Um dia no Rio, de Oswaldo França Júnior
A fúria da História irrompe nas ruas do Rio de Janeiro
Repressão ao protesto contra a morte do estudante Édson Luís, 1968. Evandro Teixeira
O avião pousou no Rio às oito e cinco da manhã. Antes da parada completa dos motores, Márcio se levantou da cadeira e se dirigiu para a porta. A aeromoça estava no fim do corredor e sorriu para ele. Era loura, bonita e delicada. Márcio reparou nos seus olhos e, de perto, achou que tinham um ar de promessa. Eles lhe lembraram uns outros olhos.
- Você conhece Adelaide? - perguntou.- Não senhor – respondeu a aeromoça. Ela é comissária também?- É, e mora em São Paulo.Ela pensou um pouco e disse:- Conheço muitas de São Paulo, mas com este nome não me lembro de nenhuma.- Ela se parece com você. Principalmente os olhos; são iguais aos seus.A aeromoça procurou ver se localizava entre suas conhecidas uma que se chamasse Adelaide e tivesse os olhos iguais aos seus.Mas não conseguiu. Márcio não soube dizer em qual Companhia ela trabalhava, nem seu nome completo. E a porta do avião foi aberta, a escada desceu e ele saiu. E foi pelo pátio lembrando-se dos olhos de Adelaide, olhando-o de modo sério numa noite quando dançavam em São Paulo. (pp. 5 – 6).
No
dia 10 de junho de 1989 foi abreviada precocemente, aos cinquenta e
dois anos, em um acidente automobilístico, a vida do ficcionista
Oswaldo França Júnior (Serro, Minas Gerais, 21 de julho de 1936 –
João Monlevade, Minas Gerais, 10 de junho de 1989), uma
personalidade de biografia e obra singulares de nossas Letras, cuja
produção literária, apesar de hoje injustificadamente pouco
discutida e divulgada, gozou de muito prestígio nas décadas de
sessenta a oitenta.
Ambição manifesta desde criança, França
Júnior ingressou na Escola Preparatória de Cadetes do Ar, em 1953,
em Barbacena – MG, e, três anos mais tarde, estava no Curso de
Formação de Oficial Aviador, no Rio de Janeiro. Em 1961, o futuro
autor está no centro da História: na crise política decorrente da
renúncia de Jânio Quadros, os militares resistem à ideia de João
Goulart assumir a Presidência da República; seu cunhado, Leonel
Brizola, instala, a partir de 25 de agosto, o que ficou conhecido
como a “cadeia da legalidade”: uma mobilização civil e militar
para cumprimento da Constituição e, por conseguinte, para garantir
a posse do Vice-presidente. França Júnior servia, na ocasião, em
Porto Alegre, no Esquadrão de Combate do 14°
Grupo de Aviação, cujo comandante reuniu seus subordinados e
comunicou-lhes que havia ordens superiores de tentar silenciar
Brizola e, no caso de insucesso, aeronaves do Esquadrão deveriam
bombardear o Palácio de Governo. Como sabemos, esse bombardeio não
aconteceu; uma sabotagem de sargentos acabou atrasando a operação e
a dinâmica tensa do momento acabou fazendo com que os planos fossem
mudados.
Veio
o golpe de 1964 e o nosso autor foi arbitrariamente destituído do
seu cargo de aviador, por força do Ato Institucional nº
2. Estar às voltas com a necessidade abrupta de sustentar uma
família com três filhos foi, decerto, uma violência e um trauma
que, a par do sofrimento causado, gestou o germe de uma literatura
que se pôs a refletir, sob diversos prismas, sobre a relação
instável dos indivíduos com a História e as ambivalências e
brutalidades do processo de modernização pelo alto da economia e da
sociedade brasileiras na segunda metade do século XX.
Para
manter-se e à família, França Júnior recorreu às atividades mais
diversas, como corretor de imóveis, comerciante de queijos e de
banca de jornais. Envolvido com o dia a dia da luta pela
sobrevivência, mesmo assim França Júnior reuniu coragem, bateu à
porta de Rubem Braga, aproveitando viagem ao Rio de Janeiro, e
mostrou-lhe originais de contos. O célebre cronista, que estava à
frente da Editora do Autor, juntamente com Fernando Sabino e Walter
Acosta, gostou do que viu, mas indagou se o escritor iniciante tinha
um romance, gênero de melhor vendagem. França Júnior disse que
tinha um romance em elaboração, só pendente de uns ajustes. Não
era verdade. Voltou para Belo Horizonte e arrematou em pouco tempo o
romance O viúvo, finalmente publicado em 1965. Curiosamente,
França Júnior topou com o livro em livrarias, meses depois da
conversa com Rubem Braga, sem que tivesse sido avisado da publicação.
A sorte grande para França Júnior, contudo, veio com o seu segundo romance, Jorge, um
brasileiro (Editora Bloch, 1967); concorrendo com outras 243
obras, um júri composto nada menos do que por Antonio Olinto, Jorge
Amado e Guimarães Rosa concedeu o prêmio Walmap, a mais importante
láurea literária da época, ao romance de França Júnior. Jorge,
um brasileiro foi a estrela da
sorte da constelação de
obras do autor: trouxe-lhe o reconhecimento do
prêmio Walmap,
possibilitando
que o romance fosse posteriormente
publicado na Alemanha, nos
Estados Unidos, na
Espanha e em
Cuba; o romance transformou-se, em 1978, em um Caso Especial, na TV
Globo e, no ano seguinte, em uma série de sucesso, também na TV
Globo, sob o nome de “Carga
pesada”, com episódios
semanais até 1981 e
reeditada de abril de 2003
até setembro de 2007. Por fim, o romance foi vertido para o cinema,
em 1988, sob a direção de Paulo Thiago.
E
aqui se chega ao seu terceiro
romance, Um dia no Rio,
publicado no tempestuoso ano de 1969, em
plena vigência do Ato Institucional nº
5, que marca um aprofundamento do Golpe de 1964, com severa restrição
dos direitos e garantias individuais. Nesse
romance, os
leitores serão
transportados
para a ambiência desse período tenso da história brasileira, na
forma de apenas um dia de viagem de negócios do mineiro Márcio à
cidade do Rio de Janeiro.
*
Tratar
do estilo narrativo de França Júnior impõe, entre outras
abordagens, responder à indagação lançada por John Morris Parker:
É o caso para nos perguntarmos como, com material diegético aparentemente tão pobre e com uma linguagem tão sem adornos, França produziu textos que fascinam – e continuarão a fascinar – leitores de diversos níveis culturais” (PARKER, 1996).
“Pobre”
não é o termo correto a ser aplicado ao estilo da linguagem e à
narrativa de França Júnior. Trata-se, antes, de uma opção
intencional do autor por uma literatura ao mesmo tempo de amplitude
na sua capacidade comunicativa, sem deixar de ser moderna. Melânia
Silva de Aguiar conceitua o estilo dessa primeira fase da obra de
França Júnior de “realismo prosaico”. (AGUIAR, 2009, p. 27)
Luiz
Costa Lima, em ensaio sobre a prosa modernista, trata do “espaço
mimético” nessa produção ficcional, que não deve ser confundido
com o “decalque, submissão às configurações efetivas da
realidade” (LIMA, 1975, p. 69). E continua o estudioso mais
adiante:
No caso da prosa modernista, o mimético tinha como matéria a coloquialidade, seja em reação à ignorância purista dos gramaticoides, seja em oposição aos que helenizavam as discrepâncias tropicais. Do realce do coloquial resultava a continuidade estabelecida entre expressão literária e modos de vida e de fala populares. Atesta-o a obra de Alcântara Machado, que ainda espera seu analista, e a de Aníbal Machado.” (LIMA, 1975, p. 70, negrito nosso).
Traços
de modernidade no presente romance repousam, assim, entre outros,
além da citada coloquialidade, na rarefação do enredo, na
compressão temporal da trama, que ocorre durante apenas um dia, a
exemplo dos clássicos da modernidade Ulisses, de Joyce, e
Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf e, por fim, mas não menos
importante, na presença da ironia, não como um componente
episódico, antes, ao contrário, como um elemento importante da
construção narrativa.
É
importante situar o contexto histórico de criação do romance e de
sua publicação que tem reflexos tanto internos como externos à
obra. Um dia no Rio foi publicado em 1969, no ano seguinte à
edição, pelo regime militar então vigente, do Ato Institucional n°
5, de 13 de dezembro de 1968, que representou um aprofundamento do
golpe militar de 1964: o Congresso Nacional e as Assembleias
Legislativas foram fechadas por quase um ano, mandatos de
parlamentares foram cassados e houve exoneração sumária de
servidores públicos, inclusive membros da magistratura, suspensão
de direitos políticos de cidadãos considerados subversivos e,
principalmente, no que aqui nos interessa, a censura prévia às
artes, à imprensa e aos meios de comunicação.
Há,
portanto, um fato externo à narrativa, qual seja, a censura prévia,
que inevitavelmente interferiu na criação artística, visto que uma
escrita indiferente a essa contingência poderia redundar na
impossibilidade de publicação da obra. A estratégia adotada pelo
escritor foi criar uma personagem protagonista que está totalmente
envolvida com os seus afazeres e compromissos cotidianos da sua vida
privada e, com isso, vive ao largo do ruído do momento histórico. A
ironia constitutiva do romance decorre justamente da constatação de
impossibilidade de o indivíduo manter-se à parte da vida coletiva e
muito menos incólume aos movimentos da História.
Como
é corriqueiro na construção da prosa ficcional, são os contrastes
e choques de valores que fazem avultar aspectos da trama e dos
caracteres. Em Um dia no Rio, a ironia surge da polaridade
entre os valores que regem a vida de Márcio – um pequeno
empresário que se dirige ao Rio de Janeiro para compromissos de
negócios – e a tensão política que está no ar.
O
romance é narrado em terceira pessoa, mas pela perspectiva do seu
protagonista. É evidente a forma corrosiva como foi construída essa
personagem pela qual vemos desenrolar-se a trama: Márcio, apesar de
casado, está o tempo todo com os olhos abertos para as mulheres em
seu redor e corteja-as sistematicamente na expectativa de que possa
sobrevir uma aventura; para ele, as mulheres são apenas objetos de
desejo concupiscente. Esse aspecto da personalidade de Márcio é, de
plano, sutilmente exposto em apenas uma frase logo no primeiro
parágrafo que inicia o romance:
Márcio reparou nos seus olhos e, de perto, achou que tinham um ar de promessa. (p. 5).
A
fim de expor ao leitor o perfil do protagonista, o Narrador usa o
artifício de fazer, logo na página inicial do romance, com que os
olhos da aeromoça que está na aeronave prestes a pousar no Rio de
Janeiro sejam uma porta no tempo, para Márcio ser levado à
lembrança de Adelaide, outra aeromoça, e, assim, sucede-se um longo
flashback de quinze páginas em que é narrada outra viagem a
negócios, em que houve uma breve aventura amorosa e extraconjugal de
Márcio com essa aeromoça. Esse longo trecho em flashback
também serve para evidenciar outros aspectos da personalidade nada
elogiável de Márcio, ou seja, a falta de escrúpulo nos negócios,
o imediatismo na busca de ganhos financeiros a qualquer custo e o
machismo.
O amigo de Márcio que começou a fabricar as torneiras, interrrompeu logo a fabricação. Elas rachavam com muita facilidade. Bastava que a pressão da água subisse um pouco. Márcio estava querendo um homem que espalhasse vendedores convencidos de que aquelas torneiras é que os tornariam ricos. Aquela era uma boa oportunidade para ganharem muito dinheiro. Mesmo que não desse certo, como não deu, pelos menos as vendas feitas de início dariam algum lucro. (pp. 10 – 11).
Márcio,
em suma, é um pequeno burguês de classe média, de valores morais
elásticos, ao sabor de seus interesses e instintos, tanto em sua
vida pessoal como nos negócios.
O
romance é um texto contínuo, sem capítulos; apesar disso,
identificam-se três partes da narrativa: a primeira delas percorre
desde a chegada de Márcio ao Rio, vindo de Belo Horizonte, o breve
encontro com o irmão Lúcio, que reside no Rio de Janeiro, e, após,
isso, seguem-se outros encontros de negócios até Márcio voltar ao
escritório onde está Lúcio, para irem almoçar. A segunda parte é
o clímax do romance: após o almoço de Márcio com o irmão, eles
saem à rua e são envolvidos no tumulto nas ruas do centro da cidade
em decorrência de manifestações políticas promovidas pelo
movimento estudantil em oposição ao regime militar. A última parte
é um breve epílogo, com a volta de Márcio para Belo Horizonte.
Como
se vê, o enredo, como antes assinalamos, é rarefeito, mas França
Júnior demonstra uma grande habilidade narrativa por uma composição
de virtudes de ficcionista nato que tornam a leitura sedutora e
envolvente, ao mesmo tempo que constroi uma literatura refinada, na
forma como será exposto, a seguir, sinteticamente.
Passeata dos cem mil, 26/6/1968. Evandro Teixeira.
Na
primeira parte, na narração do deslocamento de Márcio pelos
sucessivos compromissos de negócios, há um refreamento proposital
da ação, visando preparar o leitor para o clímax da segunda parte,
por meio de detalhes das conversas de Márcio ou por narrativas
interpoladas em flashback, qual seja, recordações que a
personagem principal faz de acontecimentos pretéritos.
No
exemplo, a seguir, o momento banal de espera diante de um elevador
projeta a memória de Márcio para um “causo” ocorrido com um
amigo:
O elevador era velho e tinha em cima, perto do teto, e em baixo, no rodapé, uns desenhos de ferro que deixavam ver as divisões dos andares passando. Márcio desviou os olhos daqueles buracos porque a sensação de velocidade que davam era desagradável. E calculou o que devia ter passado um seu amigo que se chamava Rogério e que resolveu montar um atelier de costura em duas salas que ficavam no vigésimo-primeiro andar no Edifício Acaiaca, em Belo Horizonte. Ele era muito caprichoso e entendia de decorações. E quando resolveu montar o atelier, decidiu que seria o melhor de Belo Horizonte. A disposição e o arranjo seriam para marcar época. Durante muito tempo desenhou e pensou como ia fazer. Escolheu cada coisa com muito cuidado. As cortinas seriam grandes. Haveria luzes e espelhos em vários lugares e os tapetes iam acompanhar as voltas dos estrados que variavam de altura, subindo e descendo em rampas que eram “passarelas”. As cortinas correriam em varetas estendidas por todo o teto e seriam presas em argolas coloridas. Ele mandou tirar a parede que separava as duas salas para que elas formassem um salão. Mas surgiu um problema. No elevador não cabiam as varetas onde correriam as cortinas. Os biombos para as mulheres trocarem de roupa também eram feitos de varetas amarradas umas nas outras, e não cabiam nos elevadores. Nem pela escada dava para subir. As varetas eram compridas e não faziam as curvas. Rogério decidiu levá-las, carregando-as por fora do elevador. Ele possuía uma abertura no teto e as varetas e as paredes dos biombos passariam por ali. Rogério teria apenas que ir segurando-as. Ele se firmaria no cabo e não haveria perigo. (…) Naquele mesmo dia à noite, Márcio se encontrou com ele e ele ainda estava assustado. Márcio perguntou o que havia acontecido e ele disse:- Quase morro. Horrível! (pp. 24 – 25).
Outro
recurso narrativo que chama a atenção é a técnica do “crescendo”,
expressão que aqui tomamos de empréstimo da notação musical.
Rompendo a enganosa banalidade do dia atarefado do nosso homem de
negócios, o Narrador introduz sinais crescentes do furor da História
que ronda o mundo de Márcio e nele se infiltra, apesar da
indiferença deste. Nesses momentos, o romance, em sua primeira parte
e em transição para o clímax que se seguirá, atinge altos
momentos de ironia que, muitas vezes, tangencia o cômico, tal é a
forma como Márcio está encasulado no seu pequeno mundo e nos seus
valores reificados.
Da esquina veio uma gritaria. Márcio olhou e a turma de rapazes e moças estava pulando e gritando, todos muito satisfeitos, levantando os braços. Mas deixaram de pular e gritar, e voltaram a correr, fugindo de alguma coisa que vinha pela Rua da Quitanda. Joel puxou Márcio em direção à mesa e pegou uma pasta de papeis para lhe mostrar um estudo que havia terminado na véspera, sobre a viabilidade da implantação de uma fábrica de margarina em Caxias, no Estado do Rio. Mostrou a pesquisa realizada no mercado de toda a área, com os consumos de manteiga e de pão. Falou, mostrando as figuras e os desenhos, do tempo que levou procurando o tipo mais econômico de embalagem. Estudou lata quadrada, redonda, sextavada. Embalagem de plástico duro, mole. Em tubos. Estudou as cores que podiam ser utilizadas; e falava com tanto entusiasmo que Márcio achou que ele estava mais satisfeito com o trabalho que havia realizado do que com o dinheiro que aquilo podia lhe render. Cézar tornou a chamá-los. Eles foram até a janela. Uma nuvem de fumaça branca crescia, saindo da Rua da Quitanda e se espalhando pela esquina. Não se viam mais os rapazes e as moças. A esquina estava sem ninguém. Cézar falou que a nuvem era de gás lacrimogênio. Ele estava animado, calculando a quantidade de bombas que deviam ter jogado para fazer uma nuvem daquele tamanho.- Devem ter soltado mais de dez bombas – falou, mordendo os nós dos dedos.Márcio lembrou ao Joel que precisava ir ao Cartório. Ele disse que já estavam saindo e falou da falta de visão do empresário que havia mandado fazer o estudo sobre a margarina. (pp. 74 – 75).
No
trecho acima, observe-se, ademais, a ironia adicional em: “falou da
falta de visão do empresário”.
A
segunda parte do romance tem início após o almoço de Márcio com
Lúcio. Eles saem à rua e já encontram um clima de muita tensão.
Quando chegaram em baixo no hall, sentiram os olhos arderem um pouco e Márcio se lembrou do gás. O hall estava vazio e as portas do prédio estavam fechadas. Do lado de dentro, como se fosse um porteiro, havia um homem com um lenço no nariz. Ele abriu as portas o necessário apenas para que os dois passassem. Márcio perguntou o que havia e o homem falou que era para não deixar que invadissem ali. Márcio ia fazer um comentário com Lúcio, mas não fez.A Avenida estava mais cheia de gente ainda. Perto da Rua do Ouvidor um rapaz discursava em pé sobre uma coisa que pela distância não dava para se saber o que era. Márcio disse que ia falar com uma pessoa “ali na Senador Dantas”. Falou convidando Lúcio a acompanhá-lo. Lúcio não respondeu. (pp. 135 – 136).
Repare-se,
dirigindo-se ao funcionário do prédio, no desconhecimento que se
revela em Márcio sobre as razões que levam ao estremecimento do
cotidiano: “Márcio perguntou o que havia”.
Pois
os sinais de instabilidade que vinham se anunciando no morno dia de
negócios de Márcio e de seus interlocutores levam, a partir desse
momento, a uma abrupta cesura. O centro do Rio de Janeiro torna-se
palco de uma verdadeira batalha campal entre os estudantes, moços e
moças, de um lado, e, de outro, as forças de segurança.
Do alto dos prédios veio uma grande vaia. Um outro rapaz falava para arrastarem “esses motores aqui”. Alguns o obedeceram e arrastaram os compressores e os geradores, e os colocaram numa posição em que dava para se esconderem. Os soldados vieram e quando chegaram perto, o rapaz de cima do gerador gritou- É agora!E todos jogaram tijolos, e pedras e placas de asfalto para cima dos soldados. Um dos tijolos bateu na mão de um, e ele largou o fuzil e se encolheu segurando a mão machucada. Márcio procurou Lúcio e o viu junto de uma árvore, abaixado ao lado de uma das máquinas. Estava ele e mais três rapazes que levavam atiradeiras de borracha na mão. Márcio foi para perto deles. Os soldados começaram a recuar dos dois lados. Palmas e vivas vieram das janelas dos edifícios. (p. 140).
Curiosamente,
França Júnior declarou, em reportagem no Jornal do Brasil, de 5 de
maio de 1978, que não aceitou assessorar a criação do roteiro para
o filme “Jorge, um brasileiro”, baseado em seu romance-homônimo,
porque era diferente “escrever para ser visto”. Nada mais
estranho, pois a escrita do autor é dotada de grande visualidade,
que, no presente romance, atinge o seu ápice na segunda parte, com
as impressionantes cenas de confronto entre os estudantes e as forças
repressivas, nas quais há até mesmo técnicas de montagem
emprestadas da linguagem cinematográfica, a que se adicionam
recursos de sinestesia, compondo cenas de grande dramaticidade.
Para
se ter a exata medida do valor dessa obra literária é preciso,
contudo, que o leitor faça o exercício de transpor-se para o ano de
1969, quando o país estava assombrado pela ruptura da normalidade
democrática e, em meio a esse clima, França Júnior compôs um
romance corajoso, de estrutura criativa, alternando o micro e o
macrossocial, e, além do mais, de grande senso de oportunidade,
ousando a tarefa, que em arte é muito difícil, de retratar a
história a quente, no calor dos acontecimentos.
Por
vias tortas, a História nos legou um grande escritor.
Oswaldo França Júnior
_________
Referências
bibliográficas
AGUIAR,
Melânia Silva de. “O prosaico e o alegórico na ficção de
Oswaldo França Júnior”. Suplemento Literário, Secretaria de
Estado de Cultura de Minas Gerais, outubro/2009, edição 1.325.
Luiz
Costa Lima, “Ficção: as linguagens do modernismo”, In: ÁVILA,
Affonso (org.). O modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1975.
PARKER,
John Morris. “Técnica narrativa em Oswaldo França Júnior”.
Boletim do Centro de Estudos Portugueses, Universidade Federal de
Minas Gerais, v. 16, n° 20,
janeiro – dezembro/1996.
_________
Edição
utilizada:
FRANÇA
JÚNIOR, Oswaldo. Um dia no Rio. Rio de Janeiro: Sabiá, 1969.
187 pp.. Brochura, 14x21cm. Capa: Marius Lauritzen Bern. Exemplar n°
2900, autografado pelo autor com dedicatória para Nelly Novaes
Coelho: “com minha admiração pelo muito que vem conseguindo para
esta nossa sofrida literatura, França Júnior, Belo Ht - 1976”.
__________
Imagens
Cavalaria da Polícia Militar reprime manifestação dos
estudantes, em 4 de abril de 1968, na Candelária, Rio de Janeiro, em
protesto contra a morte do estudante Édson Luís. Foto Evandro Teixeira (Irajuba, Bahia, Brasil, 1935).
Fonte:
https://utopica.photography/pt/artistas/evandro-teixeira/nggallery/thumbnails/
A pessoa, o lugar, o objeto
estão expostos e escondidos
ao mesmo tempo, sob a luz,
e dois olhos não são bastantes
para captar o que se oculta
no rápido florir de um gesto.
É preciso que a lente mágica
enriqueça a visão humana
e do real de cada coisa
um mais seco real extraia
para que penetremos fundo
no puro enigma das imagens.
Fotografia — é o codinome
da mais aguda percepção
que a nós mesmos nos vai mostrando,
e da evanescência de tudo
edifica uma permanência,
cristal do tempo no papel.
Das lutas de rua no Rio
em 68, que nos resta,
mais positivo, mais queimante
do que as fotos acusadoras,
tão vivas hoje como então,
a lembrar como exorcizar?
Marcas de enchente e de despejo,
o cadáver insepultável,
o colchão atirado ao vento,
a lodosa, podre favela,
o mendigo de Nova York,
a moça em flor no Jóquei Clube,
Garrincha e Nureyev, dança
de dois destinos, mães-de-santo
na praia-templo de Ipanema,
a dama estranha de Ouro Preto,
a dor da América Latina,
mitos não são, pois que são fotos.
Fotografia: arma de amor,
de justiça e conhecimento,
pelas sete partes do mundo,
viajas, surpreendes, testemunhas
a tormentosa vida do homem
e a esperança de brotar das cinzas.
Fonte: Fonte: https://utopica.photography/pt/artistas/evandro-teixeira/nggallery/thumbnails/
Branca
Maria de Paula: Oswaldo França Júnior
Fonte:
cartografosdavertigemurbana.wordpress.com
__________
Eunice Katunda (Rio de Janeiro - RJ, Brasil, 14/3/1915 - São José dos Campos - SP, Brasil, 3/8/1990), "Brasília",Orquestra Sinfônica Nacional - UFF, regência Lígia Amadio, solista Geílson Santos, Coral Brasil Ensemble sob a condução de Maria José Chevitarese, apresentação no Cine Art UFF, Niteroi - RJ, Brasil, 2007.