domingo, 5 de março de 2017


Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch

Testemunhos sobre a maior catástrofe tecnológica do séc. XX

 



Fotos dos trabalhadores que atuaram na Central Elétrica de Tchernóbil logo após as explosões. Museu Tchernóbil, Kiev


Das alturas, a quantidade de máquinas era surpreendente: helicópteros pesados e médios. O MI-24 é um helicóptero de combate. O que se podia fazer com um helicóptero de combate em Tchernóbil? Ou com um caça MI-2? Os pilotos, todos eram jovens... E ali estavam, no bosque, junto ao reator, recebendo roentgen. Ordens! Ordens militares! Mas para que enviar até lá tamanha quantidade de gente para se contaminar? Para quê? (Passa a gritar.) Faltavam especialistas e não material humano.

De cima... podíamos ver um prédio destruído, montes de cacarecos despedaçados. E uma quantidade gigantesca de pequenas figuras humanas. Havia um guindaste da Alemanha Federal, mas morto; percorreu um pouco o teto e morreu. Os robôs morriam. Os nossos robôs foram construídos pelo acadêmico Lukatchóv para explorar Marte. Havia também robôs japoneses com aparência humana. Mas via-se que queimavam por dentro devido à alta radiação. Por outro lado, os soldadinhos correndo nos seus trajes e luvas de borracha, estes funcionavam. Tão pequenos, vistos do céu.

Eu me lembro de tudo, pensava no que contar ao meu filho. Mas quando voltei, ele perguntou: “Papai, o que aconteceu lá?”.

Uma guerra.” Não encontrei outra palavra. (Do capítulo: “Coro de soldados”, pp. 121-122).


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Às 1h23min58s do dia 26 de abril de 1985, duas explosões destruíram o reator e o prédio do quarto bloco da Central Elétrica Nuclear de Tchernóbil, uma cidade na região central da Ucrânia e a 110 km da capital, Kiev. Seguiram-se outras explosões em decorrência da liberação de vapor, lançando na atmosfera 50 x 10 elevado à sexta potência Ci de radionuclídeos. Belarús foi o país mais atingido: 23% do seu território está contaminado por radionuclídeos de densidade superior a 1 Ci/km2 de césio-137, em comparação com 4,8% da Ucrânia e 0,5% da Rússia.



Foi o maior desastre nuclear do século XX não associado a uma guerra.



As autoridades da antiga União Soviética esconderam a tragédia, até que, dois dias depois, técnicos da Suécia, a 1.600km de distância, detectaram níveis anormais de radiatividade que, pelas suas observações, provinham da URSS e exigiram uma manifestação dos soviéticos.



Níveis elevados de radiação eram observados, no dia 29, na Polônia e na Alemanha, na Áustria e na Romênia; no dia 30, na Suíça e no norte da Itália; nos dias 1° e 2 de maio, na França, na Bélgica, na Holanda, na Grã-Bretanha e no norte da Grécia e no Japão; no dia 3, em Israel, no Kuwait e na Turquia; no dia 4, na China; no dia 5, na Índia; nos dias 5 e 6, nos EUA e no Canadá.



Nos dias e semanas seguintes, cento e trinta e cinco mil pessoas foram evacuadas de Tchernóbil, de Prípiat – cidade nas proximidades, surgida nos anos setenta, quando começou a ser construída a Central nuclear, e que abrigava os cientistas, técnicos e demais trabalhadores da Central – e das aldeias da região, num raio de trinta quilômetros de Tchernóbil. Todas essas localidades tornaram-se regiões-fantasma.



Trinta e um bombeiros e outros trabalhadores morreram no dia da explosão. A quantidade total de vítimas que morreram nos dias, semanas e anos seguintes, de pessoas que desenvolveram doenças associadas à radiação e de bebês que nasceram com deformidades é motivo de controvérsia. Há dez anos atrás, o Relatório TORCH (“The other report on Tchernobil”) estimou entre 30 a 60 mil a quantidade de vítimas fatais de câncer, aos quais ainda seria necessário incluir as vítimas de outras patologias associadas ao acidente, como cataratas e moléstias cardiovasculares (1).



Cerca de trezentos e quarenta mil militares foram destacados após o acidente e nos meses seguintes, juntamente com uma outra quantidade de civis, voluntários ou convocados – conhecidos como “liquidadores” -, para atuar nos trabalhos de descontaminação. Os mais sacrificados foram os três mil e seiscentos que passaram pelo teto do reator, na ação emergencial para conter o vazamento de material radiativo. Todas essas pessoas não tinham proteção adequada.



Não bastasse, por si só, a magnitude do evento, a catástrofe adquire uma outra dimensão histórica, se se entende que, pela sua extensão e pela forma como escancarou as contradições do regime, Tchernóbil foi um fator acelerador da decomposição do bloco soviético e, consequentemente, do socialismo real que lhe dava a base ideológica.



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Os valores e a natureza do regime soviético e, por fim, o seu declínio e dissolução, a maior utopia do século XX, foram objeto da investigação de toda uma vida da jornalista e escritora Svetlana Aleksiévtich (Ivano-Frankovsk, Ucrânia, 31/5/1948) (pronuncia-se aproximadamente “Izvêtlana Aléksievitch”), que foi viver na Bielorrússia depois que o seu pai terminou o serviço militar.



A Academia Sueca reconheceu a importância dos documentos históricos produzidos pela jornalista e escritora ucraniana, outorgando-lhe, em 2015, o Prêmio Nobel de Literatura. Por ocasião do anúncio, a secretária da Academia divulgou nota, em que consta a descrição da escrita de Svetlana Aleksiévtich como “um monumento ao sofrimento e à coragem no nosso tempo”.



Na trilha do gênero que o bielorusso Alés Adamóvitch (1927 – 1994), seu professor e inspirador, denominou de “romance coletivo” ou “coro épico”, Svetlana Aleksiévitch optou por fazer a sua investigação sobre a grande História na forma de coleta de depoimentos e testemunhos – a pequena História ou o fragmento vivido - de homens e mulheres que viveram os eventos.



E assim é em Vozes de Tchernóbil: o livro consiste tão somente nos relatos dos militares, liquidadores, burocratas (poucos), cientistas, mães e camponeses que participaram ou foram atingidos pelas consequências da catástrofe, coletados dez anos após o acidente. Com a única exceção de um breve capítulo em que a autora faz, originalmente, uma entrevista consigo mesma.



No decorrer da leitura, o intento da autora atinge o seu efeito sobre o leitor: o coro de vozes compõe, crescentemente e por fim, um painel do cotidiano e dos valores que moviam o homem soviético, permitindo entrever, não obstante a fé no regime continuasse viva e vigorosa na consciência do homem e da mulher comuns, as fissuras no regime que o episódio Tchernóbil pôs a nu.



A conjunção de tudo isso, numa escala trágica muito alargada, em adição ao fato de que as pessoas estavam, a todo momento, bombardeadas pela propaganda do regime – a ameaça potencial do inimigo, dos sabotadores, dos espiões etc – deixa, em muitos dos narradores que aparecem na obra, uma sensação de impotência para entender e categorizar a violenta ruptura que estava acontecendo em suas vidas, uma vez que, agora, o suposto inimigo era invisível e silencioso e, apesar disso, levando à morte ou a graves moléstias seus entes queridos e expulsando-os bruscamente da terra onde viviam seus ascendentes desde tempos imemoriais.



A nossa mãe nos ensinava: “Vocês têm que aprender isso, crianças. Eu também aprendi com a minha mãe”. A gente bebia suco de bétula e de bordo: beriózovik e klenóvik. Púnhamos a vagem sem debulhar no caldeirão de ferro e cozinhávamos no fogão grande. Fazíamos geleias de frutas silvestres... E durante a guerra, a gente colhia urtigas, espinafre da montanha e outras ervas. O corpo inchava de fome, mas não dava para morrer. Havia frutas no bosque, havia cogumelos... E agora essa vida, tudo está destruído. E a gente pensava que tudo aquilo era indestrutível, que seria assim para sempre. Que tudo que se cozinhava na panela era eterno. Eu nunca acreditaria que isso ia mudar.



Anna Petróvna Badáieva, residente na zona contaminada (p. 85).


                               
                          Svetlana Aleksiévtich
 
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(1) Cf. “Lobbies obscurecem dimensão de Tchernobil”, Herve Kempf, do Le Monde, Folha de S. Paulo, 26/4/2006, caderno Mundo, p. 14.


As páginas das citações correspondem à edição da obra no Brasil:
Svetlana ALIEKSIÉITCH – Vozes de Tchernóbil - crônica do futuro. Trad. do russo Sônia Branco, São Paulo, Companhia das Letras, 2016 (383 pp., brochura, 14 x 21cm, ISBN 978-85—359-2708-5; apêndice: “A batalha perdida”, discurso proferido pela autora em 7 de dezembro de 2015, na Academia Sueca, Estocolmo, em cerimônia do Prêmio Nobel de Literatura).
Orig.: Чернобыльская молитва. Moscou, Ostozhye, 1997.

A Companhia das Letras já publicou da autora também:
__________ - A guerra não tem rosto de mulher. Trad. Cecília Rosas, 2016 (392 pp.).

__________ - O fim do homem soviético. Trad. Lucas Simone, 2016 (600 pp.).

Svetlana Aleksiévitch esteve no Brasil em 2016, participando, entre outras atividades, da FLIP – Feira Literária Internacional de Paraty.

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Imagens:
Trabalhadores de Tchernóbil:
https://www.theatlantic.com/photo/2011/03/the-chernobyl-disaster-25-years-ago/100033/

Svetlana Aleksiévitch:
http://www.alexievich.info/PhotsEN.html

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Três hinos sacros” (1983 – 1984), de Alfred Schnittke (Engels, Rússia, 1934 – Hamburgo, Alemanha, 1998), na interpretação do Sofia Vokalensemble, em apresentação de 12 de outubro de 2014.