domingo, 16 de junho de 2019

ENTREVISTA COM MARIA VALÉRIA REZENDE

A autora de Vasto mundo responde ao blog




                              José Costa Leite, "Cavalo-marinho", xilogravura


Em entrevista ao Búfalo Celeste, a escritora Maria Valéria Rezende fala sobre a origem do volume de contos Vasto mundo, diz que escreve para seus personagens, revela que o conto “Aurora dos Prazeres” baseia-se em fatos que vivenciou e comenta sobre a possibilidade de dedicar-se à literatura memorialística.

Em sua participação na série “Encontros com o escritor”, em 2018, promovida pela Editora Unesp, na cidade de São Paulo, a Sra. relatou a forte ambiência cultural que fez com que a sua vida, desde sempre, em Santos, fosse cercada por livros, poemas, saraus, recitais. Assim, escrever histórias ou versos foi-lhe algo natural e que se manteve ao longo de toda a sua vida. Por que, então, tardou tanto a vir a público essa coletânea de contos, Vasto mundo?
Escrever as histórias inspiradas nos fatos que eu via ou pressentia sempre foi uma prática para mim, um meio de tentar me por no lugar dos outros, compreender, adivinhar, e também, por que não?, me divertir em noites silenciosas do interior nordestino. Mas meu projeto de vida era mesmo a educação popular, a conscientização e a organização dos oprimidos, e não ser "escritora". Foi quase por acaso que se publicou meu primeiro livro. Sem dinheiro pra presentes comprados, eu escrevia uma dessas histórias, desenhava uma capa bonitinha e dava de presente aos amigos... assim, um amigo, Frei Betto, acabou por passar um texto meu a um editor, Pascoal Soto, que um dia me telefonou pedindo mais... daí foi ainda uma longa história até que se publicasse. Com a idade, eu já não podia mais continuar nas mesmas andanças, com a mochila às costas, então escrever tornou-se uma atividade que, penso, pode também contribuir para que se veja o que muitas vezes fica escondido e, da força do nosso povo, colher esperança.


Guimarães Rosa, do qual há uma citação em epígrafe em Vasto mundo, transfigurou radicalmente toda a tradição brasileira do regionalismo, unindo o local a uma temática universal em uma experiência de linguagem que representa um dos cumes das nossas Letras. Foi desafiador escrever à sombra do grande escritor de Cordisburgo, ao situar os seus contos no interior do Nordeste brasileiro?
Como sempre escrevi espontaneamente, simplesmente porque tinha uma história para contar a mim mesma, porque, mesmo para quem a vê e vive, uma história só se revela quando a gente a conta, e não tinha a pretensão de ser escritora reconhecida, nunca comparei o que escrevia com outro autor... muito menos com o grande Rosa, que li inúmeras vezes, desde minha adolescência, assim como centenas, talvez milhares de outros livros que absorvi ao longo da minha vida. Quando me perguntam para quem escrevo, a única resposta que posso dar é que escrevo para meus personagens. Sempre me pergunto se eles se reconhecerão ali. E parece que sim.

À semelhança de Flaubert, a Sra. pode dizer que “Aurora dos Prazeres, c’est moi”?
Aurora dos Prazeres, que é fabulação a partir de fatos realmente acontecidos, não sou eu, somos milhares de religiosas que, sobretudo a partir dos anos 60, deixamos a proteção dos muros dos conventos para nos "inserir" por longos anos entre os mais pobres e oprimidos, no interior, no campo ou nas periferias das grandes cidades, para compartilhar sua vida, para tentar ser entre eles "fermento na massa" como diz o Evangelho. Então, creio que se dissermos "Aurora dos Prazeres c'est nous", estaremos constatando um fato bem mais concreto e exato do que dizia Flaubert na sua tirada literária!

A Sra. é uma das grandes ficcionistas brasileiras em atividade, mas a sua própria vida certamente está cercada de inúmeras passagens que podem contar muito sobre a História recente do Brasil ou sobre as difíceis condições de vida de populações de diversos países. Os seus leitores podem aguardar a publicação de suas memórias?
Na verdade nem seria capaz de escrever minhas memórias, senão como já as escrevo, ficcionalmente... só sabemos da realidade o que nos entra pelos nossos fracos cinco sentidos... são fragmentos do real, como retalhos que nós vamos ligando uns aos outros com crochê para fazer uma colcha cujo desenho faça sentido. Acho que toda memória tem ficção e toda ficção tem memória. Acho bem mais divertido fazer livremente ficção juntado peças de memória e fazendo um novo desenho do que tentar "dizer a verdade" num texto de "memórias".


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Imagem:
Xilogravura do cordelista José Costa Leite (Sapé, Paraíba, Brasil, 1925).
Fonte:
http://www.paraibacriativa.com.br/artista/jose-costa-leite/


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Marlos Nobre, “Dengues da mulata desinteressada”, op. 20 (1966).
Duo Cappuccino: Mere Oliveira, mezzo-soprano; André Simão, violão.
St. Edigienkirche, Beerbach, Nuremberg, Alemanha, 9/5/2010.

Sobre poema de Ribeiro Couto:

Te dei um vidro de cheiro
Te dei um colar de conchas
De nenhum fizeste conta
Comprei artigo estrangeiro
outro vidro, outro colar
Não quiseste olhar,
Não quiseste olhar
Vendo que eras ambiciosa
te prometi um vestido
Te prometi um vestido
disseste “Eu rasgo atrevido!”
Mas falei baixinho: “Rosa”...
Fui buscar o meu violão,
E suspiraste, suspiraste: “Romão”
Te dei um vidro de cheiro
Te dei um colar de conchas
De nenhum fizeste conta
Comprei artigo estrangeiro
outro vidro, outro colar.



Vasto mundo, de Maria Valéria Rezende

Grandezas e misérias humanas no povoado de Farinhada




                                                                      José Costa Leite, xilogravura



A moça chegou do Rio. Logo se vê… tão alvinha! Saiu daqui miúda, não diferenciava em nada das outras meninas da escola municipal. Foi o padrinho que a levou. Voltou essa moçona. Veio passar o São João. No meio das outras moças, na frente da igreja, ela agora diferencia até demais. O vestido bonito, mais altura, as unhas compridas e vermelhas, movendo os braços, dando voltas e requebros enquanto fala. E fala sem parar. As outras, mais matutas ainda junto dela, são apenas moldura para o quadro. Para os olhos de Preá, nem moldura. Não existem. Não existem maia a igreja, a praça, a vila, nada. Só a moça. (p. 15).

Maria Valéria Rezende (Santos, Estado de S. Paulo, Brasil, 1942), uma das mais premiadas entre os escritores da literatura brasileira contemporânea, é um caso singular das nossas Letras: muito embora esta sua primeira obra tenha vindo a lume em 2001, quando a escritora contava quase sessenta anos, não se pode dizer, a rigor, que se trate de uma escritora bissexta, se, como a própria autora relatou pessoalmente, no fim de 2018, na série “Encontros com o Escritor”, em São Paulo, promovida pela Editora Unesp, ela viveu em um ambiente marcado pela presente constante da literatura e, sendo assim, escrever tornou-se algo natural desde sempre, ainda que em manuscritos pessoais.

Em depoimento ao jornal Folha de S. Paulo, a escritora relata:

Eu comecei a ler antes de saber ler. Nasci antes da televisão: à noite minha família costumava se sentar na varanda e dividir poemas. Meu avô tinha sido declamador e sabia muitos de cor. As pessoas sempre me perguntam quais foram os livros de que mais gostei na vida. Eu não sei dizer, faz 70 anos que sou leitora e tinha o costume de ler 2.000 páginas por semana. (1)

Outros fatores importantes para a formação de Maria Valéria Rezende foram a sua atuação na Juventude Estudantil Católica, a opção posterior pela vida religiosa, entrando na Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, em 1965, pela qual passou a dedicar-se como missionária na educação popular, o que lhe possibilitou conhecer diferentes paisagens e culturas no Brasil e no exterior.
Assim, mesmo sem publicar, Maria Valéria Rezende foi acumulando, durante uma vida laboriosa e plena em dedicação ao outro, uma valiosa experiência de observações humana e social, principalmente no tocante aos mais pobres.
Ressalta ainda na escritora, por fim, a rica produção, igualmente reconhecida e premiada, voltada aos públicos infantil e juvenil, o que mostra a sua versatilidade e dá mais valor ainda ao seu ofício de escritora.

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Vasto mundo foi publicado em 2001 e teve nova edição revisada em 2015.
Aspectos de sua trajetória de vida estão presentes nessa obra inaugural, como evidencia o depoimento da escritora à Folha de S. Paulo:

Não sei se sou uma grande escritora, mas sou uma boa contadora de histórias. Fiz muito isso de ouvir, contar e recontar no meu trabalho de educação popular. Como minha vida teve uma série de mudanças de região e de país, tive muitas experiências de aprender novas linguagens, gestos, comportamentos e histórias. E é como se a gente fosse se multiplicando. (2)


                                                                      José Costa Leite, xilogravura


Vasto mundo passa-se no povoado paraibano de Farinhada, distrito da cidade de Itapagi, denominações fictícias de localidades no sertão nordestino. As narrativas são centradas em tipos locais, com o recurso frequente à sátira, como forma de ampliar as situações expostas e, muitas vezes sob uma aparência inocente, de “causo”, servem, em verdade, ao propósito de desnudar as estruturas opressoras e associadas do latifúndio, do patriarcalismo e do mandonismo sobre as populações humildes, sobre os moradores das zonas rurais, destituídos de um pedaço de terra para lhes garantir a subsistência, e também sobre a mulher, destinada a um papel subordinado na família e na sociedade.

Ocorre que as narrativas, na maioria dos casos, flagram justamente situações em que essas estruturas opressoras são questionadas ou desafiadas. Esses momentos são como um raio, uma fissura nos sistemas de dominação, que permite aos oprimidos ou às mulheres tanto porem a nu a mecânica da opressão, causando um choque no cotidiano de reprodução do status quo e do imobilismo, assim como traz para o horizonte visível a possibilidade de emancipação. Trata-se, contudo, apenas de uma fissura, não de ruptura das estruturas, caso contrário se trataria de uma literatura escapista em confronto com as realidades sociais, políticas e culturais que, como é sabido, são resistentes a mudanças, principalmente aquelas que atingem frontalmente os interesses materiais das classes proprietárias.

É assim em “A guerra de Maria Raimunda” em que é dado o protagonismo a uma mulher de personalidade forte que terá papel determinante, em favor dos pobres, em um conflito de terras que opõe o latifundiário e deputado federal Assis Tenório, personagem recorrente em muitos dos contos, a camponeses que são pressionados pelos capangas daquele homem poderoso do povoado.

É assim que Maria Raimunda gosta de ser, dura feito pau de sucupira quando lhe pedem favor, fecha a cara e diz que não é madrinha de ninguém, que só vai fazer o favor para o outro desaparecer de sua frente; quando dá alguma coisa não é como quem dá: sacode de mau jeito o prato ou o agrado que seja para cima do outro, como coisa que não presta. Não tem dó nem de filho e marido: se Antonio Pedro chega em casa meio tocado de cachaça, ela nega a janta, passa o ferrolho na porta e larga o pobre a noite inteira no terreiro “que sereno e jejum é que é bom para bebedeira”. (pp. 37 – 38).

Pois é essa mulher, que “não se importa nem um pouco que lhe digam mulher-macho”, que isso lhe dá mais autoridade” (p. 38), que acaba envolvendo outras mulheres, por meio de um bendito, uma cantoria religiosa, na resistência à truculência de Assis Tenório.

Nesse conto, atente-se que Maria de Zuza, esposa de um dos lavradores vítimas da violência, recorre ao Padre Franz, outro personagem recorrente, mas mesmo este estando sempre ao lado dos humildes (em outro conto, “Não se vende jumento velho”, ficamos sabendo que Padre Franz veio da Alemanha e desembarcou em Farinhada, entusiasmado com a recém-nascida Teologia da Libertação), a mulher ouve do Padre “que Deus olhava pelos pobres, aguentasse, tivesse paciência, tivesse coragem”. Ou seja, a resistência contra a opressão parte dos despossuídos mesmo e ainda sob a liderança das mulheres.

O protagonismo também é da mulher em “A obrigação”, no qual Dona Ceiça não hesita em ir à zona e, aí, recorrer a Marivalda, para dar novo alento ao marido, que não cumpre mais a obrigação conjugal. Nesse conto, da mesma forma como em “Aurora dos Prazeres”, do qual trataremos a seguir, revela-se a filiação teológica da autora, com a compaixão desmedida por aqueles que mais sofrem; assim, Dona Ceiça mostra o seu agradecimento pela graça recebida:

Em Itapagi ela comprou a vela maior que havia, acendeu no altar de Nossa Senhora e deixou o resto do dinheiro na caixa das ofertas para a salvação das almas de todas as putas. (p. 47).


                                                                      José Costa Leite, xilogravura

Aurora dos Prazeres, a protagonista do conto homônimo - uma personagem com a qual certamente a escritora se identifica -, cuja mãe morre com Aurora tendo apenas dez anos, foge às injunções sociais e familiares a que estão destinadas as mulheres em seu papel subordinado na sociedade patriarcal:

Quando ficou mocinha, coisa que o pai percebeu ao ver uns trapinhos denunciadores a secar no varal, Raimundo dos Prazeres deu-lhe um vestido novo e começou a levá-la consigo para a feira de Itapagi. Com certeza sentiu-se na obrigação de apresentá-la ao mercado casamenteiro. (p. 126).

e ordena-se freira, para dedicar-se aos mais pobres.

Tinha entendido tudo o que o bispo dissera e procurou os mais pobres e desprezados para visitar e evangelizar. Descobriu o Rabo da Gata, a rua das mulheres da vida, e passava com elas as horas em que não tinham freguesia. Ouvia suas misérias, falava-lhes de Jesus e de como as putas entravam primeiro no Reino dos Céus. (p. 128).

Em “O tempo em que Dona Eulália foi feliz” revela-se que a truculência do latifúndio, associado ao mandonismo, transcende o mero privilegiamento material e procura subjugar e submeter, a fim de ressaltar e reafirmar o poder do senhor de terras. Dona Eulália, esposa de Assis Tenório, estando este doente, assume temporariamente os negócios da fazenda e, mais uma vez, abre-se uma fissura nas estruturas de poder do patriarcado, do latifúndio e do mandonismo, com a protagonista rompendo a inércia de seu papel limitado ao âmbito doméstico:

Pela primeira vez desde que se casara, longe das vistas do marido, estando ausente também Adroaldo, segunda pessoa dele, Eulália viu-se, de repente, dona de tudo, sem ninguém que lhe dissesse o que fazer ou que lhe proibisse qualquer coisa. Não se deu conta da nova situação de imediato, pois o medo e a submissão, o nada ser e nada poder, eram-lhe uma segunda natureza. Assim também a gente da fazenda teria continuado na mesma pisada de sempre: para fosse o que fosse havia que pedir licença, pedir favor, pedir desculpas, pedir transporte, pedir… a quem encontrasse de plantão na varanda da casa-grande – Assis Tenório em pessoa; Adroaldo, em sua ausência, ou mesmo Assissinho, em suas frequentes férias em Farinhada. (p.73).

Nesse conjunto de contos, portanto, que, tratando-se da primeira publicação da autora, já dá mostras de uma escritora muito segura no seu ofício, com fina capacidade de observações humana e social, com um estilo conciso, direto e cortante, causa admiração ainda maior constar pelo menos uma peça brilhante, digna de ser incluída na antologia do conto brasileiro: trata-se de “Medo”, e o início da narrativa bem o demonstra:

Sobressaltou-se com o coaxar dos sapos como se fosse um sino dando as horas, horas de trevas, de medo, de morte. Era assim todos os dias. Quando eles começavam com suas marteladas estridentes não havia mais jeito de deter a luz; ao sinal dos sapos ela partia irrevogavelmente e ele tinha de ficar no escuro para sempre até a manhã seguinte. Velas, candeeiros tornavam ainda mais escura a escuridão porque a faziam mover-se como uma coisa viva, recuar e avançar para ele, provocá-lo, zombar do pavor que o assombrava. Preferia ficar no apagado, quieto, encolhido, para que a escuridão não o visse e o deixasse em paz até o sol voltar. (p. 31).

A personagem, cujo nome não é revelado, é um matador de aluguel que está acoitado “longe da vila, no extremo da serra do Pilão” (p. 34), após ter despachado mais uma alma. Em apenas cinco páginas, em um primor de concisão, a narrativa desvela todo um mundo arcaico em que se fundem fé, violência e misticismo. Notável. Mas, nos anos seguintes à publicação da presente coletânea, voos mais altos brindarão os leitores dessa escritora ímpar da literatura brasileira contemporânea.




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(1) Maria Valéria de Rezende, “Vida de cão”, in: Jornal Folha de S. Paulo, 5/5/2019, caderno Ilustríssima, p. 2.
(2) Id., ibid..

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Edição utilizada:
Maria Valéria Rezende. Vasto mundo. Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara, 2105. 163 pp.. Brochura, 14x21cm. Capa Diogo Droschi.

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Vasto mundo foi publicado na França:
Vaste monde. Paris: Anacaona, 2017.

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Imagens
Xilogravuras do cordelista José Costa Leite (Sapé, Paraíba, Brasil, 1925).
Fonte:
http://www.paraibacriativa.com.br/artista/jose-costa-leite/

Fotografia de Maria Valéria Rezende.
https://www.camara.leg.br/internet/bancoimagem/banco/2018/12/img20181204182243032MED.jpg

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Marlos Nobre (Recife, Pernambuco, Brasil, 18/2/1939), “Cancioneiro de Lampião para coro misto a cappella" (1980),
1. Muié Rendêra; 2. É Lamp, é Lamp, é Lampa; 3. Cantigas de Lampião
Regente: Lincoln Andrade Fonte.