os dados que temos já são suficiente para afirmar que Bolsonaro teve penetração em todas as classes sociais, o que parece refutar a hipótese da luta de classes ao menos como explicação exclusiva.


No caso particular dos judeus, algumas hipóteses empíricas podem ser traçadas: a relação amigável de Bolsonaro com o Estado de Israel; o fato de Jair em si, ao que eu me lembre, nunca ter dado declarações antissemitas (apesar de pessoas próximas dele já o terem feito algumas vezes, como vale sempre lembrar o caso Rodrigo Alvim). Mas essas hipóteses não explicam, por exemplo, se é possível traçar uma comparação em um tempo-espaço tão díspar, o apoio de grupos judeus minoritários ao fascismo e ao nazismo em seus estágios iniciais. Talvez a resposta esteja em um parágrafo do livro Não vai acontecer aqui, de Sinclair Lewis:


Sarason sabia sobre os modos sigilosos com que esses barões da indústria, sua força renovada, usavam as detenções feitas pelos MM para se livrar dos ‘encrenqueiros’, em particular os radicais judeus - um radical judeu sendo um judeu sem alguém que trabalhasse para ele (alguns desses barões inclusive eram judeus; não se espera que a lealdade à raça seja levada ao ponto de enfraquecer o bolso”).


À primeira vista talvez essa citação pareça corroborar a hipótese da luta de classes, mas eu não enxergo assim. Vou chegar lá.



                                                  Gianguido Bonfanti, s/ título, gravura, 43 x 52 cm, 1980.



Assim como a obra de Lewis, Complô contra a América, de Philip Roth é um exemplo magnífico de como o real da ficção pode sugerir respostas para questões que nos perturbam no nosso real. Quem já o leu deve se lembrar de dois dos personagens mais detestáveis do enredo: o rabino Bengelsdorf e Evelyn, sua esposa e tia do protagonista. Ambos, judeus, reforçam e corroboram a candidatura do presidenciável antissemita Lindbergh, um personagem que de fato existiu. Roth mostra como ambos, arrivistas, colocaram suas identidades em segundo plano em prol da possibilidade de ascensão social.


Parte daí a hipótese que mais me interessa para entender esse apoio: a questão identitária seria irrelevante para esses grupos, ou ao menos não seria imprescindível. Assim, não contradiz a hipótese da escolha racional. Esses grupos supostamente escolheriam o líder que melhor condiz com os seus interesses prioritários. Assim, se for um liberal de classe média, as promessas de Bolsonaro de flexibilização trabalhista o interessam já que podem ajudar sua pequena empresa. Para uma pessoa que depende do Bolsa família, a manutenção do auxílio governamental. E por aí vai. Isso pode ajudar a explicar também o apoio maciço ao presidente em todas as camadas sociais, afinal, 57 milhões, 1/4 da população brasileira, engloba uma multidão heterogênea. 

É claro que há diversas outras variáveis que podem inclusive contradizer a escolha racional, como as fake news, e, como qualquer ciência, é impossível considerar todas. Eu, por exemplo, tive uma formação secular e o judaísmo não foi primeiro plano na minha vida, só de uns anos para cá passou a me interessar mais e passei a me identificar mais. Certamente, na minha escolha política, pesam muito mais outros aspectos do que a relação entre Brasil e Israel pode pesar para um ortodoxo. Então, aparentemente, esses 60% relevam o ódio do presidente a outros grupos sociais, mesmo que ele acabe indiretamente incentivando o antissemitismo, em função de suas prioridades políticas e econômicas. Em outras palavras, “não é problema meu”. Portanto, eu vejo mais como uma questão dentro da hipótese da escolha racional do que como luta de classes.


Novamente, essa é uma longa discussão sem uma resposta conclusiva. É uma questão sobre a qual vou me debruçar em meu futuro doutorado em ciência política durante quatro anos e acredito que apenas um misto de pesquisa quantitativa e qualitativa tornará possível respondê-la, talvez nem assim. Por enquanto, tudo o que tenho é uma hipótese falseável que pode ou não se sustentar, o que indica que esse é o caminho certo da pesquisa.


A recessão democrática global que estamos vivendo, agora em seu décimo quarto ano consecutivo, traz consigo movimentos de ódio, racismo, nacionalismo e intolerância que acaba impulsionando o antissemitismo.


No meio disso tudo o outro ponto que eu levanto no artigo, diretamente relacionado e que também me interessa muito, é o crescimento do antissemitismo no mundo inteiro, mas particularmente no Brasil, esse nosso antissemitismo jabuticaba. O trauma do Holocausto e a formação do Estado de Israel mitigou o antissemitismo pelo mundo. Nunca foi tão seguro ser judeu, ser abertamente judeu, quanto no início do século XXI. Mas essa recessão democrática global que estamos vivendo, agora em seu décimo quarto ano consecutivo, traz consigo movimentos de ódio, racismo, nacionalismo e intolerância que acaba impulsionando o antissemitismo. Parece-me que o antissemitismo está voltando a ser institucionalizado para além de países periféricos da Europa oriental. A AfD [Alternativa para a Alemanha, Partido de extrema-direita] na Alemanha disse que o Holocausto não foi mais do que “cocô de pássaro na história alemã”, o secretário de imprensa de Trump negou as câmaras de gás nazistas, 32% dos alemães acreditam que os judeus usam o holocausto por conveniência, segundo dados da CNN. Mais do que isso:


Na Alemanha, a polícia revelou que atos de violência motivados por ódio aos judeus aumentaram em mais de 60% no país no período de um ano. Segundo os dados, solicitados por parlamentares do partido A Esquerda, foram 62 ataques violentos em 2018, deixando 43 pessoas feridas, enquanto em 2017 haviam sido registrados 37 ataques. Já o número total de crimes relacionados a antissemitismo, não necessariamente violentos, chegou a 1.646 em 2018 – 9,4% a mais do que no ano anterior [...] Uma pesquisa divulgada no final de 2018 pela Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA, na sigla em inglês) – o maior levantamento já realizado sobre antissemitismo no continente – afirma que o discurso de ódio e casos de abuso estariam se tornando algo cada vez mais normal, assim como o medo entre os judeus de serem reconhecidos publicamente como tal. [...] Segundo o estudo da FRA, 90% dos judeus entrevistados disseram sentir um aumento do antissemitismo em seus países, enquanto 30% afirmaram que já foram alvo de ofensas. Um terço das pessoas evita ir a eventos ou locais judaicos temendo por sua segurança. A mesma proporção de pessoas afirma que considera emigrar para outros países.”

Informações da Deutsche Welle.


A Adriana Dias, pesquisadora da UNICAMP, cartografou mais de 300 células neonazistas no Brasil, grande parte delas no Rio de Janeiro.


A Alemanha é um caso que me chama particularmente a atenção. Como pode um país que se vende como pilar da tolerância abraçar um partido como a AfD, que nem sob o melhor malabarismo intelectual pode ser classificado de outra coisa que não neofascista? Essa é outra questão que me intriga. O caso do Brasil também é intrigante. Não temos um antissemitismo histórico tão forte quanto os Estados Unidos ou a Europa, mas, como eu falo no ensaio, temos um antissemitismo velado, quieto, um mal-estar em relação aos brasileiros descendentes de judeus e de árabes. Um desconforto que, para virar de fato violência física, basta um empurrão. E, para mim, Roberto Alvim foi a ruptura que mostrou que esse empurrão pode estar mais próximo do que se pensa. Desde o ano passado tivemos pessoas usando suásticas em público, carros riscados com suástica, judeus usando quipá sendo fisicamente agredidos. Claro que não são casos tão frequentes quanto nos outros países que eu citei, ou quanto agressões a outras minorias. Mas existem. E podem se intensificar se nada for feito. A Adriana Dias, pesquisadora da UNICAMP, cartografou mais de 300 células neonazistas no Brasil, grande parte delas no Rio de Janeiro. Venho lendo aos poucos a tese dela e é um trabalho incrível. É comum encontrar suásticas pichadas quando se passa pela Baixada Fluminense, por exemplo.



                                            Gianguido Bonfanti, s/ título, nanquim, 53 x 69cm, 15/11/1979.



Desde 2019, além das artes e da cultura, o conhecimento, a ciência e a Universidade pública passaram a ser atacados no Brasil, de uma forma sem precedentes no período pós-redemocratização. Se por um lado é flagrante a falta de fundamento dos ataques à Universidade pública brasileira, uma vez que esta é responsável pela maior parte da pesquisa desenvolvida em nosso país, como pode a Universidade reforçar os laços com a população e a sociedade, para se fortalecer institucionalmente e para que seja reforçada a consciência da sua importância para o desenvolvimento do país?

O que eu mais queria era ter a resposta dessa pergunta. Não a tendo, eu gostaria de, pelo menos, fazer uma defesa da categoria acadêmica. Vejo com frequência ataques infundados de que a academia se fechou em seu palácio de cristal, evitando o diálogo com a população. Eu não vejo assim, na verdade eu vejo justamente o contrário. A academia, principalmente as gerações e programas mais novos, sempre buscaram um diálogo. Eu acho que culpar a academia por isso é culpar a vítima e isentar o perpetrador. O que precisa ser considerado é que movimentos fascistas são anti-intelectuais por natureza. Em alguns casos, como o nazismo, aceitam uma intelectualidade limitada e unilateral; em outros, como no bolsonarismo, não há espaço para qualquer intelectualidade. O bolsonarismo despreza qualquer arte porque ele é a expressão máxima da mediocridade do brasileiro comum, que também despreza qualquer arte. Da mesma forma, o nazismo desprezava a “arte degenerada” porque o alemão médio em 1930 não entendia a arte moderna e, em certos aspectos, a temia. Em outras palavras, o fascismo é a visão do homem-médio potencializada e elevada a razão de Estado.


Assim sendo, e não estou dizendo que não é importante buscar o diálogo com a população, é imprescindível esse diálogo, mas independente disso qualquer movimento de massa vai criminalizar algum aspecto da arte, simplesmente porque o fascismo é necessariamente maniqueísta e precisa de inimigos objetivos para se disseminar, já que ele se baseia no medo. Como eu falo no ensaio que você citou, se para o fascismo música é rock, então qualquer outra expressão musical será degenerada. Se para o fascismo nenhuma arte é necessária, então a arte em si própria será degenerada. Como o é aqui. Por outro lado, apenas uma minoria dessa fatia, desses famosos 30%, é fascista/autoritária, então há, sim, possibilidade de diálogo mesmo com parcelas desse grupo.


Longe de ser nacionalista, mas nós temos uma produção científica, ensaística e artística incrível que está entre as melhores do mundo. E quem disser o contrário ou não conhece a produção brasileira e a subestima ou não conhece a produção estrangeira e a superestima. Agora, como fazer com que a população tome ciência dessa produção? Não sei. Gostaria de saber. Vejo discentes tentando promover iniciativas em redes sociais e, antes da pandemia, barracas semelhantes aquelas do “vira-voto” no segundo turno de 2018, talvez sejam formas, mas possuem alcance limitado. Talvez uma possibilidade seja incentivar pesquisas que tenham um impacto social para além de apenas ampliar o estado da arte (não que esse segundo ponto também não seja essencial). Ou talvez trabalhar uma linguagem menos complexa tanto na arte quanto nas humanidades, que permita um maior diálogo com as pessoas, algo no estilo brechtiano. Ou talvez o caminho não seja nada disso, não sei. Tanto mais, complica bastante a imensa carga de pesquisa e trabalho que as universidades exigem dos discentes e docentes, que muitas vezes trabalham sem bolsa ou por pouco mais do que um salário mínimo. Sobra trabalho, falta tempo. E é impressionante que mesmo nessas condições a gente tenha trabalhos tão incríveis.


Independentemente de suas leituras relacionadas aos projetos acadêmicos, qual foi a última leitura de obra literária que você recomendaria aos leitores do Búfalo Celeste e por quais razões.

Olha, com essa pergunta eu acabei de reparar que até minhas leituras de ficção têm sido bastante relacionadas a política. No início desse ano descobri Philip Roth e passei grande parte do ano com ele. Li Complô contra a América e Casei com um comunista. Roth é magistral na arte de explicar a política através da ficção, seu retrato do fascismo no primeiro livro e do macarthismo no segundo são bem fiéis. Também li A barata, novela nova do Ian McEwan, autor contemporâneo que acompanho há anos, uma interessante sátira política absurdista do Brexit; e A criança no tempo, também dele, no início do ano. Tenho certa dificuldade hoje em dia em dissociar as leituras relacionadas a projetos com leituras independentes, porque elas se misturam. Por fim, que ficou marcado na memória, li também esse ano A nova ordem, livro novo do Bernardo Kucinski (inclusive sairá uma entrevista que fiz com ele em breve); e reli Luz em agosto, de William Faulkner. Recomendo todos.


No momento estou lendo Inferno, de Patrícia Melo, uma autora que admiro como literata e como pessoa e que também entrevistei recentemente, ainda a ser publicado; uma coletânea da Penguin de contos holandeses; e

Sylvia não sabe dançar, uma novela sobre a minha bisavó, Sylvia Seraphim Thibau, meu objeto de estudo no vindouro doutorado em literatura, poetisa e escritora, assassina de Roberto Rodrigues, irmão do Nelson Rodrigues. Estou ansioso para ler O som e a fúria, tenho particular apreço por Faulkner, mas ainda não consegui tempo. Provavelmente o farei durante o verão. Mas se eu tivesse de escolher uma obra para recomendar, imagino que provavelmente escolheria Pais e filhos [obra resenhada pelo Búfalo Celeste], de Turguêniev. Já tem mais de uma década que li, mas poucos livros me impressionaram tanto. Imagina o impacto de um personagem como Bazarov em um adolescente de 17 anos. Fausto, de Goethe e Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo com certeza também seriam boas escolhas.


                                 Sérgio Schargel, aula como Professor-convidado, na UNIPAMPA.


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Imagens

Gianguido Bonfanti, s/ título, gravura, água-forte e ponta seca sobre papel, 50 x 60cm, edição de 30, 1980. 

Gianguido Bonfanti, s/ título, gravura, água-forte e ponta seca sobre papel, 43 x 52 cm, edição de 30, 1979. 

Gianguido Bonfanti, s/ título, nanquim, 53 x 79cm, 15/11/1979, col. Gilberto Chateaubriand, MAM/RJ.


Fonte das imagens: imagens gentilmente cedidas pelo próprio artista.





Ludwig van Beethoven (Bonn, Nordrhein-Westfalen, Eleitorado de Colônia [atual Alemanha], 17/12/1770 - Viena, Império Austríaco, 26 de março de 1827}, Sinfonia n. 7 em lá maior, segundo movimento, “Allegretto", op. 92, regente Leonard Bernstein, Filarmônica de Viena.

A Sinfonia n° 7 foi composta entre 1811 e 1812 e estreou em 8 de dezembro de 1813, na Universidade de Viena, sob a regência do próprio compositor. 

A peça musical foi escolhida por Sérgio Schargel.


Fonte:

https://www.youtube.com/watch?v=vCHREyE5GzQ&ab_channel=neuIlaryRheinKlange

 

 

 

 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

 

ENTREVISTA COM SÉRGIO SCHARGEL

O pesquisador e escritor responde ao blog – Parte I

 


                            Gianguido Bonfanti, s/ título, óleo sobre tela, 105 x 110cm, 10/8/2006.


O incansável carioca Sérgio Schargel é escritor, dramaturgo e ensaísta e já publicou em coletâneas e revistas, mas majoritariamente em veículos digitais. Entre seus trabalhos como artista, podem ser citados: poema “BraZil” na “Valittera – Revista literária dos acadêmicos de Letras”, adaptado para uma peça; “Fear”, na “mallarmagens – Revista de poesia e arte contemporânea”. Escreveu também a peça “Dissenso” e uma outra peça está para ser publicada no periódico “Água Viva”, da UnB. Vale citar ainda um ensaio para a revista “Ribanceira” que pode ser entendido, em verdade, como um diálogo entre todas as áreas em que atua: academia, jornalismo e arte. 

Além de algumas peças de prosa e verso menores, Schargel desenvolve, em paralelo, dois projetos artísticos maiores: o roteiro da primeira montagem brasileira da obra Não vai acontecer aqui, de Sinclair Lewis, e um romance, os quais devem ser lançados até 2022. Um outro projeto de Schargel em pauta é o roteiro de um monólogo de e sobre Sylvia Seraphim Thibau, poeta e jornalista, sua bisavó, assassina de Roberto Rodrigues, irmão de Nélson Rodrigues; com esse roteiro, Schargel pretende trazer novamente à luz a figura de Sylvia Thibau, que sofreu um apagamento histórico em função de seu crime.


Como jornalista, além de um ensaio no jornal digital “Nexo”, Schargel vem realizando diversas traduções freelancers de opeds para alguns veículos como “El País”, “Le Monde” e, principalmente, a “Folha de S.Paulo”, na qual publicou cerca de cinco traduções. Também faz clipping, escreve newsletters e cuida do sítio eletrônico de um instituto de pesquisa, entre outros trabalhos menores. Publicou uma reportagem em uma revista internacional, “HanzeMag”, há alguns anos, que Schargel considera o seu trabalho jornalístico preferido, uma vez que a metodologia de investigação foi próxima daquela aplicável a uma pesquisa acadêmica.


Schargel atualmente é mestrando em Literatura pela PUC-Rio e mestrando em Ciência Política pela UNIRIO. É Bacharel em Comunicação Social, Jornalismo e Comunicação Social, Publicidade e Propaganda, ambas pela PUC-Rio.


Sua pesquisa e sua produção artística estão dirigidas à relação entre literatura e política, tangenciando temas amplos como fascismo, autoritarismo, populismo, pós-memória, antissemitismo, integralismo e ditadura militar. Schargel também apresentou trabalhos em eventos como Mostra Bosque, CLAEC, Póscom, entre outros.


*


Na primeira parte da entrevista ao Búfalo Celeste, Sérgio Schargel fala sobre a trajetória intelectual que o levou à Ciência Política e à Literatura, sobre a indústria cultural hoje, trata da cultura na nova realidade do mundo virtual e da autonomia da arte e da arte engajada.


Como e por que você se encaminhou para a área de Literatura?

A verdade é que literatura sempre foi minha grande paixão, minha grande área de estudo. Mesmo em épocas em que eu pouco lia em termos teóricos, como no início da graduação, nunca me afastei da ficção. Devo isso aos meus pais, que me colocaram em contato com a literatura desde criança. Aliás, existe uma matéria da revista “ISTOÉ”, de 2001, com uma entrevista comigo de quando eu tinha oito anos, tratando, desde aquela época, da importância da literatura em minha vida. Curiosamente, apesar de ter sido aprovado para Letras, optei por fazer graduação em jornalismo. Sempre tive em mente que queria escrever ficção, mas dez anos atrás, quando entrei na graduação, não conseguia me imaginar como acadêmico e muito menos como professor escolar.


Acho que eu ainda tinha certa visão romântica do jornalismo e sonhava em trabalhar em uma redação enquanto escrevia, em paralelo, romances. Não demorou muito e fui contemplado com a realidade: trabalhos atualizando planilhas e mexendo em redes sociais, o oposto do que eu sonhava. Todavia, não me arrependo da graduação: graças a ela consegui um emprego em um instituto de pesquisa em ciência política que me ajudou muito em diversos aspectos, como contatos com grandes pesquisadores, conhecimento mais aprofundado sobre política, motivação para consumir e produzir e, claro, um salário. Esse trabalho foi essencial no desenvolvimento da minha segunda área de interesse, a ciência política, mas vou chegar lá.


Antes da ciência política, eu criei e mantive, por pelo menos três anos, uma empresa de eventos. Ela até funcionava bem, era inovadora e provavelmente teria futuro se eu investisse nela, chegou até a ser finalista no “Shell LiveWire”, um evento de fomento ao empreendedorismo. Mas esse era um trabalho que eu realmente fazia sem nenhum prazer: não havia nenhum retorno intelectual e, por ser focado em pub crawls, isto é, tours por bares para turistas, eu tinha que aturar estrangeiros bêbados que tinham em geral uma visão bem estereotipada da noite carioca. Em outras palavras, tive que lidar com clientes que assediaram, brigaram e até roubaram. Há tantas histórias bizarras dessa época. Algumas engraçadas, outras apenas horríveis. Lembro-me em particular de uma vez em que um indivíduo, acho que era do Texas, pediu em casamento uma moça que conhecera havia trinta minutos. Tecnicamente a empresa ainda existe, mas espero não ter que voltar a ela nunca mais. Eu detestava aquele trabalho, mesmo porque nunca fui bom em lidar com pessoas.


Quando escrevi minha primeira monografia, na verdade desde um pouco antes, nas aulas de metodologia, percebi que não gostava apenas de ler romances, mas de pesquisar sobre romances. Mais do que isso, que gostava de pesquisar. Era um trabalho que me dava prazer de fato, que eu não tratava como trabalho, bem diferente dos demais. Então não demorou muito pra que eu decidisse que a academia era realmente o que eu precisava. Em 2018, apliquei-me e entrei no mestrado na PUC.


O meu interesse na política parece ser consequência justamente da fragilização democrática que vivemos desde 2013.


Nesse sentido, a literatura veio antes, a política depois. Curiosamente, o meu interesse na política parece ser consequência justamente da fragilização democrática que vivemos desde 2013. Quando o Brasil era estável, economicamente, politicamente e socialmente, meu interesse por política era irrisório. Mas após as contestações e o processo de impeachment de Dilma Roussef, começo pouco a pouco a me interessar. Acho que adveio de uma curiosidade natural de entender aquele processo que parecia, à primeira vista, tão aberrante. Com as eleições de 2018 meu interesse se intensifica, ao ponto de que hoje prefiro estudar teoria política a teoria literária, embora, para mim, nada supere a ficção. Novamente, o interesse cresceu com a curiosidade: eu queria compreender por que uma pessoa tão desprezível havia sido eleita. Mais do que isso, eu queria entender se realmente fazia sentido chamá-lo de fascista, como via muitos o chamando.


Mesmo pouco entendendo de política em 2014, devo dizer que me lembro, naquela época, de conversar com meu pai e prever que um Bolsonaro ou um Feliciano acabaria sendo eleito presidente em algum momento. Podia não ter conhecimento aprofundado em política, mas nunca subestimei a ingenuidade das pessoas. Ingenuidade é, obviamente, um eufemismo.


 

                            Gianguido Bonfanti, s/ título, óleo sobre tela, 105 x 110cm, 25/7/2006.

 

O seu artigo “A manhã renascer esbanjando poesia: o papel da arte na luta contra o ur-fascismo e o anti-intelectualismo” (Dignidade re-vista, v. 4, n° 7, julho de 2019) trata enfaticamente do poder emancipador da arte; a despeito disso, como abordar a ação alienante da indústria cultural, na forma desenvolvida por Adorno e Horkheimer, da qual resultam objetos culturais que são simulacros de arte e, por sua própria natureza massificada, têm um peso desproporcional no espaço simbólico social e nas consciências dos indivíduos?

É uma grande aporia: se, por um lado, qualquer forma de arte é válida, por mais massificada que seja, por outro não é toda arte que cria pensamento crítico. Mas mesmo a arte mais massificada, como, por exemplo, um filme comoTransformers”, pode ser útil em certos aspectos.


Eu vejo com frequência as pessoas, inclusive dentro da academia, tratando a arte, em particular a literatura, como se os livros fossem objetos mágicos e que por si só o ato de ler algo, por pior que o livro seja, já fosse o suficiente para revolucionar o mundo. Nesse sentido, mesmo os livros mais massificados seriam úteis porque qualquer leitura seria válida. Eu rejeito esse pensamento. Livros (e qualquer forma de arte, mas vejo muito isso na literatura, talvez por ser mais o meu campo) não são objetos mágicos, mas uma metodologia para que uma pessoa expresse os seus pensamentos. Em outras palavras, e entendendo ideologia numa visão de Robert Dahl, como o conjunto de crenças de cada indivíduo e, nesse sentido, onipresente inclusive na arte e na ciência, um livro é uma forma de o autor exprimir a sua ideologia. Isso é bastante notável, por exemplo, na literatura distópica. Autores conservadores escrevem sobre futuros arruinados por liberais, liberais escrevem sobre futuros arruinados sobre conservadores. 

Quando Obama foi eleito nos Estados Unidos, Atlas Shrugged [livro de ficção da estadunidense de origem russa Ayn Rand, publicado em 1957, e lançado no Brasil com o título de A revolta de Atlas] retornou à lista de mais vendidos; quando Trump foi eleito, foi a vez de 1984 [romance do escritor britânico George Orwell, publicado em 1949] voltar a ser um best seller. Em outras palavras, um livro é um recipiente de ideias e o leitor, ao lê-lo, forma diálogos com o autor. Nesse sentido, é uma oportunidade de conversa com alguns dos maiores pensadores da história da humanidade. E não há como equiparar a oportunidade que temos de dialogar com um Burke, um Adam Smith, um Stendhal ou um Karl Max, com um diálogo com um autor de auto-ajuda. Não dá pra comparar a troca de experiências com pessoas que estudaram a vida inteira para produzir um magnus opus com um livro de auto-ajuda pseudocientífico que diz que é possível reprogramar sua estrutura molecular para atingir o DNA da riqueza.


Fico em um meio termo entre a fobia da cultura de massa que Adorno tinha e a completa relativização das fronteiras entre literatura de entretenimento e alta cultura.


Isso não significa, porém, que a literatura de entretenimento não possua valor e deva ser atacada ou descartada, em absoluto. Acho que há, sim, uma hierarquia entre cultura de massa e alta cultura, e eu serei bastante criticado pela minha orientadora e por professores/colegas por dizer isso, caso algum dia eles leiam essa entrevista, mas sempre enxerguei dessa forma, talvez conservadora. Acho que fico em um meio termo entre a fobia da cultura de massa que Adorno tinha e a completa relativização das fronteiras entre literatura de entretenimento e alta cultura.


A arte de entretenimento é eficaz no que se propõe: entreter. Ainda não somos máquinas e quase todo ser humano precisa de algum entretenimento em sua vida, especialmente quando somos privados de alternativas reais, como agora com a pandemia. Como, então, negar a importância de uma peça de arte que nos relaxe sem causar uma catarse ou influência significativa nos nossos pensamentos? Mais do que isso, como exigir de um brasileiro médio, em um país desigual como o nosso, que abra mão do seu “Transformers” para assistir “Melancholia”?

Ademais, às vezes a arte de entretenimento pode servir como ponte para outras artes. Ninguém nasce lendo Goethe. Mesmo a literatura de auto-ajuda - e deus sabe como eu odeio essa indústria do coach e da felicidade -, pode ser útil a alguém. A indústria cultural não é a doença, mas um sintoma. Um sintoma de uma “sociedade enjaulada”, para usar um termo de um professor meu, Rob Riemen, ou “sociedade cansada”, para usar um sinônimo de um autor na moda agora, o Byung-Chul Han. Agora, essa sociedade enjaulada é o alimento perfeito para um movimento fascista se alimentar, quando aliado a outros fatores, e isso é algo que o próprio Adorno já tinha percebido ainda em 1950. Porque somos tão vazios, tão cansados, tão cheios de medo, ressentimento, frustração, tristeza, que precisamos preencher esse vácuo desesperadamente com qualquer coisa: drogas, sexo, entretenimento. 

Precisamos estar felizes o tempo inteiro, não há espaço para a tristeza. Huxley já tinha visualizado isso em Admirável mundo novo [romance distópico, publicado em 1932], e diz logo no início do livro “reivindico o direito de ser infeliz”. Agora, quando há uma crise econômica e esse vazio não pode mais ser mais preenchido, quando somos forçados a contemplá-lo dentro de nós, o medo se transforma em raiva, em ódio.


O romance surge como uma forma de arte menor. O entretenimento é a origem do próprio romance. Só depois ele adquire o seu caráter intelectualizado e filosófico.


Agora, como minha querida orientadora Vera Lúcia Follain de Figueiredo afirma em seu livro Os crimes do texto – Rubem Fonseca e a ficção contemporânea [Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003], muitas vezes essa fronteira entre arte de entretenimento e alta arte são irreconhecíveis. Ela usa o caso do Rubem Fonseca, por exemplo, um autor que dialoga com os dois mundos. E a visão do que é alta e baixa cultura muda com o tempo. O romance, por exemplo, surge como uma forma de arte menor. O entretenimento é a origem do próprio romance. Só depois ele adquire o seu caráter intelectualizado e filosófico. 

A nossa compreensão do que é alta e baixa cultura se relaciona diretamente com o cânone. Obras que hoje são canônicas e estudadas por qualquer literato, nem que seja para criticá-las, como Robinson Crusoé ou O conde de monte cristo, surgiram como literatura de entretenimento. E a questão da reprodução maciça também não se sustenta em análise, ao menos na literatura, dado que obras canônicas e que certamente promovem uma reflexão, como 1984, são best sellers com diversas edições.

Não devemos ignorar ainda que o cânone, qualquer cânone, é arbitrário. Ele segrega, exclui, escolhe. E é fruto da sua época, da ideologia dominante. Então é comum termos grandes autores, alta literatura, que foram esquecidos ou propositalmente ignorados pelo cânone. Isso borra ainda mais as fronteiras entre alta e baixa literatura. Temos o exemplo de grandes escritores negros que foram ignorados, porque o cânone por muito tempo foi majoritariamente branco, ou escritoras mulheres que sofreram o mesmo destino, então é válido questionar uma noção subjetiva como o cânone.

 


                            Gianguido Bonfanti, s/ título, óleo sobre tela, 140 x 170cm, 11/7/2006.


Ainda a propósito da indústria cultural: com o mundo virtual e as redes sociais, essa forma de produção massificada de objetos culturais não ascendeu a uma outra escala exponencial muito além daquela conhecida quando da formulação desse conceito, tornando ainda mais estreito o espaço possível para uma arte emancipadora?

Na verdade eu vejo um pouco como justamente o contrário. Não suporto redes sociais e, sem dúvida, devemos muito da recessão democrática global a elas, mas, nesse sentido, vejo a internet e as redes sociais como benéficas. Graças às redes, há uma possibilidade muito maior de que artistas iniciantes e marginais tenham seus trabalhos consumidos e disseminados, ao passo que a grande indústria há anos vem procurando, sem sucesso, conter a pirataria. Claro, por outro lado, para ter visibilidade o pequeno artista acaba sendo absorvido pela lógica do mercado, colocando sua arte no Spotify, Youtube, DeviantArt, ou qualquer outra plataforma. Essas plataformas se tornaram praticamente novos mecenas. É paradoxal, mas na era digital é justamente graças a indústria cultural que as pequenas artes, os pequenos vaga-lumes, acabam encontrando espaço.


Temos diversos exemplos, mas vou usar com o qual eu tenho trabalhado: “Teocrasília”, de Dênis de Melo. “Teocrasília” é uma HQ que imagina uma distopia em um futuro próximo em que, como o título já deixa óbvio, o Brasil “evoluiu” para um autoritarismo teocrático de cunho neopentecostal. A primeira edição foi lançada em livro em 2018. Todavia, Teocrasília só conseguiu ser lançado graças ao financiamento coletivo através da plataforma Catarse, um movimento que vem sendo bastante repetido ao redor do mundo. Então, temos mais um exemplo de como a internet e as redes sociais auxiliam muito na divulgação e disseminação da arte independente, que encontraria muito mais dificuldade para sair do mundo das ideias sem esses impulsionamentos. Desde o início da pandemia, em especial, Dênis vem focando todo o seu trabalho em uma produção voltada para o digital, dando prosseguimento à sua produção de uma forma que antes seria impossível.


Na sua visão, exposta em seu artigo citado, “[a arte] é, por sua própria natureza, uma metodologia para a luta contra hegemonias, para questionar injustiças e paradigmas”. Ao deslocar o fulcro da arte para fora de sua autonomia, não há o risco de a arte ser instrumentalizada e de se subordinar a sua existência a um fundamento que lhe é estranho, pois se trata de outra área da atividade humana, como a política, por exemplo? Foi o que aconteceu nos totalitarismos do século XX, nos quais a arte perdeu a sua autonomia e teve de servir aos fins do regime político de ocasião. Apesar dessa experiência histórica negativa, desconsiderar a autonomia da obra de arte não pode levá-la a um território a ela estranho? A luta contra o obscurantismo, no campo da arte, não deve se dar com os elementos intrínsecos próprios da arte, ou seja, o lúdico e a liberdade humana nele inserida?

Acredito que há certa ingenuidade no campo artístico e acadêmico em sacralizar a arte no sentido de lhe conferir valor supremo, como se ela estivesse deslocada de todas as outras áreas de conhecimento humano. As áreas das humanidades, e a arte com todas elas, dialogam de forma intrínseca entre si atualmente, as ciências humanas são interdisciplinares por sua própria essência dialética. Isso não implica, porém, que exista alguma forma de hierarquia entre elas, e que elas não possuam sua própria autonomia.


A questão com os regimes totalitários é que, justamente por serem totalitários, eles atomizam todos os estratos da sociedade e submetem qualquer pessoa cívica ou jurídica ao jugo do terror. Praticamente não há arte autônoma no totalitarismo porque praticamente não há autonomia no totalitarismo, até mesmo para os membros da seita totalitária. Ainda assim, é importante lembrar que, apesar do nome totalitarismo nos remeter a um controle absoluto, os totalitarismos da realidade, mesmo que em níveis de violência e controle inéditos, não eram completamente absolutos. Mesmo sob o terror, ainda se criou alguma arte autônoma, clandestina, aterrorizada, mas livre dentro do escopo do possível.


Agora, diferente do totalitarismo, e isso é algo interessante, no fascismo/autoritarismo é perceptível uma guerra pela arte. Como vimos no caso de Roberto Alvim interpretando Goebbels naquela cena grotesca, e também com as guerras culturais que vêm acontecendo na Polônia, quando movimentos reacionários tomam o poder, eles procuram capturar a arte para o seu lado. Mas, sem ser totalitários, eles precisam transformar o próprio campo da arte em uma “guerra”, na tentativa de criar uma “arte nacionalista/conservadora”, mas sem poder impedir completamente a arte progressista, de outras ideologias, ou mesmo que se queira apolítica (com a ciência de que o apolítico não existe).


Em outras palavras: muito da autonomia artística depende do regime em que está inserida. Em poliarquias reais, democracias liberais consolidadas, é imprescindível que a arte seja livre. Assim, embora a arte não precise ser panfletária, é ingenuidade acreditar que ela não é ferramenta política, independente de ser autônoma ou não. Não é possível imaginar hoje arte completamente separada de outros campos do saber humano, como que imaculada.



                                                       Sérgio Schargel

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Imagens

Gianguido Bonfanti é amigo de Sérgio Schargel e foi este que indicou que as obras deste artista plástico ilustrassem a postagem.

Bonfanti (São Paulo, 1948) realiza a sua primeira exposição individual, “G. Bonfanti”, em 1967, na Galeria do Centro Cultural Lume, no Rio de Janeiro, com os desenhos produzidos durante a temporada em Roma. Recebe, em 1975, o prêmio na categoria “Desenho” no 2° Concurso Nacional de Artes Plásticas. Em 1978, começa a dar aulas de gravura e fotogravura na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV). Leciona gravura de 1980 até 1982 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Conquista o prêmio na categoria Desenho do 5º Salão Carioca de Arte do Rio de Janeiro com seus pastéis secos. Leciona, entre 1983 e 1985, desenho de modelo vivo e pintura no Museu de Arte Moderna (MAM), Rio de Janeiro. Leciona desenho e pintura, entre 1986 e 1987, na Faculdade da Cidade do Rio de Janeiro. O marchand Thomas Cohn organiza em sua galeria, Thomas Cohn Arte Contemporânea, em 1988, uma mostra individual de suas pinturas geométricas: “Bonfanti”. Obras de sua fase abstrata são organizadas por Paulo Figueiredo, na Paulo Figueiredo Galeria de Arte, em 1991, em São Paulo, na exposição “Bonfanti”. Uma grande individual é organizada, em 1996, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A Anita Schwartz Galeria, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, é inaugurada com uma exposição individual: “Bonfanti”. No mesmo ano, o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro organiza outra mostra com telas e bicos-de-pena. Exposição individual na Galerie Le Troisième Œil, em Paris, em setembro de 2005. Em 2004, o Museu de Arte Metropolitano de Curitiba (PR) organiza uma mostra individual com trinta trabalhos: “Gianguido Bonfanti”. O artista inaugura a exposição “Bonfanti, peintures et dessins”, em 2006, na Galerie Le Troisième Œil, Bordeaux (França). Em comemoração aos seus quarenta anos de trabalho, é organizada uma mostra retrospectiva, em 2007, que ocupa todo o primeiro andar do Paço Imperial, no Rio de Janeiro.


Fonte:

https://www.gianguidobonfanti.com/cronologia

(Consultada em 28/9/2020).


Fonte das imagens: imagens gentilmente cedidas pelo próprio artista.

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Ludwig van Beethoven (Bonn, Nordrhein-Westfalen, Eleitorado de Colônia [atual Alemanha], 17/12/1770 - Viena, Império Austríaco, 26 de março de 1827}, “Ode à alegria”, quarto movimento, “Allegro assai”, da Sinfonia n° 9, em ré menor, op. 125, regente Leonard Bernstein, Filarmônica de Viena.

A Sinfonia n° 9 foi composta entre 1818 e 1824 e estreou em 7 de maio de 1824, no Kärntnertortheater, em Viena.


A peça musical foi escolhida por Sérgio Schargel.


O ano de 2020 é a efeméride de 250 anos do nascimento do compositor alemão.



domingo, 28 de junho de 2020


Um dia no Rio, de Oswaldo França Júnior

A fúria da História irrompe nas ruas do Rio de Janeiro




                                          Repressão ao protesto contra a morte do estudante Édson Luís, 1968. Evandro Teixeira


 O avião pousou no Rio às oito e cinco da manhã. Antes da parada completa dos motores, Márcio se levantou da cadeira e se dirigiu para a porta. A aeromoça estava no fim do corredor e sorriu para ele. Era loura, bonita e delicada. Márcio reparou nos seus olhos e, de perto, achou que tinham um ar de promessa. Eles lhe lembraram uns outros olhos.
     - Você conhece Adelaide? - perguntou.
      - Não senhor – respondeu a aeromoça. Ela é comissária também?
      - É, e mora em São Paulo.
Ela pensou um pouco e disse:
      - Conheço muitas de São Paulo, mas com este nome não me lembro de nenhuma.
      - Ela se parece com você. Principalmente os olhos; são iguais aos seus.
A aeromoça procurou ver se localizava entre suas conhecidas uma que se chamasse Adelaide e tivesse os olhos iguais aos seus.
Mas não conseguiu. Márcio não soube dizer em qual Companhia ela trabalhava, nem seu nome completo. E a porta do avião foi aberta, a escada desceu e ele saiu. E foi pelo pátio lembrando-se dos olhos de Adelaide, olhando-o de modo sério numa noite quando dançavam em São Paulo. (pp. 5 – 6).


No dia 10 de junho de 1989 foi abreviada precocemente, aos cinquenta e dois anos, em um acidente automobilístico, a vida do ficcionista Oswaldo França Júnior (Serro, Minas Gerais, 21 de julho de 1936 – João Monlevade, Minas Gerais, 10 de junho de 1989), uma personalidade de biografia e obra singulares de nossas Letras, cuja produção literária, apesar de hoje injustificadamente pouco discutida e divulgada, gozou de muito prestígio nas décadas de sessenta a oitenta.

Ambição manifesta desde criança, França Júnior ingressou na Escola Preparatória de Cadetes do Ar, em 1953, em Barbacena – MG, e, três anos mais tarde, estava no Curso de Formação de Oficial Aviador, no Rio de Janeiro. Em 1961, o futuro autor está no centro da História: na crise política decorrente da renúncia de Jânio Quadros, os militares resistem à ideia de João Goulart assumir a Presidência da República; seu cunhado, Leonel Brizola, instala, a partir de 25 de agosto, o que ficou conhecido como a “cadeia da legalidade”: uma mobilização civil e militar para cumprimento da Constituição e, por conseguinte, para garantir a posse do Vice-presidente. França Júnior servia, na ocasião, em Porto Alegre, no Esquadrão de Combate do 14° Grupo de Aviação, cujo comandante reuniu seus subordinados e comunicou-lhes que havia ordens superiores de tentar silenciar Brizola e, no caso de insucesso, aeronaves do Esquadrão deveriam bombardear o Palácio de Governo. Como sabemos, esse bombardeio não aconteceu; uma sabotagem de sargentos acabou atrasando a operação e a dinâmica tensa do momento acabou fazendo com que os planos fossem mudados.

Veio o golpe de 1964 e o nosso autor foi arbitrariamente destituído do seu cargo de aviador, por força do Ato Institucional nº 2. Estar às voltas com a necessidade abrupta de sustentar uma família com três filhos foi, decerto, uma violência e um trauma que, a par do sofrimento causado, gestou o germe de uma literatura que se pôs a refletir, sob diversos prismas, sobre a relação instável dos indivíduos com a História e as ambivalências e brutalidades do processo de modernização pelo alto da economia e da sociedade brasileiras na segunda metade do século XX.

Para manter-se e à família, França Júnior recorreu às atividades mais diversas, como corretor de imóveis, comerciante de queijos e de banca de jornais. Envolvido com o dia a dia da luta pela sobrevivência, mesmo assim França Júnior reuniu coragem, bateu à porta de Rubem Braga, aproveitando viagem ao Rio de Janeiro, e mostrou-lhe originais de contos. O célebre cronista, que estava à frente da Editora do Autor, juntamente com Fernando Sabino e Walter Acosta, gostou do que viu, mas indagou se o escritor iniciante tinha um romance, gênero de melhor vendagem. França Júnior disse que tinha um romance em elaboração, só pendente de uns ajustes. Não era verdade. Voltou para Belo Horizonte e arrematou em pouco tempo o romance O viúvo, finalmente publicado em 1965. Curiosamente, França Júnior topou com o livro em livrarias, meses depois da conversa com Rubem Braga, sem que tivesse sido avisado da publicação. 

A sorte grande para França Júnior, contudo, veio com o seu segundo romance, Jorge, um brasileiro (Editora Bloch, 1967); concorrendo com outras 243 obras, um júri composto nada menos do que por Antonio Olinto, Jorge Amado e Guimarães Rosa concedeu o prêmio Walmap, a mais importante láurea literária da época, ao romance de França Júnior. Jorge, um brasileiro foi a estrela da sorte da constelação de obras do autor: trouxe-lhe o reconhecimento do prêmio Walmap, possibilitando que o romance fosse posteriormente publicado na Alemanha, nos Estados Unidos, na Espanha e em Cuba; o romance transformou-se, em 1978, em um Caso Especial, na TV Globo e, no ano seguinte, em uma série de sucesso, também na TV Globo, sob o nome de “Carga pesada”, com episódios semanais até 1981 e reeditada de abril de 2003 até setembro de 2007. Por fim, o romance foi vertido para o cinema, em 1988, sob a direção de Paulo Thiago.

E aqui se chega ao seu terceiro romance, Um dia no Rio, publicado no tempestuoso ano de 1969, em plena vigência do Ato Institucional nº 5, que marca um aprofundamento do Golpe de 1964, com severa restrição dos direitos e garantias individuais. Nesse romance, os leitores serão transportados para a ambiência desse período tenso da história brasileira, na forma de apenas um dia de viagem de negócios do mineiro Márcio à cidade do Rio de Janeiro.


*
Tratar do estilo narrativo de França Júnior impõe, entre outras abordagens, responder à indagação lançada por John Morris Parker:

É o caso para nos perguntarmos como, com material diegético aparentemente tão pobre e com uma linguagem tão sem adornos, França produziu textos que fascinam – e continuarão a fascinar – leitores de diversos níveis culturais” (PARKER, 1996).

Pobre” não é o termo correto a ser aplicado ao estilo da linguagem e à narrativa de França Júnior. Trata-se, antes, de uma opção intencional do autor por uma literatura ao mesmo tempo de amplitude na sua capacidade comunicativa, sem deixar de ser moderna. Melânia Silva de Aguiar conceitua o estilo dessa primeira fase da obra de França Júnior de “realismo prosaico”. (AGUIAR, 2009, p. 27)
Luiz Costa Lima, em ensaio sobre a prosa modernista, trata do “espaço mimético” nessa produção ficcional, que não deve ser confundido com o “decalque, submissão às configurações efetivas da realidade” (LIMA, 1975, p. 69). E continua o estudioso mais adiante:

No caso da prosa modernista, o mimético tinha como matéria a coloquialidade, seja em reação à ignorância purista dos gramaticoides, seja em oposição aos que helenizavam as discrepâncias tropicais. Do realce do coloquial resultava a continuidade estabelecida entre expressão literária e modos de vida e de fala populares. Atesta-o a obra de Alcântara Machado, que ainda espera seu analista, e a de Aníbal Machado.” (LIMA, 1975, p. 70, negrito nosso).

Traços de modernidade no presente romance repousam, assim, entre outros, além da citada coloquialidade, na rarefação do enredo, na compressão temporal da trama, que ocorre durante apenas um dia, a exemplo dos clássicos da modernidade Ulisses, de Joyce, e Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf e, por fim, mas não menos importante, na presença da ironia, não como um componente episódico, antes, ao contrário, como um elemento importante da construção narrativa.

É importante situar o contexto histórico de criação do romance e de sua publicação que tem reflexos tanto internos como externos à obra. Um dia no Rio foi publicado em 1969, no ano seguinte à edição, pelo regime militar então vigente, do Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968, que representou um aprofundamento do golpe militar de 1964: o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas foram fechadas por quase um ano, mandatos de parlamentares foram cassados e houve exoneração sumária de servidores públicos, inclusive membros da magistratura, suspensão de direitos políticos de cidadãos considerados subversivos e, principalmente, no que aqui nos interessa, a censura prévia às artes, à imprensa e aos meios de comunicação.

Há, portanto, um fato externo à narrativa, qual seja, a censura prévia, que inevitavelmente interferiu na criação artística, visto que uma escrita indiferente a essa contingência poderia redundar na impossibilidade de publicação da obra. A estratégia adotada pelo escritor foi criar uma personagem protagonista que está totalmente envolvida com os seus afazeres e compromissos cotidianos da sua vida privada e, com isso, vive ao largo do ruído do momento histórico. A ironia constitutiva do romance decorre justamente da constatação de impossibilidade de o indivíduo manter-se à parte da vida coletiva e muito menos incólume aos movimentos da História.

Como é corriqueiro na construção da prosa ficcional, são os contrastes e choques de valores que fazem avultar aspectos da trama e dos caracteres. Em Um dia no Rio, a ironia surge da polaridade entre os valores que regem a vida de Márcio – um pequeno empresário que se dirige ao Rio de Janeiro para compromissos de negócios – e a tensão política que está no ar.

O romance é narrado em terceira pessoa, mas pela perspectiva do seu protagonista. É evidente a forma corrosiva como foi construída essa personagem pela qual vemos desenrolar-se a trama: Márcio, apesar de casado, está o tempo todo com os olhos abertos para as mulheres em seu redor e corteja-as sistematicamente na expectativa de que possa sobrevir uma aventura; para ele, as mulheres são apenas objetos de desejo concupiscente. Esse aspecto da personalidade de Márcio é, de plano, sutilmente exposto em apenas uma frase logo no primeiro parágrafo que inicia o romance:

Márcio reparou nos seus olhos e, de perto, achou que tinham um ar de promessa. (p. 5).

A fim de expor ao leitor o perfil do protagonista, o Narrador usa o artifício de fazer, logo na página inicial do romance, com que os olhos da aeromoça que está na aeronave prestes a pousar no Rio de Janeiro sejam uma porta no tempo, para Márcio ser levado à lembrança de Adelaide, outra aeromoça, e, assim, sucede-se um longo flashback de quinze páginas em que é narrada outra viagem a negócios, em que houve uma breve aventura amorosa e extraconjugal de Márcio com essa aeromoça. Esse longo trecho em flashback também serve para evidenciar outros aspectos da personalidade nada elogiável de Márcio, ou seja, a falta de escrúpulo nos negócios, o imediatismo na busca de ganhos financeiros a qualquer custo e o machismo.

O amigo de Márcio que começou a fabricar as torneiras, interrrompeu logo a fabricação. Elas rachavam com muita facilidade. Bastava que a pressão da água subisse um pouco. Márcio estava querendo um homem que espalhasse vendedores convencidos de que aquelas torneiras é que os tornariam ricos. Aquela era uma boa oportunidade para ganharem muito dinheiro. Mesmo que não desse certo, como não deu, pelos menos as vendas feitas de início dariam algum lucro. (pp. 10 – 11).

Márcio, em suma, é um pequeno burguês de classe média, de valores morais elásticos, ao sabor de seus interesses e instintos, tanto em sua vida pessoal como nos negócios.

O romance é um texto contínuo, sem capítulos; apesar disso, identificam-se três partes da narrativa: a primeira delas percorre desde a chegada de Márcio ao Rio, vindo de Belo Horizonte, o breve encontro com o irmão Lúcio, que reside no Rio de Janeiro, e, após, isso, seguem-se outros encontros de negócios até Márcio voltar ao escritório onde está Lúcio, para irem almoçar. A segunda parte é o clímax do romance: após o almoço de Márcio com o irmão, eles saem à rua e são envolvidos no tumulto nas ruas do centro da cidade em decorrência de manifestações políticas promovidas pelo movimento estudantil em oposição ao regime militar. A última parte é um breve epílogo, com a volta de Márcio para Belo Horizonte.

Como se vê, o enredo, como antes assinalamos, é rarefeito, mas França Júnior demonstra uma grande habilidade narrativa por uma composição de virtudes de ficcionista nato que tornam a leitura sedutora e envolvente, ao mesmo tempo que constroi uma literatura refinada, na forma como será exposto, a seguir, sinteticamente.


                                                     Passeata dos cem  mil, 26/6/1968. Evandro Teixeira.


 Na primeira parte, na narração do deslocamento de Márcio pelos sucessivos compromissos de negócios, há um refreamento proposital da ação, visando preparar o leitor para o clímax da segunda parte, por meio de detalhes das conversas de Márcio ou por narrativas interpoladas em flashback, qual seja, recordações que a personagem principal faz de acontecimentos pretéritos.
No exemplo, a seguir, o momento banal de espera diante de um elevador projeta a memória de Márcio para um “causo” ocorrido com um amigo:

O elevador era velho e tinha em cima, perto do teto, e em baixo, no rodapé, uns desenhos de ferro que deixavam ver as divisões dos andares passando. Márcio desviou os olhos daqueles buracos porque a sensação de velocidade que davam era desagradável. E calculou o que devia ter passado um seu amigo que se chamava Rogério e que resolveu montar um atelier de costura em duas salas que ficavam no vigésimo-primeiro andar no Edifício Acaiaca, em Belo Horizonte. Ele era muito caprichoso e entendia de decorações. E quando resolveu montar o atelier, decidiu que seria o melhor de Belo Horizonte. A disposição e o arranjo seriam para marcar época. Durante muito tempo desenhou e pensou como ia fazer. Escolheu cada coisa com muito cuidado. As cortinas seriam grandes. Haveria luzes e espelhos em vários lugares e os tapetes iam acompanhar as voltas dos estrados que variavam de altura, subindo e descendo em rampas que eram “passarelas”. As cortinas correriam em varetas estendidas por todo o teto e seriam presas em argolas coloridas. Ele mandou tirar a parede que separava as duas salas para que elas formassem um salão. Mas surgiu um problema. No elevador não cabiam as varetas onde correriam as cortinas. Os biombos para as mulheres trocarem de roupa também eram feitos de varetas amarradas umas nas outras, e não cabiam nos elevadores. Nem pela escada dava para subir. As varetas eram compridas e não faziam as curvas. Rogério decidiu levá-las, carregando-as por fora do elevador. Ele possuía uma abertura no teto e as varetas e as paredes dos biombos passariam por ali. Rogério teria apenas que ir segurando-as. Ele se firmaria no cabo e não haveria perigo. (…) Naquele mesmo dia à noite, Márcio se encontrou com ele e ele ainda estava assustado. Márcio perguntou o que havia acontecido e ele disse:
      - Quase morro. Horrível! (pp. 24 – 25).

Outro recurso narrativo que chama a atenção é a técnica do “crescendo”, expressão que aqui tomamos de empréstimo da notação musical. Rompendo a enganosa banalidade do dia atarefado do nosso homem de negócios, o Narrador introduz sinais crescentes do furor da História que ronda o mundo de Márcio e nele se infiltra, apesar da indiferença deste. Nesses momentos, o romance, em sua primeira parte e em transição para o clímax que se seguirá, atinge altos momentos de ironia que, muitas vezes, tangencia o cômico, tal é a forma como Márcio está encasulado no seu pequeno mundo e nos seus valores reificados.

Da esquina veio uma gritaria. Márcio olhou e a turma de rapazes e moças estava pulando e gritando, todos muito satisfeitos, levantando os braços. Mas deixaram de pular e gritar, e voltaram a correr, fugindo de alguma coisa que vinha pela Rua da Quitanda. Joel puxou Márcio em direção à mesa e pegou uma pasta de papeis para lhe mostrar um estudo que havia terminado na véspera, sobre a viabilidade da implantação de uma fábrica de margarina em Caxias, no Estado do Rio. Mostrou a pesquisa realizada no mercado de toda a área, com os consumos de manteiga e de pão. Falou, mostrando as figuras e os desenhos, do tempo que levou procurando o tipo mais econômico de embalagem. Estudou lata quadrada, redonda, sextavada. Embalagem de plástico duro, mole. Em tubos. Estudou as cores que podiam ser utilizadas; e falava com tanto entusiasmo que Márcio achou que ele estava mais satisfeito com o trabalho que havia realizado do que com o dinheiro que aquilo podia lhe render. Cézar tornou a chamá-los. Eles foram até a janela. Uma nuvem de fumaça branca crescia, saindo da Rua da Quitanda e se espalhando pela esquina. Não se viam mais os rapazes e as moças. A esquina estava sem ninguém. Cézar falou que a nuvem era de gás lacrimogênio. Ele estava animado, calculando a quantidade de bombas que deviam ter jogado para fazer uma nuvem daquele tamanho.
      - Devem ter soltado mais de dez bombas – falou, mordendo os nós dos dedos.
Márcio lembrou ao Joel que precisava ir ao Cartório. Ele disse que já estavam saindo e falou da falta de visão do empresário que havia mandado fazer o estudo sobre a margarina. (pp. 74 – 75).

No trecho acima, observe-se, ademais, a ironia adicional em: “falou da falta de visão do empresário”.

A segunda parte do romance tem início após o almoço de Márcio com Lúcio. Eles saem à rua e já encontram um clima de muita tensão.

Quando chegaram em baixo no hall, sentiram os olhos arderem um pouco e Márcio se lembrou do gás. O hall estava vazio e as portas do prédio estavam fechadas. Do lado de dentro, como se fosse um porteiro, havia um homem com um lenço no nariz. Ele abriu as portas o necessário apenas para que os dois passassem. Márcio perguntou o que havia e o homem falou que era para não deixar que invadissem ali. Márcio ia fazer um comentário com Lúcio, mas não fez.
A Avenida estava mais cheia de gente ainda. Perto da Rua do Ouvidor um rapaz discursava em pé sobre uma coisa que pela distância não dava para se saber o que era. Márcio disse que ia falar com uma pessoa “ali na Senador Dantas”. Falou convidando Lúcio a acompanhá-lo. Lúcio não respondeu. (pp. 135 – 136).

Repare-se, dirigindo-se ao funcionário do prédio, no desconhecimento que se revela em Márcio sobre as razões que levam ao estremecimento do cotidiano: “Márcio perguntou o que havia”.

Pois os sinais de instabilidade que vinham se anunciando no morno dia de negócios de Márcio e de seus interlocutores levam, a partir desse momento, a uma abrupta cesura. O centro do Rio de Janeiro torna-se palco de uma verdadeira batalha campal entre os estudantes, moços e moças, de um lado, e, de outro, as forças de segurança.

Do alto dos prédios veio uma grande vaia. Um outro rapaz falava para arrastarem “esses motores aqui”. Alguns o obedeceram e arrastaram os compressores e os geradores, e os colocaram numa posição em que dava para se esconderem. Os soldados vieram e quando chegaram perto, o rapaz de cima do gerador gritou
      - É agora!
E todos jogaram tijolos, e pedras e placas de asfalto para cima dos soldados. Um dos tijolos bateu na mão de um, e ele largou o fuzil e se encolheu segurando a mão machucada. Márcio procurou Lúcio e o viu junto de uma árvore, abaixado ao lado de uma das máquinas. Estava ele e mais três rapazes que levavam atiradeiras de borracha na mão. Márcio foi para perto deles. Os soldados começaram a recuar dos dois lados. Palmas e vivas vieram das janelas dos edifícios. (p. 140).

Curiosamente, França Júnior declarou, em reportagem no Jornal do Brasil, de 5 de maio de 1978, que não aceitou assessorar a criação do roteiro para o filme “Jorge, um brasileiro”, baseado em seu romance-homônimo, porque era diferente “escrever para ser visto”. Nada mais estranho, pois a escrita do autor é dotada de grande visualidade, que, no presente romance, atinge o seu ápice na segunda parte, com as impressionantes cenas de confronto entre os estudantes e as forças repressivas, nas quais há até mesmo técnicas de montagem emprestadas da linguagem cinematográfica, a que se adicionam recursos de sinestesia, compondo cenas de grande dramaticidade.

Para se ter a exata medida do valor dessa obra literária é preciso, contudo, que o leitor faça o exercício de transpor-se para o ano de 1969, quando o país estava assombrado pela ruptura da normalidade democrática e, em meio a esse clima, França Júnior compôs um romance corajoso, de estrutura criativa, alternando o micro e o macrossocial, e, além do mais, de grande senso de oportunidade, ousando a tarefa, que em arte é muito difícil, de retratar a história a quente, no calor dos acontecimentos. 
 
Por vias tortas, a História nos legou um grande escritor.


                                                                                Oswaldo França Júnior

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Referências bibliográficas

AGUIAR, Melânia Silva de. “O prosaico e o alegórico na ficção de Oswaldo França Júnior”. Suplemento Literário, Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, outubro/2009, edição 1.325.

Luiz Costa Lima, “Ficção: as linguagens do modernismo”, In: ÁVILA, Affonso (org.). O modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1975.

PARKER, John Morris. “Técnica narrativa em Oswaldo França Júnior”. Boletim do Centro de Estudos Portugueses, Universidade Federal de Minas Gerais, v. 16, n° 20, janeiro – dezembro/1996.

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Edição utilizada:
FRANÇA JÚNIOR, Oswaldo. Um dia no Rio. Rio de Janeiro: Sabiá, 1969. 187 pp.. Brochura, 14x21cm. Capa: Marius Lauritzen Bern. Exemplar n° 2900, autografado pelo autor com dedicatória para Nelly Novaes Coelho: “com minha admiração pelo muito que vem conseguindo para esta nossa sofrida literatura, França Júnior, Belo Ht - 1976”.

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Imagens
Cavalaria da Polícia Militar reprime manifestação dos estudantes, em 4 de abril de 1968, na Candelária, Rio de Janeiro, em protesto contra a morte do estudante Édson Luís. Foto Evandro Teixeira (Irajuba, Bahia, Brasil, 1935).
Fonte: https://utopica.photography/pt/artistas/evandro-teixeira/nggallery/thumbnails/

Passeata dos cem mil, Rio de Janeiro - RJ, 26/6/1968. Essa foto de Evandro Teixeira, à época fotojornalista do Jornal do Brasil, foi censurada e só foi publicada quinze anos depois em seu livro Fotojornalismo.  Evandro Teixeira é fotógrafo de obra reconhecida internacionalmente. Em homenagem ao artista, Carlos Drummond de Andrade escreveu, em seu livro Amar se aprende amando (1985), o poema "Diante das fotos de Evandro Teixeira":

A pessoa, o lugar, o objeto
estão expostos e escondidos
ao mesmo tempo, sob a luz,
e dois olhos não são bastantes
para captar o que se oculta
no rápido florir de um gesto.

É preciso que a lente mágica
enriqueça a visão humana
e do real de cada coisa
um mais seco real extraia
para que penetremos fundo
no puro enigma das imagens.

Fotografia — é o codinome
da mais aguda percepção
que a nós mesmos nos vai mostrando,
e da evanescência de tudo
edifica uma permanência,
cristal do tempo no papel.

 Das lutas de rua no Rio
em 68, que nos resta,
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras,
tão vivas hoje como então,
a lembrar como exorcizar?

Marcas de enchente e de despejo,
o cadáver insepultável,
o colchão atirado ao vento,
a lodosa, podre favela,
o mendigo de Nova York,
a moça em flor no Jóquei Clube,

Garrincha e Nureyev, dança
de dois destinos, mães-de-santo
na praia-templo de Ipanema,
a dama estranha de Ouro Preto,
a dor da América Latina,
mitos não são, pois que são fotos.

Fotografia: arma de amor,
de justiça e conhecimento,
pelas sete partes do mundo,
viajas, surpreendes, testemunhas
a tormentosa vida do homem
e a esperança de brotar das cinzas.



Fonte: Fonte: https://utopica.photography/pt/artistas/evandro-teixeira/nggallery/thumbnails/


Branca Maria de Paula: Oswaldo França Júnior
Fonte: cartografosdavertigemurbana.wordpress.com

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Eunice Katunda (Rio de Janeiro - RJ, Brasil, 14/3/1915 - São José dos Campos - SP, Brasil, 3/8/1990), "Brasília",Orquestra Sinfônica Nacional - UFF, regência Lígia Amadio, solista Geílson Santos, Coral Brasil Ensemble sob a condução de Maria José Chevitarese, apresentação no Cine Art UFF, Niteroi - RJ, Brasil, 2007.