segunda-feira, 21 de novembro de 2016



A IMENSIDÃO ÍNTIMA DOS CARNEIROS, DE MARCELO MALUF

A busca da redenção diante das catástrofes da História





Marcelo Maluf, com o seu primeiro romance, fez muito bem à literatura brasileira e reconheceu-o o Júri final do Prêmio São Paulo de Literatura, na edição de 2016, que laureou a obra para a categoria de autor estreante com mais de quarenta anos.

Explico: fugindo ao realismo-naturalista, Marcelo Maluf recorre às memórias e às raízes culturais dos seus antepassados, para criar uma obra que, sem deixar de desenvolver uma profunda reflexão sobre a condição humana – ou, melhor dizendo, por isso mesmo: para adensá-la – reveste-se de livre imaginação e de fantasia não evasionista. Temos aqui, dessa forma, uma obra de arte no seu verdadeiro sentido, por meio da qual, por mecanismos próprios dessa forma de conhecimento, o leitor é convidado, como é característico da modernidade e do lúdico da arte, a participar da maquinaria artística e a romper o automatismo do cotidiano, a fim de alargar a percepção do real, o que, aliás, sempre foi o papel da arte, cuja urgência, contudo, foi potencializada com a força apassivante dos produtos culturais massificados.

Lembremo-nos, a propósito, da reflexão do filósofo alemão Theodor Adorno sobre qual realismo se exige do romance na Modernidade e como esse gênero ainda pode ter algo especial a dizer em oposição ao mundo administrado e à estandardização:

Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas auxilia na produção do engodo. A reificação de todas as relações entre os indivíduos, que transforma suas qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria, a alienação e a auto-alienação universais, exigem ser chamadas pelo nome, e para isso o romance está qualificado como poucas outras formas de arte. (1)

A imensidão íntima dos carneiros coloca em primeiro plano a luta dos indivíduos contra a dor, o sofrimento e, principalmente, o medo que congela e paralisa, e também os poderes entrelaçados da palavra, da memória, do testemunho e da própria arte como instrumentos contra o círculo de ferro - vicioso, infindável e recorrente - da violência e das catástrofes da História.

O medo estava estava no princípio de tudo.
O medo dominou gerações e bebeu em pequenas doses a coragem de muitos homens e mulheres de nossa família. Nós sempre estivemos sob o seu domínio. O medo estava em nossos ancestrais os Gassanidas, em Huran próximo às colinas de Golan. No ano 427 d.C, um sujeito chamado Abu Abdallah, nosso ancestral mais remoto, foi perseguido e morto pelos muçulmanos com 128 golpes de sabre, apenas por ser cristão. Sua mãe, que assistia a tudo, gritava para ele: “Morra como um homem, meu filho, não chore”. Mas Abu Abdallah chorou. Foi ali, nas lágrimas que escorriam de seu rosto, que nasceu o medo que iria chegar até nós.
(Marcelo Maluf – A imensidão íntima dos carneiros. São Paulo, Reformatório, 2015, p. 11).

O romance é divido em quatro partes: O Vento, A Montanha, O Fogo, O Oceano que, utilizando as quatro raízes constitutivas do universo, no entender de Empédocles de Agrigento – o ar, a terra, o fogo, a água –, simboliza a busca das origens e da essência, para decifrar o medo atávico que domina a família do protagonista desde tempos imemoriais.

Marcelo Maluf, personagem-narrador, empreende, juntamente com o avô Assaad - do qual se aproxima e cujos passos segue, numa viagem íntima e existencial (pois o avô morreu em 1966, oito anos antes de Marcelo nascer) -, essa busca da verdade no passado, a fim de libertar ambos do medo que é fonte de angústia e do embotamento da vida, e também, por outro lado, do medo que é motor do ciclo da violência recorrente, pois “o medo também nos torna cruéis e, escravos dele, podemos nos tornar assassinos” (cit., p. 12).

Estabelece-se um paralelismo supratemporal entre as vidas de Marcelo e de seu avô, Assaad Simão Maluf, cujas vozes se alternam no romance: no medo ancestral que os entrelaça, no estranhamento em relação aos lugares onde nasceram e dos quais partiram - Assaad, de Zahle, no Líbano; e Marcelo, de Santa Bárbara D'Oeste, cidade do Estado de São Paulo - , nos carneiros a que se afeiçoaram em suas infâncias (Mustafa e Khnum), nas mulheres que passaram por suas vidas, deixando fundas marcas em suas lembranças.

E há um eco de angústia hamletiana em Assaad, que também contamina Marcelo: o pedido de Simão, pai de Assaad, para que vingue a morte cruel de Adib e Rafiq, irmãos de Assaad, por obra de soldados turcos, em 1920, durante o Império Turco-Otomano, e que motiva a saída de Assaad do Líbano em direção ao Brasil, vindo a fixar-se na cidade de Santa Bárbara D'Oeste. Antes de partir, Simão pede a Assaad:

Nunca diga a ninguém o que aconteceu em nossa casa. (…) Uma desgraça como a nossa é para ser enterrada. Ninguém gosta de estar ao lado de gente que vive lamentando as suas tragédias. Vá viver a sua vida e nos esqueça. O Brasil lhe fará bem.”
(Cit. p. 131)

A dinâmica do romance instala-se por dois motivos propulsores: o ciclo de violência e sua contraface: o medo atávico e ancestral que percorre os séculos desde muito distante no tempo até Assaad, seus filhos e Marcelo e, a isso conectado, o “segredo trágico” de Assaad (p. 24), em outras palavras, a interrupção da memória desse ciclo, que dissemina o mal estar no ramo brasileiro da família Maluf. Ter a consciência dessa tragédia cíclica, por meio da memória e do testemunho, e furtar-se à vingança que a alimenta, é a jornada heroica a que somos convidados nessa promissora estreia em romance de Marcelo Maluf, enriquecida pelos ensinamentos, pelas fábulas, parábolas, enfim, pelo rico imaginário da cultura árabe.

Há um dito popular que diz que do carneiro só não se aproveita o berro. Mas como eu não iria explorar a vida de Khnum como fazem os criadores, eu tive tempo de saber que o berro de um carneiro é a sua imensidão íntima, doada em forma de som para o mundo. Quando um carneiro berra, ele expressa a sua angústia, raiva, medo ou alegria. O berro de um carneiro é a maneira dele de se comunicar com Deus. O Cristo berrou: “Pai, por que me abandonaste?”.
(Cit., p. 113).

*

Marcelo Maluf nasceu em Santa Bárbara D'Oeste, interior do Estado de São Paulo, Brasil, em 1974. É músico e mestre em Artes pela Unesp. Autor do livro de contos Esquece tudo agora (2012) e do infantil As mil e uma histórias de Manuela (2013), entre outros. Vive em São Paulo desde 1999.




                 "O pensador", Gibran Khalil Gibran

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  1. Posição do narrador no romance contemporâneo”, in: Theodor Adorno - Notas de literatura I, 2ª ed., trad. Jorge de Almeida, São Paulo, Duas Cidades, Ed. 34, 2012, p. 57.



Um comentário:

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