Úrsula,
de Maria Firmina dos Reis
Mulher,
negra e pioneira na literatura brasileira
"Tropical", Anita Malfatti
São vastos e belos os nossos campos; porque inundados pelas torrentes do inverno semelham o oceano em bonançosa calma — branco lençol de espuma, que não ergue marulhadas ondas, nem brame irado, ameaçando insano quebrar os limites, que lhe marcou a onipotente mão do rei da criação. Enrugada ligeiramente a superfície pelo manso correr da viração, frisadas as águas, aqui e ali, pelo volver rápido e fugitivo dos peixinhos, que mudamente se afagam, e que depois desaparecem para de novo voltarem — os campos são qual vasto deserto, majestoso e grande como o espaço, sublime como o infinito.
Em
novembro de 2017, ocorreu a efeméride
de cem anos da
morte da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (São
Luís, Maranhão, Brasil, 11/10/1825 – Guimarães, Maranhão, Brasil, 11/11/1917).
Filha
de mãe negra e pai branco, exerceu o magistério na Instrução
Primária de 1847 a 1881.
Em
1859, publicou o romance Úrsula (Tipografia
do Progresso, São Luís), que é considerado, em nossas
Letras, o primeiro romance escrito por uma mulher e também o
primeiro romance abolicionista. Por causa dos preconceitos da época,
o nome da autora não apareceu na publicação e a autoria foi dada
sumariamente como “Por uma maranhense”.
A
redescoberta dessa obra deve-se ao obstinado pesquisador paraibano
Homero de Almeida (1896 – 1983), que adquiriu por acaso, no final
da década de sessenta, um exemplar da edição de 1859 do romance
Úrsula – em verdade, o único conhecido. Foi somente em
meados dos anos setenta que, empenhado em fixar qual seria o primeiro
livro escrito e publicado por uma mulher na literatura brasileira,
Homero de Almeida retomou a investigação sobre a obra e, por meio
de consultas a outros estudiosos, chegou ao nome da autora. Assim,
Homero de Almeida constatou, para sua surpresa, que essa mulher
pioneira era igualmente negra. O pesquisador gentilmente doou esse
único exemplar conhecido ao Governo do Maranhão e, com base nele,
publicou-se, em 1975, uma nova edição – fac-similada - do
romance.
Coube
a Nascimento Morais Filho (1922 – 2009) dar prosseguimento às
pesquisas sobre a vida e a obra de Maria Firmina dos Reis, do que
resultou a catalogação das outras obras publicadas pela autora,
seja em livros, seja pela sua atuação na imprensa. Morais Filho
publicou, ademais, a primeira biografia da artista: Maria
Firmina, fragmentos de uma vida (Imprensa do Governo do
Maranhão, 1975).
Maria
Firmina era prima do escritor e gramático Francisco Sotero dos Reis
(1800 – 1871).
A
escritora fundou em Guimarães a primeira escola mista do Brasil; tal
ousadia teve como consequência pressões e protestos, do que era
considerado como uma ousadia, e, por causa disso, o estabelecimento
teve que ser fechado após dois anos.
Maria
Firmina publicou também: o romance Gupeva, de temática
indígena(1861/1862); o livro de poemas Cantos à beira-mar
(Tipografia do País, 1871) e o conto “A escrava” (A Revista
Maranhense no. 3, 1887), afora publicações esparsas na imprensa.
Compôs ainda letra e música do “Hino da libertação dos
escravos” (1888).
Em
setembro último, a Editora da PUC Minas publicou uma nova edição
do romance Úrsula e está
disponível na rede mundial uma edição digital dessa mesma obra
pela “Coleção Acervo Brasileiro”, dos Cadernos do Mundo Inteiro
(www.cadernosdomundointeiro.com.br).
Desde
a redescoberta de Maria Firmina dos Reis, por obra e méritos dos
pesquisadores Homero de Almeida e Nascimento Morais Filho, a vida e a
obra da escritora têm, crescentemente, sido de objeto de estudos na
Universidade; pode-se dizer, assim, que a autora já tem alguma
fortuna crítica, por meio de dissertações,
prefácios,
artigos em revistas especializadas, ensaios e comunicações em
Congressos.
O
crescente interesse da Academia, contudo, não se reproduziu ainda
para o cidadão e a cidadã não
integrados à Universidade, mas
interessados em literatura, cultura e história brasileiras,
feminismo e história do negro no Brasil.
É
necessário, pois,
investigar e sanar, urgentemente, o apagamento da obra de Maria
Firmina da história da literatura e da cultura brasileiras. Sob
esse prisma, é
de se perguntar: como isso
foi possível? Ressalte-se
que, se o acaso não tivesse
brilhado a Homero de Almeida, levando às suas mãos o único
exemplar conhecido do romance de 1859, teria caído no esquecimento
a memória dessa brasileira e
maranhense ilustre e mulher
negra, artista e educadora
corajosa e com talento e
sensibilidade notáveis.
Temos,
assim, uma dívida histórica com Maria Firmina dos Reis, que deve
ser encarada como um símbolo, simultaneamente da
mulher e do povo negro, da luta pelo reconhecimento a uma
vida plena de direitos e de realização nas mais diversas instâncias
da vida.
"Saudade", Chiquinha Gonzaga; piano: Clara Sverner
*
Imagem:
"Tropical", Anita Malfatti (São Paulo, Brasil, 2/12/1889 - São Paulo, Brasil, 6/11/1964), 1917, óleo sobre tela, 77cm x 102 cm, Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil.
http://noticias.universia.com.br/tempo-livre/noticia/2012/10/24/976830/conheca-tropical-anita-malfatti.html