Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch
Testemunhos sobre a maior catástrofe tecnológica do séc. XX
Fotos
dos trabalhadores que atuaram na Central Elétrica de Tchernóbil
logo após as explosões. Museu Tchernóbil, Kiev
Das alturas, a quantidade de máquinas era surpreendente: helicópteros pesados e médios. O MI-24 é um helicóptero de combate. O que se podia fazer com um helicóptero de combate em Tchernóbil? Ou com um caça MI-2? Os pilotos, todos eram jovens... E ali estavam, no bosque, junto ao reator, recebendo roentgen. Ordens! Ordens militares! Mas para que enviar até lá tamanha quantidade de gente para se contaminar? Para quê? (Passa a gritar.) Faltavam especialistas e não material humano.
De cima... podíamos ver um prédio destruído, montes de cacarecos despedaçados. E uma quantidade gigantesca de pequenas figuras humanas. Havia um guindaste da Alemanha Federal, mas morto; percorreu um pouco o teto e morreu. Os robôs morriam. Os nossos robôs foram construídos pelo acadêmico Lukatchóv para explorar Marte. Havia também robôs japoneses com aparência humana. Mas via-se que queimavam por dentro devido à alta radiação. Por outro lado, os soldadinhos correndo nos seus trajes e luvas de borracha, estes funcionavam. Tão pequenos, vistos do céu.
Eu me lembro de tudo, pensava no que contar ao meu filho. Mas quando voltei, ele perguntou: “Papai, o que aconteceu lá?”.
“Uma guerra.” Não encontrei outra palavra. (Do capítulo: “Coro de soldados”, pp. 121-122).
*
Às
1h23min58s do dia 26 de abril de 1985, duas explosões destruíram o
reator e o prédio do quarto bloco da Central Elétrica Nuclear de
Tchernóbil, uma cidade na região central da Ucrânia e a 110 km da
capital, Kiev. Seguiram-se outras explosões em decorrência da
liberação de vapor, lançando na atmosfera 50 x 10
elevado à sexta potência Ci de radionuclídeos. Belarús foi o país
mais atingido: 23% do seu território está contaminado por
radionuclídeos de densidade superior a 1 Ci/km2 de césio-137, em
comparação com 4,8% da Ucrânia e 0,5% da Rússia.
Foi
o maior desastre nuclear do século XX não associado a uma guerra.
As
autoridades da antiga União Soviética esconderam a tragédia, até
que, dois dias depois, técnicos da Suécia, a 1.600km de distância,
detectaram níveis anormais de radiatividade que, pelas suas
observações, provinham da URSS e exigiram uma manifestação dos
soviéticos.
Níveis
elevados de radiação eram observados, no dia 29, na Polônia e na
Alemanha, na Áustria e na Romênia; no dia 30, na Suíça e no norte
da Itália; nos dias 1°
e 2 de maio, na França, na Bélgica, na Holanda, na Grã-Bretanha e
no norte da Grécia e no Japão; no dia 3, em Israel, no
Kuwait e na Turquia; no dia 4, na China; no dia 5, na Índia; nos
dias 5 e 6, nos EUA e no Canadá.
Nos
dias e semanas seguintes, cento e trinta e cinco mil pessoas foram
evacuadas de Tchernóbil, de Prípiat – cidade nas proximidades,
surgida nos anos setenta, quando começou a ser construída a Central
nuclear, e que abrigava os cientistas, técnicos e demais
trabalhadores da Central – e das aldeias da região, num raio de
trinta quilômetros de Tchernóbil. Todas essas localidades
tornaram-se regiões-fantasma.
Trinta
e um bombeiros e outros trabalhadores morreram no dia da explosão. A
quantidade total de vítimas que morreram nos dias, semanas e anos
seguintes, de pessoas que desenvolveram doenças associadas à
radiação e de bebês que nasceram com deformidades é motivo de
controvérsia. Há dez anos atrás, o Relatório TORCH (“The other
report on Tchernobil”) estimou entre 30 a 60 mil a quantidade de
vítimas fatais de câncer, aos quais ainda seria necessário incluir
as vítimas de outras patologias associadas ao acidente, como
cataratas e moléstias cardiovasculares (1).
Cerca
de trezentos e quarenta mil militares foram destacados após o
acidente e nos meses seguintes, juntamente com uma outra quantidade
de civis, voluntários ou convocados – conhecidos como
“liquidadores” -, para atuar nos trabalhos de descontaminação.
Os mais sacrificados foram os três mil e seiscentos que passaram
pelo teto do reator, na ação emergencial para conter o vazamento de
material radiativo. Todas essas pessoas não tinham proteção
adequada.
Não
bastasse, por si só, a
magnitude do evento, a catástrofe adquire uma outra dimensão
histórica, se se entende que, pela sua extensão e pela forma como
escancarou as contradições do regime, Tchernóbil foi um fator
acelerador da decomposição do bloco soviético e, consequentemente,
do socialismo real que lhe dava a base ideológica.
*
Os
valores e a natureza do regime soviético e, por fim, o seu declínio
e dissolução, a maior utopia do século XX, foram objeto da
investigação de toda uma vida da jornalista e escritora Svetlana
Aleksiévtich (Ivano-Frankovsk, Ucrânia, 31/5/1948) (pronuncia-se
aproximadamente “Izvêtlana Aléksievitch”), que foi viver na
Bielorrússia depois que o seu pai terminou o serviço militar.
A Academia Sueca reconheceu
a importância dos documentos históricos produzidos pela jornalista
e escritora ucraniana, outorgando-lhe, em 2015, o
Prêmio Nobel de Literatura. Por ocasião do anúncio,
a secretária da Academia divulgou nota, em que consta a descrição
da escrita de Svetlana Aleksiévtich como “um monumento ao
sofrimento e à coragem no nosso tempo”.
Na
trilha do gênero que o bielorusso Alés Adamóvitch (1927 – 1994),
seu professor e inspirador, denominou de “romance coletivo” ou
“coro épico”, Svetlana Aleksiévitch optou por fazer a sua
investigação sobre a grande História na forma de coleta de
depoimentos e testemunhos – a pequena História ou o fragmento
vivido - de homens e mulheres que viveram os eventos.
E
assim é em Vozes de
Tchernóbil:
o livro consiste tão somente nos relatos dos militares,
liquidadores, burocratas (poucos), cientistas, mães e camponeses que
participaram ou foram atingidos pelas consequências da catástrofe,
coletados dez anos após o acidente. Com a única exceção de um
breve capítulo em que a autora faz, originalmente, uma entrevista
consigo mesma.
No
decorrer da leitura, o intento da autora atinge o seu efeito sobre o
leitor: o coro de vozes compõe, crescentemente e por fim, um painel
do cotidiano e dos valores que moviam o homem soviético, permitindo
entrever, não obstante a fé no regime continuasse viva e vigorosa
na consciência do homem e da mulher comuns, as fissuras no regime
que o episódio Tchernóbil pôs a nu.
A
conjunção de tudo isso, numa escala trágica muito alargada, em
adição ao fato de que as pessoas estavam, a todo momento,
bombardeadas pela propaganda do regime – a ameaça potencial do
inimigo, dos sabotadores, dos espiões etc – deixa, em muitos dos
narradores que aparecem na obra, uma sensação de impotência para
entender e categorizar a violenta ruptura que estava acontecendo em
suas vidas, uma vez que, agora, o suposto inimigo era invisível e
silencioso e, apesar disso, levando à morte ou a graves moléstias
seus entes queridos e expulsando-os bruscamente da terra onde viviam
seus ascendentes desde tempos imemoriais.
A nossa mãe nos ensinava: “Vocês têm que aprender isso, crianças. Eu também aprendi com a minha mãe”. A gente bebia suco de bétula e de bordo: beriózovik e klenóvik. Púnhamos a vagem sem debulhar no caldeirão de ferro e cozinhávamos no fogão grande. Fazíamos geleias de frutas silvestres... E durante a guerra, a gente colhia urtigas, espinafre da montanha e outras ervas. O corpo inchava de fome, mas não dava para morrer. Havia frutas no bosque, havia cogumelos... E agora essa vida, tudo está destruído. E a gente pensava que tudo aquilo era indestrutível, que seria assim para sempre. Que tudo que se cozinhava na panela era eterno. Eu nunca acreditaria que isso ia mudar.
Anna Petróvna Badáieva, residente na zona contaminada (p. 85).
Svetlana
Aleksiévtich
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(1)
Cf. “Lobbies obscurecem dimensão de Tchernobil”, Herve Kempf, do
Le Monde, Folha de S. Paulo, 26/4/2006, caderno Mundo, p. 14.
As
páginas das citações correspondem à edição da obra no Brasil:
Svetlana
ALIEKSIÉITCH – Vozes de
Tchernóbil - crônica
do futuro. Trad. do russo
Sônia Branco, São Paulo, Companhia das Letras, 2016 (383 pp.,
brochura, 14 x 21cm, ISBN 978-85—359-2708-5; apêndice: “A
batalha perdida”, discurso proferido pela autora em 7 de dezembro
de 2015, na Academia Sueca, Estocolmo, em cerimônia do Prêmio Nobel
de Literatura).
Orig.:
Чернобыльская
молитва. Moscou,
Ostozhye, 1997.
A
Companhia das Letras já publicou da autora também:
__________
- A guerra não tem
rosto de mulher.
Trad. Cecília Rosas, 2016 (392 pp.).
__________
- O fim do homem
soviético.
Trad. Lucas Simone, 2016 (600 pp.).
Svetlana
Aleksiévitch esteve no Brasil em 2016, participando, entre outras
atividades, da FLIP – Feira Literária Internacional de Paraty.
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Imagens:
Trabalhadores
de Tchernóbil:
https://www.theatlantic.com/photo/2011/03/the-chernobyl-disaster-25-years-ago/100033/
Svetlana
Aleksiévitch:
http://www.alexievich.info/PhotsEN.html
“Três
hinos sacros” (1983 – 1984), de Alfred Schnittke (Engels, Rússia,
1934 – Hamburgo, Alemanha, 1998), na interpretação do Sofia
Vokalensemble, em apresentação de 12 de outubro de 2014.