quarta-feira, 4 de abril de 2018


Liturgia do fim, de Marília Arnaud

O patriarcalismo e as raízes da violência

 

                        Iberê Camargo, "Auto-retrato", 1983


Começo pelo dia em que saí de casa. À medida que o ônibus se afastava do lugarejo, a massa verde-escura, recortada contra o céu de anil, ia se dissolvendo lentamente numa bruma de poeira e olhos marejados, minha vida a se despregar de mim, a se desmanchar no vazio. Num estupor de animal dessangrado, órfão de mim mesmo, eu estava lá e não estava, e embora a manhã espanejasse a plumagem de luz sobre todas as coisas, eram as asas da noite que se estendiam por cima de Perdição. (p. 11).

Vem de Campina Grande (terra do dramaturgo Paulo Pontes), a ficcionista Marília Arnaud, atualmente residente na Capital paraibana, que atinge com o seu segundo romance, após início de carreira no conto, maturidade artística admirável, fazendo de Liturgia do fim (1) uma obra marcante na literatura brasileira dessa segunda década, com muitos e variados méritos.

Respondendo à revista “A Semana”, a propósito do lançamento de seu primeiro romance, Suíte de silêncios (Rio de Janeiro: Rocco, 2012), Marília Arnaud é indagada sobre uma possível produção poética; a escritora responde que “nunca pensei em fazer poesia” (2). Nem é necessário: uma das qualidades marcantes de Liturgia do fim é justamente o fino artesanato de uma escrita que se esmera na musicalidade de assonâncias e aliterações, no ritmo da frase ou do período, cadenciados segundo as intenções dramáticas dos fatos narrados, muitas vezes em longas orações encadeadas, e na riqueza extraordinária do léxico e das imagens. Como nesse belo trecho, em que a sinestesia dos sons, das fragrâncias e das cores e figuras da Natureza entrelaçam-se, num crescendo sufocante, com a angústia da personagem:

Podia ouvir a cantiga do vento lapeando a ramaria, o clangor de um ferreiro rasgando a solidão da mata, a flauta da correnteza nos calhaus do riacho, o tinido de chocalhos misturado à toada de garotos na guiança de cabras. O mundo murmurava um segredo que irrompia do ventre da serra, que soprava nos milharais, estalejava nos galhos das árvores, recendia nos frutos, o meu segredo, um soluço da natureza a me queimar os ouvidos, uma melodia a ressoar alucinadamente dentro de mim, uma cascata de acordes que avançava para além das margens, alagando-me, submergindo-me, forçando-me as comportas do peito. (pp. 33-34).

A poesia da escrita de Liturgia do fim, um dos grandes prazeres da obra, não é, contudo, uma música a serviço de si mesma. Temos aqui um romance solidamente estruturado que mantém o leitor firmemente atado à sua trama.
Inácio retorna, após trinta anos, à Perdição de sua infância e juventude: localidade fictícia, cujo nome tem alta carga simbólica.

É próprio da narração em primeira pessoa impelir o leitor para a memória, as experiências, a visão de mundo do narrador. No caso de Liturgia do fim, a trama consiste no lento e angustiante processo pelo qual o Narrador, Inácio (e, por via de consequência, o leitor), toma consciência, em sua totalidade, lentamente e a custo, do percurso trágico de sua existência, juntando cacos, fragmentos e cenas.
Muito da estratégia narrativa ou da atitude do Narrador em relação ao público advém justamente do suspense sobre a história que se formará, ao fim, a partir das peças do quebra-cabeça que vão sendo colocadas aleatoriamente pelo Narrador.
O leitor sente-se como se colocado na posição de um analista que ouve a trama exposta por Inácio, muito embora o Narrador não se dirija a alguém em especial, mas a si mesmo. Aos poucos, a narrativa indica que há um ou mais acontecimentos traumáticos, recalcados no inconsciente do Narrador, aos quais o protagonista tenta dar forma ou organizar no plano do consciente, no anseio de alcançar perdão, remissão, libertação.

Raramente me ligava. Nunca àquela hora da manhã. Fui acordado com alguém me chamando à porta do quarto. Vesti-me rapidamente e fui atender ao telefone. Na véspera, sonhara que meus dentes despencavam e desapareciam pelo ralo de um lavatório, e a sensação angustiante de boca vazia e fatalidade anunciada perdurara o dia inteiro.
Mãe? Atropeladas pelo choro, as palavras de desespero não se ordenavam em sua boca, até que um sentido, a princípio inimaginável, foi ganhando forma e, áspero contundente, arremeteu-se contra mim e me fez desabar. Maldito pai! Veneno de aguilhões por todo o corpo, talho fundo na alma, morri naquele instante, naquela manhã, e segui morrendo, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo, até hoje, até agora, quando morro ainda, o ar rarefeito, o peito esbagaçado por patas disparadas de pampas e alazões. (p. 20).

Numa dupla jornada de retorno a Perdição - retorno numa viagem para visitar o pai muito doente e retorno em memória, investigando o seu passado e os traumas e as tragédias ali soterrados, a narrativa de Liturgia do fim é, pois, num primeiro plano, a tentativa de Inácio de, impulsionado pela culpa, rever a sua existência e a ela dar sentido e significado, buscando as raízes de uma vida que, massacrada pelo pai, Joaquim Boaventura, ficou para sempre acorrentada em elos de culpa a Perdição, muito embora dela distante, e redundou em fracasso, desnorteamento, embrutecimento e solidão.

Na casa de sua infância, estão agora, nesse retorno de Inácio, apenas o pai moribundo e Damiana, agregada que desde menina foi acolhida e é testemunha silenciosa de toda a desventura da família. A mãe, Adalgisa, a irmã, Ifigênia – esta, peça central na tragédia que empurrou Inácio para o exílio de si mesmo -, a outra irmã, Teresa, tia Florinda e seu filho, Felinto, estão todos mortos.

Acovardado, perambulei pela vida, arrastando correntes, réu errante a bater no peito, por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa. (p. 21).


                                                             Iberê Camargo, "Fantasmagoria III", 1987


Em um plano superior, acima das circunstâncias específicas das vidas dos integrantes da família Boaventura, monta-se, no decorrer dos dez capítulos do romance, o quadro do patriarcalismo brasileiro e como daí deflui e reconstitui-se, geração a geração, o seu correlato, a saber, a violência como essência da formação familiar dos indivíduos, lastreada na relação hierárquica entre homem e mulher e entre pai e filhos.

Desvelador no romance é, igualmente, a investigação de como as estruturas sociais e familiares apropriam-se, de maneira patológica, dos valores religiosos como meios auxiliares de opressão para a manutenção do patriarcalismo. Ocorre que a narrativa mostra justamente o avesso dessas práticas que, em verdade, acabam por encobrir as perversões dos indivíduos:

Em nome desse Deus e amparado em lendas bíblicas, alegorias crísticas, salmos, versículos, novenas, terços, penitências, criaste teus filhos com severidade e frieza, mas comigo, pai, especialmente comigo, por razões que me eram obscuras, ias além, confessa, confessa que me querias comendo no cocho, gastando o couro ao sol e à chuva do pasto, carregando no lombo teus picuás, balançando o rabo à tua passagem, lambendo a merda nos teus coturnos, e que quando me encaravas com teu olhar de domador querias aniquilar o infame e o absurdo que existia de ti em mim. (p. 67).

Encobriste tua paixão com a máscara do patriarca, do guardião dos bons costumes, do homem reto e religioso, cidadão respeitado e cumpridor dos seus deveres, mas não para mim, pai, sangue do teu sangue, carne da tua carne, de quem arrancaste a inocência com o peso da tua falta. Assinalavas em mim o pecado, e o pecado, em toda a sua bestialidade, flamejava em tuas mãos de sátrapa, em tua face farisaica, em teu olhar de canga. (p. 66).

Muito embora a opressão do patriarcalismo dirija-se de forma contundente à mulher, são as figuras femininas as personagens fortes do romance.

Ifigênia, irmã de Inácio:

Ifigênia. Nem seu Joaquim Boaventura conseguia por-lhe peia, a única que o arrostava, sem palavras, a cabeça erguida, o olhar aprumado. Peça perdão ao seu pai, menina de gênio ruim, implorava mamãe, e ela não lhe dava ouvidos, não arredava de si, empertigada, os lábios grossos bem abotoados, senhora de um mundo indevassável. (…)
De minha parte, não acreditava que ela se comportasse assim por orgulho ou capricho, como mamãe imaginava, antes supunha que desejava nos mostrar, a nós, trancafiados em nosso servilismo e temor, que era possível viver sem jugo, e daquela firmeza triste que se alçava dentro dela rebentava um canto de liberdade. (p. 41).

Ieda, esposa de Inácio, da qual ele se separa, deixando também a filha, para voltar a Perdição:

A confiança em si mesma e no mundo repousava na própria natureza de Ieda, e me parecia um milagre que, diante de tanta vida, aquele sentimento não houvesse enfraquecido nem se degradado. (p. 32).

Da mesma forma, Adalgisa, mãe de Inácio, e Damiana, lutam para dar humanidade ao ambiente áspero de Perdição, como fruto do controle férreo exercido pelo pai, Joaquim Boaventura. A própria loucura de tia Florinda é apresentada como uma recusa à “normalização” de submeter-se e aceitar a opressão do patriarcalismo, cujo poder é tão implacável que as personagens que ousam desafiá-lo, as femininas notadamente, ou enlouquecem ou dão cabo da própria vida ou têm as suas vidas transformadas em ruínas, como é o caso de Inácio.

Por causa de um forte conflito com o pai, Inácio deixa Perdição, mas a sua vida estará para sempre marcada por uma tragédia ali passada. Inácio joga toda a sua energia nos livros e na ambição de tornar-se um artista; casa-se, dedica-se a lecionar, em seguida ingressa na vida acadêmica, consegue algum reconhecimento como escritor, por fim, mas leva a sua existência como um exilado de si mesmo, incapaz de estabelecer vínculos reais seja com a esposa, a quem trai compulsivamente, com o trabalho e até mesmo com a sua pretensão artística, cujo produto mostra-se, ao final, artificioso e estéril. Inácio projeta-se em sua sexualidade puramente instintiva, esquecendo as mulheres com as quais se relaciona tão logo lhes dá as costas.

O ódio que Inácio devota ao pai volta-se contra ele mesmo, pois ele se vê como vítima e, por outro lado, lamenta a covardia de não ter se insurgido contra a opressão patriarcal e, principalmente, de ter fechado os olhos para os vínculos verdadeiros que nos unem às pessoas.

*

Ressalte-se, por fim, que, embora passado em meio rural, o romance foge ao regionalismo. Não há nenhum acento típico nas falas das personagens e laivo algum de exotismo. Muito pelo contrário. Liturgia do fim estabelece-se sobre outro registro: o da tragédia transposto para a estrutura do gênero romance. Temos aqui a transposição da inevitabilidade do Destino, típico da tragédia antiga aqui na forma do patriarcalismo, ao qual as personagens estão submetidas -, para o herói problemático do romance, que, na formulação de Georg Lukács, é a epopeia do mundo abandonado por deus (3).
Essa fatura elevada é dada no romance por constantes intertextualidades que remetem às escrituras bíblicas ou à tragédia ou épica antigas, inclusive no nome da marcante personagem Ifigênia.

Bastaria que eu começasse, te lembras, Damiana, do dia em que papai me expulsou de casa?, e ela logo emendaria sua memória na minha, porque também estava lá quando o impedi que matasse a própria filha, depois de tê-la arremessado contra a parede, chutando-a violentamente, enquanto rugia vadia, vadia, quem foi o canalha?, com mamãe esgoelando, pelo amor de Deus, para, Joaquim, para!, e nós todos ali, incrédulos e aterrorizados diante da fúria grandiosa daquele que parecia ter saltado das páginas do Velho Testamento para nos castigar, a nós, os ímprobos, os impuros, pois não eras tu, pai, o Deus do nosso ordinário mundo? E porventura não sabias que a língua é capaz de destrancar as páginas do inferno? (p. 48).

Uma palavra eu não tinha para a tecelã que urdia na profundeza da carne, com as ramas do próprio sangue, uma trama invisível de urgência e silêncio, fio a fio de uma última e secreta espera. Odisseu ordinário, à deriva num mar estrangeiro, fustigado pelas asas de uma tempestade, náufrago desde sempre, visceralmente derrotado, eu não voltaria à minha Ítaca de perdição, nem em nove meses, nem em vinte anos. (p. 100).

Belo e profundo romance da talentosa escritora paraibana. Que venham outros.




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(1) Edição utilizada:
ARNAUD, Marília. Liturgia do fim. São Paulo: Tordesilhas, 2016, 149 pp., 21x13cm. Texto de orelha: Maria Valéria Rezende. Capa: Andrea Vilela de Almeida. Projeto gráfico: Kiko Farkas e Thiago Lacaz. Impressão com tipografia Electra, em papel Lux Cream 70g.
ISBN 978-85-8419-043-0

(2) Em: https://www.trt13.jus.br/informe-se/noticias/2012/08/a-escritora-marilia-arnaud-lanca-mais-um-livro-desta-vez-o-romance-2018suite-de-silencios2019
Consultado em 4/4/2018

(3) LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo, São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2000, p. 89.

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Crédito das imagens:


Iberê Camargo, "Auto-retrato", 1983. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra4022/auto-retrato>. Acesso em: 04 de Abr. 2018. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7




Iberê Camargo, "Fantasmagoria III", 1987. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2281/fantasmagoria-iii>. Acesso em: 04 de Abr. 2018. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7






Eli-Eri Moura (Campina Grande, Paraíba, Brasil, 1963), "Circumfractus para Quarteto de cordas".