sexta-feira, 15 de junho de 2018


O herói do nosso tempo, de Mikhail Iúrievitch Liérmontov

O retrato dos vícios de toda uma geração na Rússia



Михаи́л Ю́рьевич Ле́рмонтов
Герой нашего времени
Geroy nashego vremeni






Saíra de Tiflis em cavalos de posta. Toda a bagagem da minha carroça ia numa maleta, metade ocupada por minhas anotações de viagem sobre a Geórgia. A maioria delas extraviou-se, para vossa felicidade, mas ficou a maleta com as coisas restantes, para minha sorte.
O sol já começava a esconder-se atrás da cordilheira nevada quando entramos no vale de Koichaur. O cocheiro, um ossetino, açoitava incansavelmente os cavalos, tentando atingir o monte Koichaur antes do anoitecer, e cantava a plenos pulmões. Uma beleza de lugar aquele vale! De todos os lados do monte – inexpugnáveis penhascos avermelhados, atapetados de hera verde e coroados por copas de plátanos, despenhadeiros amarelos, rasgados por sulcos, e lá em cima, bem no alto, uma franja dourada de neve; embaixo, abraçado a um riacho sem nome que se precipita tumultuoso de um desfiladeiro negro e enevoado, o Aragvá se estende qual uma linha de prata e brilha como o dorso escamoso da serpente. (1)

Só o fato de o título da mais importante obra em prosa do poeta, dramaturgo e ficcionista Mikhail Iúrievitch Liérmontov (Moscou, 3/10/1814 – Piatigorsk, 27/6/1841) ser uma gritante ironia dá uma ideia dos contrastes e da rispidez presentes nesse romance do autor russo pouco conhecido entre nós, mas que forma, juntamente com Aleksandr Púchkin e com Fiódor Tiútchev, a plêiade romântica russa. Gênio precoce, Liérmontov construiu uma obra admirável nos seus curtos vinte e seis anos de vida, interrompida tragicamente num duelo, da mesma forma que seu inspirador, Púchkin, muito embora esses dois escritores nunca tenham se encontrado.

Órfão de mãe aos três anos - a mãe foi vítima de tuberculose -, e por causa do serviço militar do pai, Liérmontov é criado pela avó materna, Yelizaveta Alekseyevna Arsenyeva, que lhe proporciona refinada educação por meio de tutores, com lições de francês, alemão, inglês, grego, música e pintura. A avó fora desde sempre contrária ao casamento da filha e, após a morte desta, ocorreram diversos conflitos com o genro, resultando que a avó, por fim, ficou com a guarda do pequeno Mishka, como o escritor era chamado na infância. Toda essa desavença afeta a saúde de Liérmontov e, em duas ocasiões, em tratamento, Liérmontov passa temporadas no Cáucaso, aos seis e aos dez anos, o que marca a sua infância com recordações da natureza, de contos, lendas, canções e costumes populares.

Em 1830, ingressa na Universidade de Moscou, um forte centro de conhecimento, cultura e debates, em que foi contemporâneo de estudantes, como Vissarion Belinsky, Aleksandr Herzen, Konstantin Aksakov e Nicholas Stankevich, que viriam a ter importante papel nas letras e na cultura russas.

No verão de 1832, Liérmontov já acumula uma produção de mais de trezentos poemas líricos, três peças teatrais e alguns poemas narrativos, com muita produção ainda imatura, mas já se encontra também realização superior, como o poema antológico “O anjo”. Há influências de Byron, Schiller e Victor Hugo.

Devido a uma insubordinação contra um professor reacionário, deixa a Universidade de Moscou e ingressa, em 1832, na Academia Militar, carreira a que estaria ligado, a partir de então. Gradua-se em 1834 e passa a servir no Regimento de Hussardos em Tsárskoye Seló, nas proximidades de São Petersburgo.

Em janeiro de 1837, torna-se conhecido como poeta por causa de um fato circunstancial: Púchkin morre em um duelo e Liérmontov faz divulgar um poema, “A morte do poeta”, com uma crítica ácida não só ao executor como também à nobreza aristocrática, culpando-a pela tragédia, por ter fomentado intrigas que levaram à morte de Púchkin.

No trecho final do poema, lê-se:

E vós, descendentes de pais arrogantes
Que a infâmia notória fez muito célebres,
Vós, cujos pés servis esmagaram os vestígios
Das famílias feridas pelo jogo do Destino,
Vós, ambiciosos, multidão em volta do trono,
Carrascos do talento e da liberdade!
Vós, que vos escondeis à sombra da lei,
Diante de vós tribunais e verdade se calam.
Sim, mas o Tribunal divino, degenerados,
O Juiz terrível, ele vos aguarda,
Ele é surdo ao som do ouro,
Antecipado é seu conhecimento de juízos e causas.
Então podeis bem usar a calúnia:
Isso de nada vos servirá.
Não limpareis vosso sangue negro
Do sangue justo do Poeta. (2)

Tão logo o czar Nicolau I toma conhecimento do poema, determina que Liérmontov seja preso e, a seguir, exilado para servir num Regimento no Cáucaso e atuar na repressão a rebeldes da Tchetchênia, refugiados nas montanhas (vem, pois, de longa data essa animosidade). O Cáucaso, que não lhe era estranho, pois o conhecia da infância, foi duplamente importante para o escritor, nesse momento, pois volta a tomar contato com a cultura e a natureza local, que será importante, entre outros motivos, para a ambientação de Um herói do nosso tempo e, ademais, toma contato com oficiais, nobres e ativistas, igualmente exilados, remanescentes do movimento dezembrista, de 1825.

Em 1838, volta a São Petersburgo, por interveniência de sua avó e do poeta V. A. Zhukovsky. É o período de sua plena maturidade artística. Seus poemas são publicados nos jornais, entre eles “O demônio”, a sua principal e mais ambiciosa obra em poesia, em cuja elaboração dedicou-se desde a juventude. Aos vinte e três anos, passa a ser considerado, como poeta, o sucessor de Púchkin. Integra-se ao círculo de escritores de São Petersburgo e aproxima-se do corpo editorial da revista “Otechestvennye zapiski”, que congrega intelectuais ocidentalistas. Dedica-se à escrita de Um herói do nosso tempo, publicada em 1840, que é o ponto culminante de sua prosa e na qual expõe a sua visão da sociedade russa de seu tempo.

Em 1840, é novamente sentenciado ao exílio no Cáucaso, por causa de um duelo contra o filho do embaixador francês. Liérmontov solicita engajar-se no serviço ativo, na expectativa de obter perdão e retornar para São Petersburgo e, de fato, envolve-se em perigosas operações militares.

Em 1841, Liérmontov obtém permissão temporária para retorno a São Petersburgo, mas o escritor tem a expectativa de que conseguirá ficar permanentemente na cidade. Volta cheio de planos, inclusive de criar a sua própria revista literária, e decidido a completar obras que tinha deixado incompletas. 

Ainda em 1841, obtém licença médica para tratamento e desloca-se para Piatigorsk. Nessa cidade, envolve-se em uma discussão banal com um antigo colega da Academia Militar, Nikolai Martynov; um duelo é marcado para dois dias depois. Unindo vida à arte, no rastro de Byron, em 15 de julho de 1841, Liérmontov é abatido com um tiro, nos moldes de cena marcante e de forte carga dramática narrada em Um herói do nosso tempo. Aos vinte e seis anos, morre o escritor que fora citado, três anos antes, pelo influente crítico Vissarion Belinsky, um dos mais importantes intelectuais do século XIX na Rússia, como “a grande esperança da literatura russa”.






Um herói do nosso tempo é um destacado exemplar, em prosa de ficção, do Romantismo russo, ao mesmo tempo que prenuncia o Realismo, pela acurada análise da vida interior de seu protagonista, Grigóri Alieksândrovitch Pietchórin, e que terá forte influência sobre a literatura russa posterior. O exame, de maneira crua, do impulso destrutivo de Pietchórin, reaparecerá, com outras premissas e de forma radicalizada, no protagonista anônimo de Memórias do subsolo (1864), de Dostoiévski.

Como foi possível que a forma-romance chegasse, na primeira metade do século XIX, a uma exposição tão descarnada do entrechoque de sentimentos, dos conflitos e da perversidade de uma personagem que esmaga friamente a inocência das mulheres que por ele se sentem atraídas, de maneira totalmente oposta à vulgata ou à versão folhetinesca do Romantismo?
duas chaves principais para situar a posição e a originalidade de Um herói do nosso tempo na literatura russa da primeira metade do século XIX: a artística e a histórica.

A visão romântica e o byronismo

O Romantismo foi um dos movimentos artísticos mais complexos e repleto de contrastes da história da arte, de tal forma que, no dizer de Otto Maria Carpeaux, “será melhor falar em ‘romantismos’, no plural, do que em ‘romantismo’ ” (3). O Romantismo é o equivalente artístico do terremoto político que foi a Revolução Francesa, que põe abaixo, na Europa, toda uma arquitetura social, política e cultural anterior, aristocrática, absolutista e centralizada na figura do rei, isto é, a do Ancien Régime. As violentas forças sociais e políticas desencadeadas na França de 1789, o estilhaçamento das instituições precedentes e as igualmente potentes reações e instabilidades que se seguiriam tiveram a mesma correspondência cultural no campo da expressão artística.

Para Benedito Nunes, a visão romântica corresponde “a um período de transição, que se situa entre o Ancien Régime e o liberalismo, entre o modo de vida da sociedade pré-industrial e o ethos nascente da civilização urbana sob a economia de mercado, entre o momento das aspirações libertárias renovadoras das minorias intelectuais, às vésperas do grand ébranlement de 1789, e o momento da conversão ideológica do ideal de liberdade que essas minorias defenderam, no princípio de domínio real das novas maiorias dirigentes, firmadas com o Império Napoleônico e após a Restauração.” (4) 
 
Os artistas, diante de uma nova realidade, na qual os seus “produtos” passam a estar sujeitos à nova lógica do mercado, sentem-se excluídos dessa sociedade burguesa e respondem “criando uma literatura ‘ideológica’, que se situou conscientemente fora da realidade social: ou evadindo-se dela, ou então atacando-a”, o que, na visão de Carpeaux, pode ser entendido como resumo esquemático do Romantismo (5).

Entre as suas diversas manifestações, o byronismo foi uma das mais intensas e que se propagou rapidamente pela Europa e por todas os locais onde o Romantismo se manifestou, inclusive no Brasil, na chamada segunda geração romântica ou, na denominação de Alfredo Bosi, a do romantismo egótico, de Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, entre outros. Curiosamente, contudo, a recepção de Lord Byron (George Gordon, Byron; Londres, 22 de janeiro de 1788 — Grécia, Missolonghi, 19 de abril de 1824), um dos poetas mais lidos na Europa da primeira metade do século XIX, de uma forma sem precedentes e como nunca mais voltaria a ocorrer, caiu em declínio, inclusive o próprio gênero que o celebrizou, o poema narrativo, e hoje é pouco lido.  

Desde a adolescência, Byron deu-se conta, ao lado do talento literário, de seu carisma e capacidade de sedução e, assim, desde cedo envolveu-se nos mais diversos casos com jovens de ambos os sexos. Em 1809, embarca numa viagem com dois amigos pela Península Ibérica, Albânia, Malta e Turquia; dessa experiência resulta, dois anos depois, os primeiros dois cantos do poema A peregrinação de Childe Harold, que lhe dão rápida notoriedade. No decorrer dos anos, a vida de Byron entrelaçaria a contínua confrontação da moral corrente, pela sucessão de casos amorosos e sexuais, e a entrega a aventuras revolucionárias, na Itália e, por fim, na Grécia, onde viria a falecer. 
 
Para Arnold Hauser, “o herói romântico que Byron introduziu na literatura é um homem misterioso; no seu passado há um segredo, um pecado terrível, um erro desastroso, ou falta irreparável (…). Não se poupa a si mesmo e é impiedoso para os outros. Não sabe o que é o perdão e não pede piedade, nem a Deus nem aos homens.” Mais adiante, o mesmo autor anota que esse homem misterioso assume, no limite, a figura de um “herói demoníaco que, possesso e desapontado, se arrasta, a si e a tudo que leva consigo para a destruição”(6).
Esse herói byroniano – Byron é citado mais de uma vez em Um herói do nosso tempo -, é influência evidente na configuração de Pietchórin.

O levante dezembrista de 1825

Dezembrismo é como ficou conhecido um levante de jovens oficiais da nobreza, cuja origem remota está na Grande Guerra Patriótica (1812-1814), ou seja, a luta do povo russo contra a invasão das tropas de Napoleão, imortalizada em Guerra e paz, de Tolstói, e que passou a ter um grande peso simbólico na vida cultural da Rússia, estendendo-se até os dias de hoje; a mesma denominação é usada para a luta contra as tropas de Hitler. Em reação à invasão francesa, as tropas russas chegam até Paris e, lá, os oficiais tomam contato com a herança do ideário libertário da Revolução Francesa, em confronto com a resistência autocrática e anacrônica do Império Russo, representada, principalmente, na persistência do regime servil. Esse germe desenvolveu, ao longo dos anos, um pensamento progressista, ainda que dividido em diversas concepções, em setores da nobreza e da intelectualidade, comprometidos com a modernização social e política da Rússia.

Em 1o. de dezembro de 1825, morre o czar Alexandre I, aos quarenta e oito anos, que não tivera filhos. Pela regra sucessória, assumiria como novo regente o irmão Constantino, este, contudo, casado com uma polaca, residia em Varsóvia e renunciara aos seus direitos, não obstante tal fato não fosse de conhecimento público. Instaurou-se um impasse ao longo dos dias subsequentes à morte de Alexandre I, o que gerou tensão, entre setores da oficialidade, da nobreza e da intelectualidade comprometidos com mudanças e que, por um lado temiam que o poder caísse nas mãos do irmão mais novo, Nicolau, impopular e insensível e, por outro, viam nesse momento a oportunidade para uma ação política insurrecional, objeto de discussão desde há muito tempo.

A posse de Nicolau foi marcada para 26 de dezembro. No dia 14 de dezembro, data do juramento do Senado ao futuro titular do trono, cerca de três militares reuniram-se no fim da manhã na Praça do Senado, em São Petersburgo, clamando “Constantino e Constituição”, simultaneamente à divulgação de um manifesto ao povo, pelo qual se defendia o fim do regime servil, dissolução do Governo e convocação de Assembleia Constituinte. A repressão de Nicolau, já informado dos fatos, foi brutal: tropas atiraram contra os revoltosos, resultando em cinquenta mortos, as lideranças foram encarceradas, houve cinco execuções, decretou-se a pena de exílio para a maior parte dos insurrectos. 

O mais grave: o levante levou a um agravamento da regência; a censura tornou-se mais rígida, criou-se o Terceiro Departamento, com funções de polícia política, restrições de viagem foram impostas e o regime adotou e passou a divulgar nas escolas e Universidades uma doutrina oficial nacionalista. 

Em resumo, o longo reinado de Nicolau I, com o afastamento de incontáveis ativistas, artistas e pensadores, foi caracterizado por uma estagnação política e do debate público, alienação e desalento, o que teve, contudo, o efeito colateral de legar à literatura o papel de depositária dos sonhos, frustrações e anelos.





A engenhosa estrutura do romance

É muita criativa e arrojada a concepção de Um herói do nosso tempo: o romance, todo ele passado nas paisagens caucasianas, está dividido em duas partes, com três narrativas em cada uma delas; a última narrativa da primeira parte é antecedida por um Prefácio. Acresce que cada uma dessas partes apresenta-se, com variantes, na forma de narrativa em moldura, a saber: há um narrador em primeira pessoa que, por sua vez, faz a trama desenvolver-se por meio de outro narrador ou cede a voz narrativa para uma outra personagem. Por meio de diferentes vozes, portanto, acompanhamos segmentos da vida da personagem a que se refere o título, Grigóri Alieksândrovitch Pietchórin.

Pouco sabemos, sequer o nome, do narrador que primeiro cede a sua voz; mais uma ousadia. É um oficial, um capitão (p. 15), com pretensões literárias, que está em viagem pelo Cáucaso. Nada mais sabemos, não obstante se tratar de narração em primeira pessoa.
Na primeira narrativa, a novela “Bela”, o narrador está a caminho de Stavropol, para em uma taberna e encontra um “oficial, sem dragonas”, e passa a entabular uma conversa:

- E o senhor, está há muito tempo servindo por aqui?
- Estou. Já servia nos tempos de Alieksiêi Pietróvitch – respondeu, empertigando-se. - Quando aqui chegou, eu era suboficial e sob o seu comando fui promovido duas vezes por ações contra os montanheses.
- E agora, o senhor…?
- Agora pertenço ao Terceiro Batalhão de fronteiras. E o senhor, posso perguntar?
Eu lhe respondi.
Nesse ponto a conversa cessou e continuamos caminhando lado a lado, calados. (pp. 9-10)

Trata-se de Maksim Maksímitch.

Eu estava morrendo de vontade de arrancar-lhe alguma historinha – vontade própria de quem viaja e faz anotações. (p. 13).

Instado pelo narrador, Maksim Maksímitch passa a contar uma história ocorrida cinco anos antes com um oficial de uns vinte e seis anos, chegado ao Cáucaso por transferência da Rússia: Pietchórin.

Nesse ponto, cabe um alerta: as características de Pietchórin podem levar a ver nessa personagem um alter-ego do escritor e foi, de fato, o que aconteceu à época do lançamento do romance, o que fez com que Liérmontov incluísse um ríspido “Prefácio do autor”, que consiste numa verdadeira profissão de fé do romancista e revela, assim, a sua a elevada consciência artística:

Não faz muito, esse livro foi alvo da infortunada credulidade de alguns leitores e até de revistas pelo sentido literal das palavras. Uns ficaram terrivelmente ofendidos , e a sério, por se lhes imputar o exemplo de uma personagem tão imoral como o de O herói de nosso tempo; outros observaram muito sutilmente que o autor tinha desenhado o seu próprio retrato e os retratos dos seus conhecidos… Velha e mesquinha brincadeira!
(…)
O herói de nosso tempo, meus caros senhores, é realmente um retrato, mas não o retrato de um só indivíduo: é o retrato dos vícios de toda a nossa geração, que estão em pleno desenvolvimento.
(…)
Direis que a moralidade nada ganha com isso. Desculpai. Muita gente tem sido alimentada a doces, por isso anda de estômago deteriorado; são necessários remédios amargos, verdades azedas. Mas não fiques pensando, entretanto, que o autor deste livro tenha tido alguma vez o orgulhoso sonho de corrigir os vícios humanos. Deus me livre de tamanha ignorância! Achou simplesmente divertido descrever o homem contemporâneo tal como o entende e, para a sua e a vossa infelicidade, o homem que ele em encontrado com mais frequência. Já é bastante que tenha apontado a doença, porque, como curá-la, só Deus sabe. (pp. 1-3).

Em “Bela”, Maksim Maksímitch conduz-nos à história da atração de Pietchórin pela filha de dezesseis anos de um príncipe tártaro, que conhecera na festa de casamento da irmã da jovem. A novela tem um fim trágico. E já temos uma amostra, que se repetirá ao longo do romance, da ambiguidade de Pietchórin, cuja alma transita entre o impulso para a sedução, o tédio, o desespero e o demoníaco:

Se sou tolo ou malvado, não sei; a verdade, porém, é que também mereço compaixão, talvez mais do que ela: tenho a alma corrompida pela sociedade, a imaginação intranquila, o coração insaciável; nada me basta: eu me acostumo à tristeza com a mesma facilidade com que me acostumo ao prazer, e minha vida vai ficando dia a dia mais vazia; resta-me um recurso: viajar. Tão logo seja possível, viajarei: apenas não será para a Europa, Deus me livre! Irei à América, à Arábia, à Índia – talvez morra no caminho em algum lugar! (p. 50).

Em “Maksim Maksímitch”, o narrador volta a encontrar-se com
o oficial que dá o título a essa narrativa. Ao fim, o narrador herda os papéis que eram de Pietchórin e estavam de posse de Maksim Maksímitch. Com isso, a partir de “Taman”, narrativa seguinte, com formato de conto, e até o final do romance, a voz narrativa passa a ser assumida por Pietchórin, pois as narrativas seguintes serão reprodução dos diários dessa personagem.

Taman”, que é o nome de uma cidade do Cáucaso, tem um caráter fabular, de conto oriental, com elementos fantásticos. Mais uma vez, Pietchórin sente-se atraído por uma jovem de não mais de dezoito anos; está é, contudo, enigmática e misteriosa, uma exceção no romance.

Segue-se a mais longa, complexa e instigante narrativa do romance, “A princesinha Mary”. O cenário, muito apropriadamente para o clima de estiramento moral desse capítulo, é Piatigosrk, uma estação de águas a que acorrem pessoas para tratamento de saúde, balneário, lembre-se, onde ocorreu o duelo que vitimou Liérmontov.
Instala-se um triângulo amoroso, no qual Pietchórin manipula os sentimentos alheios a seu bel-prazer, não obstante envolto em dúvida e torturas, e ressalta o contraste do jovem oficial com a inocência violada de uma jovem, de um lado, e, de outro, a dedicação que beira a humilhação de outra mulher, a quem Pietchórin já conhecia e reencontra na cidade.

A que aspiro? Que espero do futuro?… Para falar a verdade, absolutamente nada. (p. 173).

Segue-se um conto curto, “O fatalista”, permeado pela reflexão pessimista sobre a predestinação em contraposição ao anseio pela liberdade, no qual nos deparamos com a prosa refinada de Liérmontov:

E nós, seus mesquinhos descendentes, que vagamos pela terra sem convicções nem orgulho, sem prazer nem pavor, salvo aquele medo involuntário que nos oprime o coração quando pensamos no fim inevitável, já não somos capazes de grandes sacrifícios nem pelo bem da humanidade nem pela nossa própria felicidade, porque a sabemos impossível, e passamos indiferentes de uma dúvida a outra como os nossos antepassados se lançavam de um equívoco a outro, sem termos, como eles, nem esperança nem aquele prazer indefinido porém verdadeiro que a alma encontra em qualquer luta contra os homens ou contra o destino. (p. 216).

Surpreendentemente, mais uma vez de maneira ousada, o romance termina como obra aberta, exigindo, assim, o envolvimento pleno do leitor nessa bela obra do Romantismo russo.


               Auto-retrato de Mikhail Liérmontov (1837-1838)


Notável e meritória a tradução de Paulo Bezerra, tanto pela beleza da realização, feito repetido nas tantas obras da literatura russa que esse estudioso nos trouxe, como por nos ter trazido um autor seminal do romantismo russo, até então praticamente inédito entre nós, afora traduções esparsas de sua lírica. Fica o desafio de termos minimamente uma boa antologia da poesia do “poeta do Cáucaso”, principalmente “O demônio”, obra a que o escritor se dedicou por longos anos. Bóris Schnaiderman e Nelson Ascher dedicavam-se à tradução de uma selete de poemas do autor, mas a tarefa foi interrompida pela morte do grande divulgador entre nós da literatura e cultura russas. Aguarda-se que essa produção venha a lume.

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O poema “O demônio” serviu de inspiração para a ópera homônima (1871) do pianista, compositor e regente russo Anton Rubinstein (1829-1894), com libreto de Pavel Viskovatov.

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Falta igualmente conhecer Mascarada, drama nunca encenado em vida do autor, vítima da censura. A peça estreou em 1917, pelas mãos de Meyerhold, às vésperas da Revolução russa de fevereiro, fato curioso que é objeto da dissertação de mestrado de Paola Fernandes Zamboni (“Mascarada, uma jornada fascinante da peça de Liérmontov aos palcos de Meyerhold”. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Orientais, 2013), pesquisa igualmente meritória, pois Liérmontov é autor pouco pesquisado entre nós.

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Sergei Prokofiev compôs a trilha sonora para o filme-biográfico “Lermontov”, dirigido por Albert Gendelshtein (Soyuzdetfilm, União Soviética, 1943). Novo filme sobre a vida do escritor seria realizado também na União Soviética, em 1985, direção de Nikolay Burlyaev, (Mosfilm).

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UM SONHO

Num vale daguestano eu expirava,
chumbo no peito, inerte, ao meio-dia;
a chaga funda ainda fumegava,
meu sangue gota a gota se esvaía.

Jazia sobre a areia, abandonado,
penhascos me rodeavam, e um sol forte
queimava cada cimo alto e dourado,
bem como a mim, num sono já de morte.

Sonhava que na terra onde nascera
caía a noite e havia num festim,
com flores no cabelo e de maneira
jovial, moças falando sobre mim.

Mas, longe da alegria e da conversa,
sentava-se uma delas de ar tristonho
e a sua jovem alma estava imersa
na mágoa só Deus sabe de que sonho.

Num vale daguestano, ela sonhava
que, inerte, um corpo familiar jazia,
sua chaga enegrecera e ele sangrava
numa torrente cada vez mais fria.

Mikhail Liérmontov

Tradução:
Boris Schnaiderman (1917-2016), tradutor, escritor e ensaísta ucraniano radicado no Brasil.
Nelson Ascher, 60, é poeta e tradutor, autor de Parte Alguma (Companhia das Letras) (7)

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(1) Edição utilizada:
LIÉRMONTOV, Mikhail. Um herói do nosso tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Coleção Clássicos, 223 pp. Introdução de Paulo Bezerra; cronologia. Revisão da tradução: Vadim Valentinovitch Nikitin. Projeto gráfico: Katia Harumi Terasaka. Brochura, 14x20cm. Imagem na capa: retrato de Liérmontov, segundo um desenho de Pasternak, 1891, detalhe. ISBN 85-336-1073-4.

(2) Tradução de Irapuan Costa Júnior, In: Jornal Opção, edição 2158, Tocantins, 12/11/2016.
https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/traducao-de-a-morte-do-poeta-poema-do-russo-mikhail-liermontov-79871/
Consultado em 11/6/2018.

(3) CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1962, vol. IV, p. 1652.

(4) Benedito Nunes, “A visão romântica”, In: GUINSBURG, J. (org.). O Romantismo. 2a. ed., São Paulo: Perspectiva, 1985, p. 53.

(5) Id., ibid., p. 1651.

(6) HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. 2a. ed., trad. Walter H. Geenen, São Paulo: Mestre Jou, 1972, pp. 864-865.

(7) In: Folha de S. Paulo, 19/6/2016.

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Imagens: 
Cenas do balé "Um herói do nosso tempo", Cia. Bolshoi, apresentada por ocasião do bicentenário de nascimento do poeta, em 2014. Direção de Kirill Serennebrikov, coreografia de Yuri Possokhov, música de Ilya Demutsky. 
https://www.bolshoirussia.com/performance/hero-of-our-time/

Auto-retrato de Liérmontov:
https://www.moscovery.com/mikhail-lermontov/



Mily Alexeyevich Balakirev (Níjni Novgorod, 2/1/1837 - São Petersburgo, 29/5/1910), "Tamara" (1882), com base em poema de Liérmontov. Orquestra Sinfônica de Montreal, sob regência de Kent Nagano.