quarta-feira, 14 de março de 2018



Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

Mulher, negra e pioneira na literatura brasileira




                                                              "Tropical", Anita Malfatti


São vastos e belos os nossos campos; porque inundados pelas torrentes do inverno semelham o oceano em bonançosa calma — branco lençol de espuma, que não ergue marulhadas ondas, nem brame irado, ameaçando insano quebrar os limites, que lhe marcou a onipotente mão do rei da criação. Enrugada ligeiramente a superfície pelo manso correr da viração, frisadas as águas, aqui e ali, pelo volver rápido e fugitivo dos peixinhos, que mudamente se afagam, e que depois desaparecem para de novo voltarem — os campos são qual vasto deserto, majestoso e grande como o espaço, sublime como o infinito.


Em novembro de 2017, ocorreu a efeméride de cem anos da morte da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (São Luís, Maranhão, Brasil, 11/10/1825 – Guimarães, Maranhão, Brasil, 11/11/1917).

Filha de mãe negra e pai branco, exerceu o magistério na Instrução Primária de 1847 a 1881.

Em 1859, publicou o romance Úrsula (Tipografia do Progresso, São Luís), que é considerado, em nossas Letras, o primeiro romance escrito por uma mulher e também o primeiro romance abolicionista. Por causa dos preconceitos da época, o nome da autora não apareceu na publicação e a autoria foi dada sumariamente como “Por uma maranhense”.

A redescoberta dessa obra deve-se ao obstinado pesquisador paraibano Homero de Almeida (1896 – 1983), que adquiriu por acaso, no final da década de sessenta, um exemplar da edição de 1859 do romance Úrsula – em verdade, o único conhecido. Foi somente em meados dos anos setenta que, empenhado em fixar qual seria o primeiro livro escrito e publicado por uma mulher na literatura brasileira, Homero de Almeida retomou a investigação sobre a obra e, por meio de consultas a outros estudiosos, chegou ao nome da autora. Assim, Homero de Almeida constatou, para sua surpresa, que essa mulher pioneira era igualmente negra. O pesquisador gentilmente doou esse único exemplar conhecido ao Governo do Maranhão e, com base nele, publicou-se, em 1975, uma nova edição – fac-similada - do romance.

Coube a Nascimento Morais Filho (1922 – 2009) dar prosseguimento às pesquisas sobre a vida e a obra de Maria Firmina dos Reis, do que resultou a catalogação das outras obras publicadas pela autora, seja em livros, seja pela sua atuação na imprensa. Morais Filho publicou, ademais, a primeira biografia da artista: Maria Firmina, fragmentos de uma vida (Imprensa do Governo do Maranhão, 1975).

Maria Firmina era prima do escritor e gramático Francisco Sotero dos Reis (1800 – 1871).

A escritora fundou em Guimarães a primeira escola mista do Brasil; tal ousadia teve como consequência pressões e protestos, do que era considerado como uma ousadia, e, por causa disso, o estabelecimento teve que ser fechado após dois anos.

Maria Firmina publicou também: o romance Gupeva, de temática indígena(1861/1862); o livro de poemas Cantos à beira-mar (Tipografia do País, 1871) e o conto “A escrava” (A Revista Maranhense no. 3, 1887), afora publicações esparsas na imprensa. Compôs ainda letra e música do “Hino da libertação dos escravos” (1888).

Em setembro último, a Editora da PUC Minas publicou uma nova edição do romance Úrsula e está disponível na rede mundial uma edição digital dessa mesma obra pela “Coleção Acervo Brasileiro”, dos Cadernos do Mundo Inteiro (www.cadernosdomundointeiro.com.br).

Desde a redescoberta de Maria Firmina dos Reis, por obra e méritos dos pesquisadores Homero de Almeida e Nascimento Morais Filho, a vida e a obra da escritora têm, crescentemente, sido de objeto de estudos na Universidade; pode-se dizer, assim, que a autora já tem alguma fortuna crítica, por meio de dissertações, prefácios, artigos em revistas especializadas, ensaios e comunicações em Congressos.

O crescente interesse da Academia, contudo, não se reproduziu ainda para o cidadão e a cidadã não integrados à Universidade, mas interessados em literatura, cultura e história brasileiras, feminismo e história do negro no Brasil.

É necessário, pois, investigar e sanar, urgentemente, o apagamento da obra de Maria Firmina da história da literatura e da cultura brasileiras. Sob esse prisma, é de se perguntar: como isso foi possível? Ressalte-se que, se o acaso não tivesse brilhado a Homero de Almeida, levando às suas mãos o único exemplar conhecido do romance de 1859, teria caído no esquecimento a memória dessa brasileira e maranhense ilustre e mulher negra, artista e educadora corajosa e com talento e sensibilidade notáveis.

Temos, assim, uma dívida histórica com Maria Firmina dos Reis, que deve ser encarada como um símbolo, simultaneamente da mulher e do povo negro, da luta pelo reconhecimento a uma vida plena de direitos e de realização nas mais diversas instâncias da vida.


                      "Saudade", Chiquinha Gonzaga; piano: Clara Sverner


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Imagem:
"Tropical", Anita Malfatti (São Paulo, Brasil, 2/12/1889 - São Paulo, Brasil, 6/11/1964), 1917, óleo sobre tela, 77cm x 102 cm, Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil.
http://noticias.universia.com.br/tempo-livre/noticia/2012/10/24/976830/conheca-tropical-anita-malfatti.html