ENTREVISTA COM MARIA VALÉRIA REZENDE
A autora de Vasto mundo responde ao blog
José Costa Leite, "Cavalo-marinho", xilogravura
Em
entrevista ao Búfalo Celeste, a escritora Maria Valéria
Rezende fala sobre a origem do volume de contos Vasto mundo,
diz que escreve para seus personagens, revela que o conto “Aurora
dos Prazeres” baseia-se em fatos que vivenciou e comenta sobre a
possibilidade de dedicar-se à literatura memorialística.
Em
sua participação na série “Encontros com o escritor”, em 2018,
promovida pela Editora Unesp, na cidade de São Paulo, a Sra. relatou
a forte ambiência cultural que fez com que a sua vida, desde sempre,
em Santos, fosse cercada por livros, poemas, saraus, recitais. Assim,
escrever histórias ou versos foi-lhe algo natural e que se manteve
ao longo de toda a sua vida. Por que, então, tardou tanto a vir a
público essa coletânea de contos, Vasto mundo?
Escrever as histórias inspiradas nos fatos que eu via ou pressentia sempre foi uma prática para mim, um meio de tentar me por no lugar dos outros, compreender, adivinhar, e também, por que não?, me divertir em noites silenciosas do interior nordestino. Mas meu projeto de vida era mesmo a educação popular, a conscientização e a organização dos oprimidos, e não ser "escritora". Foi quase por acaso que se publicou meu primeiro livro. Sem dinheiro pra presentes comprados, eu escrevia uma dessas histórias, desenhava uma capa bonitinha e dava de presente aos amigos... assim, um amigo, Frei Betto, acabou por passar um texto meu a um editor, Pascoal Soto, que um dia me telefonou pedindo mais... daí foi ainda uma longa história até que se publicasse. Com a idade, eu já não podia mais continuar nas mesmas andanças, com a mochila às costas, então escrever tornou-se uma atividade que, penso, pode também contribuir para que se veja o que muitas vezes fica escondido e, da força do nosso povo, colher esperança.
Guimarães Rosa, do qual há uma citação em epígrafe em Vasto mundo, transfigurou radicalmente toda a tradição brasileira do regionalismo, unindo o local a uma temática universal em uma experiência de linguagem que representa um dos cumes das nossas Letras. Foi desafiador escrever à sombra do grande escritor de Cordisburgo, ao situar os seus contos no interior do Nordeste brasileiro?
Como sempre escrevi espontaneamente, simplesmente porque tinha uma história para contar a mim mesma, porque, mesmo para quem a vê e vive, uma história só se revela quando a gente a conta, e não tinha a pretensão de ser escritora reconhecida, nunca comparei o que escrevia com outro autor... muito menos com o grande Rosa, que li inúmeras vezes, desde minha adolescência, assim como centenas, talvez milhares de outros livros que absorvi ao longo da minha vida. Quando me perguntam para quem escrevo, a única resposta que posso dar é que escrevo para meus personagens. Sempre me pergunto se eles se reconhecerão ali. E parece que sim.
À semelhança de Flaubert, a Sra. pode dizer que “Aurora dos Prazeres, c’est moi”?
Aurora dos Prazeres, que é fabulação a partir de fatos realmente acontecidos, não sou eu, somos milhares de religiosas que, sobretudo a partir dos anos 60, deixamos a proteção dos muros dos conventos para nos "inserir" por longos anos entre os mais pobres e oprimidos, no interior, no campo ou nas periferias das grandes cidades, para compartilhar sua vida, para tentar ser entre eles "fermento na massa" como diz o Evangelho. Então, creio que se dissermos "Aurora dos Prazeres c'est nous", estaremos constatando um fato bem mais concreto e exato do que dizia Flaubert na sua tirada literária!
A Sra. é uma das grandes ficcionistas brasileiras em atividade, mas a sua própria vida certamente está cercada de inúmeras passagens que podem contar muito sobre a História recente do Brasil ou sobre as difíceis condições de vida de populações de diversos países. Os seus leitores podem aguardar a publicação de suas memórias?
Na verdade nem seria capaz de escrever minhas memórias, senão como já as escrevo, ficcionalmente... só sabemos da realidade o que nos entra pelos nossos fracos cinco sentidos... são fragmentos do real, como retalhos que nós vamos ligando uns aos outros com crochê para fazer uma colcha cujo desenho faça sentido. Acho que toda memória tem ficção e toda ficção tem memória. Acho bem mais divertido fazer livremente ficção juntado peças de memória e fazendo um novo desenho do que tentar "dizer a verdade" num texto de "memórias".
__________
Escrever as histórias inspiradas nos fatos que eu via ou pressentia sempre foi uma prática para mim, um meio de tentar me por no lugar dos outros, compreender, adivinhar, e também, por que não?, me divertir em noites silenciosas do interior nordestino. Mas meu projeto de vida era mesmo a educação popular, a conscientização e a organização dos oprimidos, e não ser "escritora". Foi quase por acaso que se publicou meu primeiro livro. Sem dinheiro pra presentes comprados, eu escrevia uma dessas histórias, desenhava uma capa bonitinha e dava de presente aos amigos... assim, um amigo, Frei Betto, acabou por passar um texto meu a um editor, Pascoal Soto, que um dia me telefonou pedindo mais... daí foi ainda uma longa história até que se publicasse. Com a idade, eu já não podia mais continuar nas mesmas andanças, com a mochila às costas, então escrever tornou-se uma atividade que, penso, pode também contribuir para que se veja o que muitas vezes fica escondido e, da força do nosso povo, colher esperança.
Guimarães Rosa, do qual há uma citação em epígrafe em Vasto mundo, transfigurou radicalmente toda a tradição brasileira do regionalismo, unindo o local a uma temática universal em uma experiência de linguagem que representa um dos cumes das nossas Letras. Foi desafiador escrever à sombra do grande escritor de Cordisburgo, ao situar os seus contos no interior do Nordeste brasileiro?
Como sempre escrevi espontaneamente, simplesmente porque tinha uma história para contar a mim mesma, porque, mesmo para quem a vê e vive, uma história só se revela quando a gente a conta, e não tinha a pretensão de ser escritora reconhecida, nunca comparei o que escrevia com outro autor... muito menos com o grande Rosa, que li inúmeras vezes, desde minha adolescência, assim como centenas, talvez milhares de outros livros que absorvi ao longo da minha vida. Quando me perguntam para quem escrevo, a única resposta que posso dar é que escrevo para meus personagens. Sempre me pergunto se eles se reconhecerão ali. E parece que sim.
À semelhança de Flaubert, a Sra. pode dizer que “Aurora dos Prazeres, c’est moi”?
Aurora dos Prazeres, que é fabulação a partir de fatos realmente acontecidos, não sou eu, somos milhares de religiosas que, sobretudo a partir dos anos 60, deixamos a proteção dos muros dos conventos para nos "inserir" por longos anos entre os mais pobres e oprimidos, no interior, no campo ou nas periferias das grandes cidades, para compartilhar sua vida, para tentar ser entre eles "fermento na massa" como diz o Evangelho. Então, creio que se dissermos "Aurora dos Prazeres c'est nous", estaremos constatando um fato bem mais concreto e exato do que dizia Flaubert na sua tirada literária!
A Sra. é uma das grandes ficcionistas brasileiras em atividade, mas a sua própria vida certamente está cercada de inúmeras passagens que podem contar muito sobre a História recente do Brasil ou sobre as difíceis condições de vida de populações de diversos países. Os seus leitores podem aguardar a publicação de suas memórias?
Na verdade nem seria capaz de escrever minhas memórias, senão como já as escrevo, ficcionalmente... só sabemos da realidade o que nos entra pelos nossos fracos cinco sentidos... são fragmentos do real, como retalhos que nós vamos ligando uns aos outros com crochê para fazer uma colcha cujo desenho faça sentido. Acho que toda memória tem ficção e toda ficção tem memória. Acho bem mais divertido fazer livremente ficção juntado peças de memória e fazendo um novo desenho do que tentar "dizer a verdade" num texto de "memórias".
__________
Imagem:
Xilogravura
do cordelista José Costa Leite (Sapé, Paraíba, Brasil, 1925).
Fonte:
http://www.paraibacriativa.com.br/artista/jose-costa-leite/
__________
Marlos Nobre, “Dengues da
mulata desinteressada”, op. 20 (1966).
Duo
Cappuccino: Mere Oliveira, mezzo-soprano; André Simão, violão.
St.
Edigienkirche, Beerbach, Nuremberg, Alemanha, 9/5/2010.
Sobre
poema de Ribeiro Couto:
Te
dei um vidro de cheiro
Te
dei um colar de conchas
De
nenhum fizeste conta
Comprei
artigo estrangeiro
outro
vidro, outro colar
Não
quiseste olhar,
Não
quiseste olhar
Vendo
que eras ambiciosa
te
prometi um vestido
Te
prometi um vestido
disseste
“Eu rasgo atrevido!”
Mas
falei baixinho: “Rosa”...
Fui
buscar o meu violão,
E
suspiraste, suspiraste: “Romão”
Te
dei um vidro de cheiro
Te
dei um colar de conchas
De
nenhum fizeste conta
Comprei
artigo estrangeiro
outro
vidro, outro colar.