O herói do nosso tempo, de Mikhail Iúrievitch Liérmontov
O retrato dos vícios de toda uma geração na Rússia
Михаи́л
Ю́рьевич Ле́рмонтов
Герой
нашего времени
Geroy
nashego vremeni
Saíra de Tiflis em cavalos de posta. Toda a bagagem da minha carroça ia numa maleta, metade ocupada por minhas anotações de viagem sobre a Geórgia. A maioria delas extraviou-se, para vossa felicidade, mas ficou a maleta com as coisas restantes, para minha sorte.O sol já começava a esconder-se atrás da cordilheira nevada quando entramos no vale de Koichaur. O cocheiro, um ossetino, açoitava incansavelmente os cavalos, tentando atingir o monte Koichaur antes do anoitecer, e cantava a plenos pulmões. Uma beleza de lugar aquele vale! De todos os lados do monte – inexpugnáveis penhascos avermelhados, atapetados de hera verde e coroados por copas de plátanos, despenhadeiros amarelos, rasgados por sulcos, e lá em cima, bem no alto, uma franja dourada de neve; embaixo, abraçado a um riacho sem nome que se precipita tumultuoso de um desfiladeiro negro e enevoado, o Aragvá se estende qual uma linha de prata e brilha como o dorso escamoso da serpente. (1)
Só
o fato de o título da mais importante obra em prosa do poeta,
dramaturgo e ficcionista Mikhail Iúrievitch Liérmontov (Moscou,
3/10/1814 – Piatigorsk, 27/6/1841) ser uma gritante ironia dá uma
ideia dos contrastes e da rispidez presentes nesse romance do autor
russo pouco conhecido entre nós, mas que forma, juntamente com
Aleksandr Púchkin e com Fiódor Tiútchev, a plêiade romântica
russa. Gênio precoce, Liérmontov construiu uma obra admirável nos
seus curtos vinte e seis anos de vida, interrompida tragicamente num
duelo, da mesma forma que seu inspirador, Púchkin, muito embora
esses dois escritores nunca tenham se encontrado.
Órfão
de mãe aos três anos - a mãe foi vítima de tuberculose -, e por
causa do serviço militar do pai, Liérmontov é criado pela avó
materna, Yelizaveta Alekseyevna Arsenyeva, que lhe proporciona
refinada educação por meio de tutores, com lições de francês,
alemão, inglês, grego, música e pintura. A avó fora desde sempre
contrária ao casamento da filha e, após a morte desta, ocorreram
diversos conflitos com o genro, resultando que a avó, por fim, ficou
com a guarda do pequeno Mishka, como o escritor era chamado na
infância. Toda essa desavença afeta a saúde de Liérmontov e, em
duas ocasiões, em tratamento, Liérmontov passa temporadas no
Cáucaso, aos seis e aos dez anos, o que marca a sua infância com
recordações da natureza, de contos, lendas, canções e costumes
populares.
Em
1830, ingressa na Universidade de Moscou, um forte centro de
conhecimento, cultura e debates, em que foi contemporâneo de
estudantes, como Vissarion Belinsky, Aleksandr Herzen, Konstantin
Aksakov e Nicholas Stankevich, que viriam a ter importante papel nas
letras e na cultura russas.
No
verão de 1832, Liérmontov já acumula uma produção de mais de
trezentos poemas líricos, três peças teatrais e alguns poemas
narrativos, com muita produção ainda imatura, mas já se encontra
também realização superior, como o poema antológico “O anjo”.
Há influências de Byron, Schiller e Victor Hugo.
Devido
a uma insubordinação contra um professor reacionário, deixa a
Universidade de Moscou e ingressa, em 1832, na Academia Militar,
carreira a que estaria ligado, a partir de então. Gradua-se em 1834
e passa a servir no Regimento de Hussardos em Tsárskoye Seló, nas
proximidades de São Petersburgo.
Em
janeiro de 1837, torna-se conhecido como poeta por causa de um fato
circunstancial: Púchkin morre em um duelo e Liérmontov faz divulgar
um poema, “A morte do poeta”, com uma crítica ácida não só ao
executor como também à nobreza aristocrática, culpando-a pela
tragédia, por ter fomentado intrigas que levaram à morte de
Púchkin.
No
trecho final do poema, lê-se:
E vós, descendentes de pais arrogantesQue a infâmia notória fez muito célebres,Vós, cujos pés servis esmagaram os vestígiosDas famílias feridas pelo jogo do Destino,Vós, ambiciosos, multidão em volta do trono,Carrascos do talento e da liberdade!Vós, que vos escondeis à sombra da lei,Diante de vós tribunais e verdade se calam.Sim, mas o Tribunal divino, degenerados,O Juiz terrível, ele vos aguarda,Ele é surdo ao som do ouro,Antecipado é seu conhecimento de juízos e causas.Então podeis bem usar a calúnia:Isso de nada vos servirá.Não limpareis vosso sangue negroDo sangue justo do Poeta. (2)
Tão
logo o czar Nicolau I toma conhecimento do poema, determina que
Liérmontov seja preso e, a seguir, exilado para servir num Regimento
no Cáucaso e atuar na repressão a rebeldes da Tchetchênia,
refugiados nas montanhas (vem, pois, de longa data essa animosidade).
O Cáucaso, que não lhe era estranho, pois o conhecia da infância,
foi duplamente importante para o escritor, nesse momento, pois volta
a tomar contato com a cultura e a natureza local, que será
importante, entre outros motivos, para a ambientação de Um herói
do nosso tempo e, ademais, toma contato com oficiais, nobres e
ativistas, igualmente exilados, remanescentes do movimento
dezembrista, de 1825.
Em
1838, volta a São Petersburgo, por
interveniência de sua avó e do poeta V. A. Zhukovsky. É
o período de sua plena maturidade artística.
Seus poemas são publicados nos jornais, entre eles “O demônio”,
a sua principal e mais ambiciosa obra em poesia, em cuja elaboração
dedicou-se desde a juventude. Aos vinte e três anos, passa a ser
considerado, como poeta, o sucessor de Púchkin. Integra-se ao
círculo de escritores de São Petersburgo e aproxima-se do corpo
editorial da revista “Otechestvennye
zapiski”, que
congrega intelectuais ocidentalistas. Dedica-se
à escrita de Um
herói do nosso tempo, publicada
em 1840,
que
é o ponto culminante de sua prosa e na qual expõe a sua visão da
sociedade russa de seu tempo.
Em
1840, é novamente sentenciado ao exílio no Cáucaso, por causa de
um duelo contra o filho do embaixador francês. Liérmontov solicita
engajar-se no serviço ativo, na expectativa de obter perdão e
retornar para São Petersburgo e, de fato, envolve-se em perigosas
operações militares.
Em
1841, Liérmontov obtém permissão temporária para retorno a São
Petersburgo, mas o escritor tem a expectativa de que conseguirá
ficar permanentemente na cidade. Volta cheio de planos, inclusive de
criar a sua própria revista literária, e decidido a completar obras
que tinha deixado incompletas.
Ainda em 1841, obtém licença médica para
tratamento e desloca-se para Piatigorsk. Nessa cidade, envolve-se em
uma discussão banal com um antigo colega da Academia Militar,
Nikolai Martynov; um duelo é marcado para dois dias depois. Unindo
vida à arte, no rastro de Byron, em 15 de julho de 1841, Liérmontov
é abatido com um tiro, nos moldes de cena marcante e de forte carga
dramática narrada em
Um herói do nosso tempo.
Aos vinte e seis anos, morre
o escritor que fora citado,
três anos antes,
pelo influente crítico Vissarion Belinsky, um
dos mais importantes intelectuais do século XIX na Rússia,
como “a grande esperança da literatura russa”.
Um
herói do nosso tempo é um
destacado exemplar, em prosa de ficção, do Romantismo russo, ao
mesmo tempo que prenuncia o Realismo, pela acurada análise da vida
interior de seu protagonista, Grigóri Alieksândrovitch Pietchórin,
e que terá
forte influência sobre a literatura russa posterior. O exame, de
maneira crua, do impulso destrutivo de Pietchórin, reaparecerá, com
outras premissas e de forma radicalizada, no protagonista anônimo de
Memórias do subsolo (1864),
de Dostoiévski.
Como
foi possível que a forma-romance chegasse, na primeira metade do
século XIX, a uma exposição tão descarnada do entrechoque de
sentimentos, dos conflitos e da perversidade de uma personagem que
esmaga friamente a inocência das mulheres que por ele se sentem
atraídas, de maneira totalmente oposta à vulgata ou à versão
folhetinesca do Romantismo?
Há
duas
chaves principais para situar
a posição e a originalidade de Um herói do nosso tempo
na literatura russa da primeira
metade do século XIX: a artística e a histórica.
A
visão romântica e o byronismo
O
Romantismo foi um dos
movimentos artísticos mais complexos e
repleto de contrastes da
história da arte, de tal
forma que, no dizer de Otto
Maria Carpeaux, “será melhor falar em ‘romantismos’, no
plural, do que em ‘romantismo’ ” (3). O Romantismo é o
equivalente artístico do terremoto político que foi a Revolução
Francesa, que põe abaixo, na
Europa, toda uma arquitetura
social, política e cultural anterior, aristocrática,
absolutista e centralizada na figura do rei,
isto é, a do Ancien Régime.
As violentas forças sociais
e políticas desencadeadas na França de 1789, o estilhaçamento das
instituições precedentes e as igualmente potentes reações e
instabilidades que se seguiriam tiveram a
mesma correspondência
cultural
no campo da expressão artística.
Para
Benedito Nunes, a visão romântica corresponde “a um período de
transição, que se situa entre o Ancien Régime
e o liberalismo, entre o modo de vida da sociedade pré-industrial e
o ethos nascente da
civilização urbana sob a economia de mercado, entre o momento das
aspirações libertárias renovadoras das minorias intelectuais, às
vésperas do grand ébranlement
de 1789, e o momento da conversão ideológica do ideal de liberdade
que essas minorias defenderam, no princípio de domínio real das
novas maiorias dirigentes, firmadas com o Império Napoleônico e
após a Restauração.” (4)
Os
artistas, diante de uma nova realidade, na qual os seus “produtos”
passam a estar sujeitos à nova lógica do mercado, sentem-se
excluídos dessa sociedade
burguesa e respondem “criando uma literatura ‘ideológica’, que
se situou conscientemente fora da realidade social: ou evadindo-se
dela, ou então atacando-a”, o que, na visão de Carpeaux, pode ser
entendido como resumo esquemático do Romantismo (5).
Entre
as suas diversas manifestações, o byronismo foi uma das mais
intensas e que se propagou rapidamente pela Europa e por todas os
locais onde o Romantismo se manifestou, inclusive no Brasil, na
chamada segunda geração romântica ou, na denominação de Alfredo
Bosi, a do romantismo egótico, de Álvares de Azevedo e Junqueira
Freire, entre outros. Curiosamente, contudo, a
recepção de Lord
Byron (George Gordon, Byron; Londres, 22 de janeiro de 1788 —
Grécia, Missolonghi,
19 de abril de 1824), um dos poetas mais lidos na Europa da primeira
metade do século XIX, de uma forma sem
precedentes e como nunca mais voltaria a ocorrer,
caiu em declínio, inclusive o próprio gênero que o celebrizou, o
poema narrativo, e hoje é pouco lido.
Desde
a adolescência, Byron deu-se conta, ao lado do talento literário,
de seu carisma e capacidade de sedução e, assim, desde cedo
envolveu-se nos mais diversos casos com jovens de ambos os sexos. Em
1809, embarca numa viagem com dois amigos pela Península Ibérica,
Albânia, Malta e Turquia; dessa experiência resulta, dois anos
depois, os primeiros dois cantos do poema A peregrinação
de Childe Harold, que lhe dão
rápida notoriedade. No
decorrer dos anos, a vida de Byron entrelaçaria a contínua
confrontação da moral corrente, pela sucessão de casos amorosos e
sexuais, e a entrega a aventuras revolucionárias, na Itália e, por
fim, na Grécia, onde viria a falecer.
Para
Arnold Hauser, “o herói romântico que Byron introduziu na
literatura é um homem misterioso; no seu passado há um segredo, um
pecado terrível, um erro desastroso, ou falta irreparável (…).
Não se poupa a si mesmo e é impiedoso para os outros. Não sabe o
que é o perdão e não pede piedade, nem a Deus nem aos homens.”
Mais adiante, o mesmo autor
anota que esse homem misterioso assume, no limite, a figura de um
“herói demoníaco que, possesso e desapontado, se arrasta, a si e
a tudo que leva consigo para a destruição”(6).
Esse
herói byroniano – Byron
é citado mais de uma vez em Um herói do nosso tempo
-, é influência evidente na configuração de Pietchórin.
O
levante dezembrista de 1825
Dezembrismo
é como ficou conhecido um levante de jovens oficiais da nobreza,
cuja origem remota está na Grande Guerra Patriótica (1812-1814), ou
seja, a luta do povo russo contra a invasão das tropas de Napoleão,
imortalizada em Guerra e paz, de Tolstói, e que passou a ter
um grande peso simbólico na vida cultural da Rússia, estendendo-se
até os dias de hoje; a mesma denominação é usada para a luta
contra as tropas de Hitler. Em reação à invasão francesa, as
tropas russas chegam até Paris e, lá, os oficiais tomam contato com
a herança do ideário libertário da Revolução Francesa, em
confronto com a resistência autocrática e anacrônica do Império
Russo, representada, principalmente, na persistência do regime
servil. Esse germe desenvolveu, ao longo dos anos, um pensamento
progressista, ainda que dividido em diversas concepções, em setores
da nobreza e da intelectualidade, comprometidos com a modernização
social e política da Rússia.
Em
1o. de dezembro de 1825, morre o czar Alexandre I, aos
quarenta e oito anos, que não tivera filhos. Pela regra sucessória,
assumiria como novo regente o irmão Constantino, este, contudo,
casado com uma polaca, residia em Varsóvia e renunciara aos seus
direitos, não obstante tal fato não fosse de conhecimento público.
Instaurou-se um impasse ao longo dos dias subsequentes à morte de
Alexandre I, o que gerou tensão, entre setores da oficialidade, da
nobreza e da intelectualidade comprometidos com mudanças e que, por
um lado temiam que o poder caísse nas mãos do irmão mais novo,
Nicolau, impopular e insensível e, por outro, viam nesse momento a
oportunidade para uma ação política insurrecional, objeto de
discussão desde há muito tempo.
A
posse de Nicolau foi marcada para 26 de dezembro. No dia 14 de
dezembro, data do juramento do Senado ao futuro titular do trono,
cerca de três militares reuniram-se no fim da manhã na Praça do
Senado, em São Petersburgo, clamando “Constantino e Constituição”,
simultaneamente à divulgação de um manifesto ao povo, pelo qual se
defendia o fim do regime servil, dissolução do Governo e convocação
de Assembleia Constituinte. A repressão de Nicolau, já informado
dos fatos, foi brutal: tropas atiraram contra os revoltosos,
resultando em cinquenta mortos, as lideranças foram encarceradas,
houve cinco execuções, decretou-se a pena de exílio para a maior
parte dos insurrectos.
O mais grave: o levante levou a um agravamento
da regência; a censura tornou-se mais rígida, criou-se o Terceiro
Departamento, com funções de polícia política, restrições de
viagem foram impostas e o regime adotou e passou a divulgar nas
escolas e Universidades uma doutrina oficial nacionalista.
Em resumo,
o longo reinado de Nicolau I, com o afastamento de incontáveis
ativistas, artistas e pensadores, foi caracterizado por uma
estagnação política e do debate público, alienação e desalento,
o que teve, contudo, o efeito colateral de legar à literatura o
papel de depositária dos sonhos, frustrações e anelos.
A engenhosa estrutura do romance
É
muita criativa e arrojada a concepção de Um herói do nosso
tempo: o romance, todo ele passado nas paisagens caucasianas,
está dividido em duas partes, com três narrativas em cada uma
delas; a última narrativa da primeira parte é antecedida por um
Prefácio. Acresce que cada uma dessas partes apresenta-se,
com variantes, na forma de narrativa em moldura, a saber: há um
narrador em primeira pessoa que, por sua vez, faz a trama
desenvolver-se por meio de outro narrador ou cede a voz narrativa
para uma outra personagem. Por meio de diferentes vozes, portanto,
acompanhamos segmentos da vida da personagem a que se refere o
título, Grigóri Alieksândrovitch Pietchórin.
Pouco
sabemos, sequer o nome, do narrador que primeiro cede a sua voz; mais
uma ousadia. É um oficial, um capitão (p. 15), com pretensões
literárias, que está em viagem pelo Cáucaso. Nada mais sabemos,
não obstante se tratar de narração em primeira pessoa.
Na
primeira narrativa, a novela “Bela”, o narrador está a caminho
de Stavropol, para em uma taberna e encontra um “oficial, sem
dragonas”, e passa a entabular uma conversa:
- E o senhor, está há muito tempo servindo por aqui?- Estou. Já servia nos tempos de Alieksiêi Pietróvitch – respondeu, empertigando-se. - Quando aqui chegou, eu era suboficial e sob o seu comando fui promovido duas vezes por ações contra os montanheses.- E agora, o senhor…?- Agora pertenço ao Terceiro Batalhão de fronteiras. E o senhor, posso perguntar?Eu lhe respondi.Nesse ponto a conversa cessou e continuamos caminhando lado a lado, calados. (pp. 9-10)
Trata-se
de Maksim Maksímitch.
Eu estava morrendo de vontade de arrancar-lhe alguma historinha – vontade própria de quem viaja e faz anotações. (p. 13).
Instado
pelo narrador, Maksim Maksímitch passa a contar uma história
ocorrida cinco anos antes com um oficial de uns vinte e seis anos,
chegado ao Cáucaso por transferência da Rússia: Pietchórin.
Nesse
ponto, cabe um alerta: as características de Pietchórin podem levar
a ver nessa personagem um alter-ego do escritor e foi, de fato, o que
aconteceu à época do lançamento do romance, o que fez com que
Liérmontov incluísse um ríspido “Prefácio do autor”, que
consiste numa verdadeira profissão de fé do romancista e revela,
assim, a sua a elevada consciência artística:
Não faz muito, esse livro foi alvo da infortunada credulidade de alguns leitores e até de revistas pelo sentido literal das palavras. Uns ficaram terrivelmente ofendidos , e a sério, por se lhes imputar o exemplo de uma personagem tão imoral como o de O herói de nosso tempo; outros observaram muito sutilmente que o autor tinha desenhado o seu próprio retrato e os retratos dos seus conhecidos… Velha e mesquinha brincadeira!(…)O herói de nosso tempo, meus caros senhores, é realmente um retrato, mas não o retrato de um só indivíduo: é o retrato dos vícios de toda a nossa geração, que estão em pleno desenvolvimento.(…)Direis que a moralidade nada ganha com isso. Desculpai. Muita gente tem sido alimentada a doces, por isso anda de estômago deteriorado; são necessários remédios amargos, verdades azedas. Mas não fiques pensando, entretanto, que o autor deste livro tenha tido alguma vez o orgulhoso sonho de corrigir os vícios humanos. Deus me livre de tamanha ignorância! Achou simplesmente divertido descrever o homem contemporâneo tal como o entende e, para a sua e a vossa infelicidade, o homem que ele em encontrado com mais frequência. Já é bastante que tenha apontado a doença, porque, como curá-la, só Deus sabe. (pp. 1-3).
Em
“Bela”, Maksim Maksímitch conduz-nos à história da atração
de Pietchórin pela filha de dezesseis anos de um príncipe tártaro,
que conhecera na festa de casamento da irmã da jovem. A novela tem
um fim trágico. E já temos uma amostra, que se repetirá ao longo
do romance, da ambiguidade de Pietchórin, cuja alma transita entre o
impulso para a sedução, o tédio, o desespero e o demoníaco:
Se sou tolo ou malvado, não sei; a verdade, porém, é que também mereço compaixão, talvez mais do que ela: tenho a alma corrompida pela sociedade, a imaginação intranquila, o coração insaciável; nada me basta: eu me acostumo à tristeza com a mesma facilidade com que me acostumo ao prazer, e minha vida vai ficando dia a dia mais vazia; resta-me um recurso: viajar. Tão logo seja possível, viajarei: apenas não será para a Europa, Deus me livre! Irei à América, à Arábia, à Índia – talvez morra no caminho em algum lugar! (p. 50).
Em
“Maksim Maksímitch”, o narrador volta a encontrar-se com
o
oficial que dá o título a essa narrativa. Ao fim, o narrador herda
os papéis que eram de Pietchórin e estavam de posse de Maksim
Maksímitch. Com isso, a partir de “Taman”, narrativa seguinte,
com formato de conto, e até o final do romance, a voz narrativa
passa a ser assumida por Pietchórin, pois as narrativas seguintes
serão reprodução dos diários dessa personagem.
“Taman”,
que é o nome de uma cidade do Cáucaso, tem um caráter fabular, de
conto oriental, com elementos fantásticos. Mais uma vez, Pietchórin
sente-se atraído por uma jovem de não mais de dezoito anos; está
é, contudo, enigmática e misteriosa, uma exceção no romance.
Segue-se
a mais longa, complexa e instigante narrativa do romance, “A
princesinha Mary”. O cenário, muito apropriadamente para o clima
de estiramento moral desse capítulo, é Piatigosrk, uma estação de
águas a que acorrem pessoas para tratamento de saúde, balneário,
lembre-se, onde ocorreu o duelo que vitimou Liérmontov.
Instala-se
um triângulo amoroso, no qual Pietchórin manipula os sentimentos
alheios a seu bel-prazer, não obstante envolto em dúvida e
torturas, e ressalta o contraste do jovem oficial com a inocência
violada de uma jovem, de um lado, e, de outro, a dedicação que
beira a humilhação de outra mulher, a quem Pietchórin já conhecia
e reencontra na cidade.
A que aspiro? Que espero do futuro?… Para falar a verdade, absolutamente nada. (p. 173).
Segue-se
um conto curto, “O fatalista”, permeado pela reflexão pessimista
sobre a predestinação em contraposição ao anseio pela liberdade,
no qual nos deparamos com a prosa refinada de Liérmontov:
E nós, seus mesquinhos descendentes, que vagamos pela terra sem convicções nem orgulho, sem prazer nem pavor, salvo aquele medo involuntário que nos oprime o coração quando pensamos no fim inevitável, já não somos capazes de grandes sacrifícios nem pelo bem da humanidade nem pela nossa própria felicidade, porque a sabemos impossível, e passamos indiferentes de uma dúvida a outra como os nossos antepassados se lançavam de um equívoco a outro, sem termos, como eles, nem esperança nem aquele prazer indefinido porém verdadeiro que a alma encontra em qualquer luta contra os homens ou contra o destino. (p. 216).
Surpreendentemente,
mais uma vez de maneira ousada, o romance termina como obra aberta,
exigindo, assim, o envolvimento pleno do leitor nessa bela obra do
Romantismo russo.
Auto-retrato de Mikhail Liérmontov (1837-1838)
Notável
e meritória a tradução de Paulo Bezerra, tanto pela beleza da
realização, feito repetido nas tantas obras da literatura russa que
esse estudioso nos trouxe, como por nos ter trazido um autor seminal
do romantismo russo, até então praticamente inédito entre nós,
afora traduções esparsas de sua lírica. Fica o desafio de termos
minimamente uma boa antologia da poesia do “poeta do Cáucaso”,
principalmente “O demônio”, obra a que o escritor se dedicou
por longos anos. Bóris Schnaiderman e Nelson Ascher dedicavam-se à
tradução de uma selete de poemas do autor, mas a tarefa foi
interrompida pela morte do grande divulgador entre nós da literatura
e cultura russas. Aguarda-se que essa produção venha a lume.
*
O
poema “O demônio” serviu de inspiração para a ópera homônima
(1871) do pianista, compositor e regente russo Anton Rubinstein
(1829-1894), com libreto de Pavel Viskovatov.
*
Falta
igualmente conhecer Mascarada, drama nunca encenado em vida do
autor, vítima da censura. A peça estreou em 1917, pelas mãos de
Meyerhold, às vésperas da Revolução russa de fevereiro, fato
curioso que é objeto da dissertação de mestrado de Paola Fernandes
Zamboni (“Mascarada, uma jornada fascinante da peça de
Liérmontov aos palcos de Meyerhold”. Universidade de São Paulo,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de
Letras Orientais, 2013), pesquisa igualmente meritória, pois
Liérmontov é autor pouco pesquisado entre nós.
*
Sergei
Prokofiev compôs a trilha sonora para o filme-biográfico
“Lermontov”, dirigido por Albert Gendelshtein (Soyuzdetfilm,
União Soviética, 1943). Novo filme sobre a vida do escritor seria
realizado também na União Soviética, em 1985, direção de Nikolay
Burlyaev, (Mosfilm).
*
UM
SONHO
Num
vale daguestano eu expirava,
chumbo
no peito, inerte, ao meio-dia;
a
chaga funda ainda fumegava,
meu
sangue gota a gota se esvaía.
Jazia
sobre a areia, abandonado,
penhascos
me rodeavam, e um sol forte
queimava
cada cimo alto e dourado,
bem
como a mim, num sono já de morte.
Sonhava
que na terra onde nascera
caía
a noite e havia num festim,
com
flores no cabelo e de maneira
jovial,
moças falando sobre mim.
Mas,
longe da alegria e da conversa,
sentava-se
uma delas de ar tristonho
e
a sua jovem alma estava imersa
na
mágoa só Deus sabe de que sonho.
Num
vale daguestano, ela sonhava
que,
inerte, um corpo familiar jazia,
sua
chaga enegrecera e ele sangrava
numa
torrente cada vez mais fria.
Mikhail
Liérmontov
Tradução:
Boris
Schnaiderman (1917-2016), tradutor, escritor e ensaísta ucraniano
radicado no Brasil.
Nelson
Ascher, 60, é poeta e tradutor, autor de Parte Alguma
(Companhia das Letras) (7)
_________
(1)
Edição utilizada:
LIÉRMONTOV,
Mikhail. Um herói do nosso tempo. São Paulo: Martins Fontes,
1999. Coleção Clássicos, 223 pp. Introdução de Paulo Bezerra;
cronologia. Revisão da tradução: Vadim Valentinovitch Nikitin.
Projeto gráfico: Katia Harumi Terasaka. Brochura, 14x20cm. Imagem na
capa: retrato de Liérmontov, segundo um desenho de Pasternak, 1891,
detalhe. ISBN 85-336-1073-4.
(2)
Tradução de Irapuan Costa Júnior, In: Jornal Opção, edição
2158, Tocantins, 12/11/2016.
https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/traducao-de-a-morte-do-poeta-poema-do-russo-mikhail-liermontov-79871/
Consultado
em 11/6/2018.
(3)
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio
de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1962, vol. IV, p. 1652.
(4)
Benedito Nunes, “A visão romântica”, In: GUINSBURG, J. (org.).
O Romantismo. 2a. ed., São Paulo: Perspectiva,
1985, p. 53.
(5) Id., ibid., p. 1651.
(6)
HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. 2a.
ed., trad. Walter H. Geenen, São Paulo: Mestre Jou, 1972, pp.
864-865.
(7)
In: Folha de S. Paulo, 19/6/2016.
*
Imagens:
Cenas do balé "Um herói do nosso tempo", Cia. Bolshoi, apresentada por ocasião do bicentenário de nascimento do poeta, em 2014. Direção de Kirill Serennebrikov, coreografia de Yuri Possokhov, música de Ilya Demutsky.
https://www.bolshoirussia.com/performance/hero-of-our-time/
Auto-retrato de Liérmontov:
https://www.moscovery.com/mikhail-lermontov/
Mily Alexeyevich Balakirev (Níjni Novgorod, 2/1/1837 - São Petersburgo, 29/5/1910), "Tamara" (1882), com base em poema de Liérmontov. Orquestra Sinfônica de Montreal, sob regência de Kent Nagano.