domingo, 13 de novembro de 2016



Os sertões, de Euclides da Cunha

Há cento e vinte anos, começava a repressão a Canudos








"Arraial de Canudos, visto pela Estrada do Rosário", Demétrio Urpia, litografia, 1897 (1).


Relata o general Frederico Solon, comandante do 3° Distrito Militar:
A 4 de novembro do ano findo (1896) em obediência à ordem já referida, prontamente satisfiz a requisição, pessoalmente feita pelo dr. Governador do Estado, de uma força de cem praças da guarnição para ir bater os fanáticos do arraial de Canudos, asseverando-me que, para tal fim, era aquele número mais que suficiente.
Confiado no inteiro conhecimento, que ele devia ter, de tudo quanto se passava no interior de seu Estado, não hesitei; fazendo-lhe apresentar, sem demora, o bravo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, do 9° Batalhão de Infantaria, a fim de receber as suas ordens e instruções, o qual, para cumpri-las, seguiu, a 7 do dito mês, para Juazeiro, ponto terminal da estrada de ferro, na margem direita do rio São Francisco, comandando três oficiais e 104 praças de pré daquele Corpo, conduzindo apenas uma pequena ambulância, fazendo eu seguir logo depois um médico com mais alguns recursos para o exercício da sua profissão. O mais correu pelo Estado.”
(Euclides da Cunha - Os sertões - Campanha de Canudos. Edição, prefácio, cronologia, notas e índices Leopoldo M. Bernucci, 2a. ed., São Paulo, Ateliê Editorial, 2001, “A luta – Preliminares", pp. 342-343).

Conforme conta o general Solon, coincidentemente sogro de Euclides da Cunha (Cantagalo, RJ, 20/1/1866 - Rio de Janeiro, RJ, 15/8/1909), em documento recolhido pelo escritor e incluído na sua obra magna, no dia sete de novembro de 1896 o destacamento comandado pelo tenente Pires Ferreira chegou a Juazeiro, de trem, distante mais de duzentos quilômetros de Canudos.

A partir de um fato banal, mas que se desenvolvia sob o pano de fundo de tensões e contradições decorrentes das andanças e peregrinação, havia vinte e dois anos, de Antonio Conselheiro pelos sertões da Bahia e de Sergipe, tinha início, o conflito de Canudos.

A total incompreensão das autoridades da época sobre o que se passava em Canudos, o uso desmedido da força bruta e o bárbaro desfecho do conflito – vitimando a quase totalidade da população de vinte mil pessoas do Arraial - tornaram-se fatos centrais na História brasileira. Por isso, Canudos fixou-se, principalmente por força do relato épico de Euclides da Cunha, como o conflito-símbolo de todas as recorrentes e igualmente violentas repressões em nosso país, recolocando em questão, entre nós, para usar a expressão de Celso Furtado, a construção continuamente interrompida da nossa formação nacional.

Três anos antes, Antonio Conselheiro e seus seguidores haviam se fixado na região de Canudos, rebatizada pelo líder religioso como Belo Monte.
A então comarca de Canudos teve um marco especial na evolução de seu povoamento quando, em 1785, o frei capuchinho italiano Apolônio de Todi, que andava pela região em missão religiosa, ali esteve e, congregando os fieis, edificou uma Via Sacra. Com o tempo, o local tornou-se centro de romarias, propiciando um crescimento da povoação.

Logo que chegou à localidade, Antonio Conselheiro construiu uma igreja, dedicada a Santo Antonio, onde só havia uma capela, e planejou construir uma outra muito maior – Igreja de Bom Jesus – cujas obras iniciaram-se em 1896. Justamente daí, aguçados por tramas anteriores, desencadeiam-se os fatos.



http://www.patrimoniovivo.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2014/02/xilo-Conselheiro1.jpg


Xilogravura, João Pedro do Juazeiro, 2014


Antonio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando rompimento anelado.
O principal representante da justiça do Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que sendo juiz do Bom Conselho fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele.
Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato, aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação de São Francisco; as madeira seriam de lá arrebatadas, à força.
(Id., ibid., pp. 339-340).


Ao fim da batalha, que se deu na localidade de Uauá, a cem quilômetros de Canudos, muito embora os sertanejos dispusessem de armamento grosseiro e tivessem baixas muito maiores – cento e cinquenta ante as dez perdas entre as forças oficiais -, o comandante desistiu de prosseguir na empresa


Assombrara-o o assalto. Vira de perto o arrojo dos matutos. Apavorara-o a própria vitória, se tal nome cabe ao sucedido, pois as suas consequências o desanimavam. O médico da força enlouquecera... Desvairara-o o aspecto da peleja. Quedava-se, inútil, ante os feridos, alguns graves.
A retirada impunha-se, por tudo isso, urgente, antes da noite, ou de um outro recontro, ideia que fazia tremer aqueles trinfadores. Resolveram-na logo. Mal inumados na capela de Uauá os companheiros mortos, largaram dali sob um sol ardentíssimo.
Foi como uma fuga.
(…)
E as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja.
(Id., ibid., pp. 351-352).


*

O assalto final contra os sertanejos iniciou-se no dia 1° de outubro de 1897. Os últimos quatro combatentes – dois homens, um velho e um menino – tombaram no dia cinco do mesmo mês.

*

Euclides da Cunha acompanhou pessoalmente o conflito, como correspondente, a convite de Júlio Mesquita, proprietário do jornal “O Estado de S. Paulo”. Chegou à região no dia 30 de agosto de 1897, lá permanecendo até o dia 3 de outubro. A redação do livro foi iniciada imediatamente após o seu retorno da Bahia.
Nota cômica: em dezembro de 1901, ante o desinteresse do diretor da editora Livraria Laemmert, o escritor resolve bancar parcialmente a publicação do livro. A obra é lançada um ano depois e torna-se um sucesso de vendas, recebendo críticas altamente elogiosas dos principais críticos da época: Araripe Júnior, José Veríssimo e Sílvio Romero. Uma segunda edição foi lançada em junho do ano seguinte.
Nascia um clássico da literatura brasileira.

*

Euclides da Cunha foi eleito em 21 de setembro de 1903 para a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras; tomou posse no dia 18 de dezembro de 1906, sendo recebido pelo acadêmico Sílvio Romero.

*

Uma mente tão privilegiada e inquieta, reunindo conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos de sua época, Euclides da Cunha teve a vida tragicamente abreviada, ao morrer no dia 15 de agosto de 1909, aos quarenta e três anos, alvejado por quatro tiros, desferidos pelo cadete Dilermando de Assis, amante de sua esposa, Anna de Assis.

*

O impacto dessa mancha na história brasileira, repercutida pela obra-prima de Euclides da Cunha, é tão grande que, afora a reprodução no imaginário de incontáveis artistas brasileiros, nos mais diversos gêneros artísticos, houve repercussão inclusive fora das fronteiras nacionais. Dois escritores estrangeiros, entre outros, impressionados com a leitura do épico da nossa literatura, recriaram, cada um a seu modo, os episódios de Canudos.

Mário Vargas Llosa visitou os locais do conflito e conversou com moradores da região, para redigir o romance A guerra do fim do mundo, lançado originalmente em 1982 (publicado no Brasil pela Alfaguara, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht, 2008, 608 pp.).

Também o escritor húngaro Sándor Márai publicou em 1970, no Canadá, uma versão ficcional dos fatos - Veredicto em Canudos -, após ler uma versão em inglês da obra brasileira. O romance de Márai foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2002 (trad. Paulo Schiller, 160 pp.).




Euclides em perfil retratado por George Huebner e Libânio do Amaral. Manaus, Amazonas, [nov.] 1905



Euclides da Cunha, retratado por George Huebner e Libânio do Amaral, Manaus (AM), 1905.

Euclides em perfil retratado por George Huebner e Libânio do Amaral. Manaus, Amazonas, [nov.] 1905


*

(1) Essa litografia foi feita pelo então juiz da comarca de Tucano (BA), com base em informações de oficiais da Expedição Moreira César, derrotada pelos sertanejos no início de março de 1897.







 "A história fará sua homenagem", Gereba Barreto e Ivanildo Vilanova, 2015, nos cento e oitenta e cinco anos de nascimento de Antonio Vicente Mendes Maciel (Quixeramobim, CE, 18/3/1830 - Canudos, BA, 22/9/1897), o Antonio Conselheiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário