sábado, 14 de setembro de 2019

Acre, de Lucrecia Zappi

Na selva das cidades




                        Prédio na Vila Buarque, São Paulo


Eu só lembrava do sinteco novo quando chegava em casa. Não estava de mau humor, mas não era possível que nem eu nem a Marcela, que ninguém nesta casa pensasse antes de sair que o sol estaria forte – hoje mais forte que ontem, e amanhã mais forte que hoje – e faria o sinteco crepitar até no escuro.
Agachei para sentir nos dedos a madeira machucada, e pensei no cara que tinha passado o fim de semana ajoelhado no chão da nossa sala, falando da vida no celular, a gente comprando lanche para ele, o sujeito enchendo o saco, tudo para eu me ver parado ali, mais uma vez lamentando minha distração, enquanto o sol já tinha ido e voltado quinhentas vezes no horizonte. Contemplei por um instante a claridade da noite que se espalhava pela sala e fechei a cortina.
Ao dar as costas para a janela, notei uma silhueta na penumbra: era Marcela sentada sobre a bancada da cozinha americana, como ela gostava de chamar aquele vão sem porta.
Pensei em começar perguntando por que não fechara a cortina. Ou que era esquisito que ela ficasse daquele jeito no escuro com as pernas balançantes como se fosse uma menina pequena demais para alcançar o chão.
O que você tá fazendo aí, Marcela?
Nada.
Ela alongou o corpo até o interruptor e tapou os olhos para se proteger do clarão súbito. Minha mulher parecia mesmo uma criança em cima da bancada, com os pés longe do chão.
Tá me vendo agora? Com a mão ligeiramente elevada diante do rosto, Marcela passou de criança a um desses anjos de cemitério, que escondem o rosto das trevas. Você não sabe quem subiu comigo no elevador.
Quem?
O Nelson. O de Santos.
Achei que esse cara tinha morrido. (pp. 7 - 8)


Não obstante cidadã do mundo - nascida em Buenos Aires, em 1972, mudou-se para o Brasil aos quatro anos, tendo vivido posteriormente no México, na Holanda e na Bélgica -, a escritora, jornalista e tradutora Lucrecia Zappi considera-se brasileira e paulistana. A artista reside atualmente em West Village, Nova Iorque. Tal sentimento fica evidente na forma como a cidade de São Paulo ou, mais especificamente, a Vila Buarque - onde de fato a escritora viveu, após se mudar da Argentina, aos quatro anos -, fornece o quadro social e espacial no qual se movem as personagens do romance Acre (2017). Chama a atenção, de imediato, assim, que essa relevância da cidade e da região onde se dá a trama seja contrastada pelo título ambíguo do romance; pois é justamente o deslocamento, a inadequação, o estranhamento, a incerteza, que criam, em parte, a atmosfera opressiva dessa obra bem recebida pela crítica, a segunda obra de ficção da autora: antes, estreara com o romance Onça preta (São José dos Campos: Benvirá, 2013).

Tolstói afirmou que “toda grande literatura é uma destas duas histórias: um homem que parte numa viagem ou um forasteiro que chega a uma cidade.” Pois bem, em Acre temos claramente, numa apreciação formal da narrativa, a segunda situação: Nelson, à semelhança do que se viu em Não falei, de Beatriz Bracher, é uma assombração do passado, um forasteiro que vem de longe, seja temporalmente, seja espacialmente, do Acre, levando à ressurgência dos conflitos recalcados na consciência de Oscar, o narrador em primeira pessoa do romance, que se desenvolve em dois planos espaço-temporais.

Não há marcas temporais definidas para o plano em que se inicia o romance, mas se depreende que seja a época contemporânea, na Vila Buarque, onde reside, em um condomínio predial, na rua Major Sertório, o casal Oscar e Marcela, ambos com cerca de 50 anos.

No centro da trama há um quadrilátero amoroso ocorrido entre trinta anos e trinta e dois anos antes, na cidade de Santos, envolvendo, Oscar, Marcela, Nelson e seu primo, Washington. Um fato trágico levou à ruptura da convivência dessas personagens, em Santos, e, por fim, Oscar e Marcela se casam e fixam residência em São Paulo. O casal vivera, a princípio, por dezoito anos em uma quitinete na Praça Roosevelt. Quando o romance se inicia, o casal já mora há onze anos em um apartamento na rua Major Sertório. Oscar tem uma loja de luminárias na rua da Consolação, herdada do pai, e Marcela tem um restaurante a quilo na Vila Buarque. Oscar cursou apenas dois anos de Arquitetura e não concluiu a Faculdade. Marcela, a enigmática personagem, que remete à Capitu machadiana, nessa trama movida pelo ciúme obsessivo do seu marido, tem origem em uma família muito pobre.

Como dissemos, a vinda de Nelson, do Acre, move a trama e os ciúmes de Oscar. A mãe de Nelson, Dona Vera, é vizinha de parede do casal. Nelson, essa presença aterradora, fica, assim, separado apenas por uma parede de Oscar, o que só faz aumentar a angústia deste.

Como é esperável em uma narrativa exclusivamente em primeira pessoa, muito da tensão da obra advém do fato de que a trama é gerada unicamente pelo relato, pela consciência e pela memória do narrador e, assim sendo, não sabemos quais são as intenções e motivações das demais personagens, o que realça uma narrativa que tem como fio condutor o ciúme.

O aparecimento do “forasteiro” Nelson desata os traumas e as suspeitas do narrador e ficamos sabendo, aos poucos, em flashback, desses fatos pretéritos por meio de alternância dos planos temporais.

O trauma: Nelson é uma personagem bestial. A mãe despachou-o, adolescente, para a casa do irmão, em Santos, depois de arrancar a orelha de um jovem, em uma briga e, com isso, ter passado uma temporada em uma instituição pública de abrigo de menores infratores. Em Santos, Oscar e Nelson passam a fazer parte do mesmo grupo de jovens, com características de gangue, e acabam se envolvendo em uma briga, na qual Oscar leva a pior, dramaticamente, ficando hospitalizado por traumatismo craniano. É, pois, esse fantasma, que fora namorado de Marcela naquela época, que ressurge na vida de Oscar.


Na praia, o instinto foi o de proteger minha longboard, mas o chute que levei na cara fez com que eu batesse a cabeça na quina da prancha. Minha voz saiu débil, senti que o som vindo de dentro da cabeça despedaçava meu crânio. Eram descargas elétricas que me faziam arranhar a areia. Ouvia as pessoas ao redor em eco e o céu tremia ao mesmo tempo, com um azul tão estridente que chegava a enjoar. Minha boca se encheu de sangue, por isso o que eu tentava dizer saía incompreensível. Cuspi e limpei o nariz ensanguentado. Juntou mais gente, a torcida pela briga cresceu.
Foi quando vi Marcela. Estava parada na roda, abraçada a um cara loiro queimado de sol. Como no filme do surfista que lixava a prancha. Não sei dizer por que fui fixar a vista nela, naquela moça de olhos escuros. Achei-a bonita. Foi a última certeza que tive antes de apagar. (p. 31).



                       Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo


As assombrações do passado e o ciúme são, contudo, apenas a superfície da narrativa; a atmosfera sufocante e angustiante daí decorrente servem, em verdade, para dar relevo a uma outra personagem e a um tema subjacente que lhe é conexo: a Vila Buarque e a sua degradação, talvez a própria cidade de São Paulo e, no limite, a crise civilizatória ou, emprestando a expressão de Celso Furtado, a construção reiteradamente interrompida de nosso país. Disso trataremos a seguir.

A Vila Buarque, bairro da cidade de São Paulo, faz parte do processo histórico de expansão urbanística da atual megalópole, o maior centro metropolitano do país e um dos maiores do mundo. A região era originalmente uma chácara, cujo terreno e imóvel tiveram sucessivos proprietários, cujos nomes, posteriormente atribuídos a vias locais, são familiares aos paulistanos: Marechal José Toledo de Arouche Rendon, Senador Antonio Pinto do Rego Freitas, Engenheiro Manoel Buarque de Macedo. Com a venda e posterior desmembramento da chácara, a região abrigou, a partir de fins do século XIX e início do século XX, as residências amplas e luxuosas de famílias de posses que se afastavam do núcleo central da cidade. A partir de meados do século XX, aí se construíram também edifícios de classe média. 

Um corte brutal na história da Vila Buarque ocorre, na década de 1970, com o surgimento de uma obra polêmica, batizada sintomaticamente com o nome de um general do período ditatorial, o Elevado Costa e Silva (posteriormente a obra passou a denominar-se Elevado Presidente João Goulart, em uma dessas irônicas inversões da História), conhecido popularmente como “Minhocão”: trata-se de uma via expressa elevada que liga a Praça Roosevelt ao bairro da Barra Funda, em um percurso de 3,4km. Desde a sua inauguração, em 1971, o Minhocão, por causa dos danos paisagísticos, da poluição do ar e sonora causada aos edifícios próximos, da degradação urbana e social, com moradores de rua, prostituição e usuários de drogas, tornou-se um caso exemplar de estudos na área de urbanismo, por ser fruto típico do planejamento autoritário na gestão de um Prefeito não eleito, em época de regime de exceção, e igualmente fonte de polêmicas sem fim que se arrastam até os dias atuais. 
 
O Minhocão é apenas uma das faces grotescas de uma cidade e sua região metropolitana onde vivem incrivelmente mais de vinte e um milhões de pessoas, situação a que se chegou sem planejamento urbano algum, em uma realidade sócio-econômica totalmente contrastiva, a qual faz conviver encraves populacionais altamente abastados, globalizados e de consumo de alto luxo, ao lado de populações pobres ou miseráveis, com a violência e a marginalidade inevitáveis decorrentes desse atrito e contradições social.

A Vila Buarque de passado elegante, atualmente degradada, em que populações de classe média convivem com moradores de rua, travestis e drogados é, dessa forma, tomada como um microcosmo e sinal dos impasses de uma cidade e de um país.

Além do mais, o romance reflete o clima caótico do Brasil posterior às jornadas de junho de 2013 e antecipa a atmosfera sombria e regressiva do país atual.

Os nomes do condomínio onde mora o casal e da loja de luminárias de Oscar - “Trapézio Imperial” e “Lustres Imperial” - são alusões irônicas e nostálgicas de um tempo perdido em meio ao rebaixamento atual do horizonte de expectativas.

O romance respira a degradação: das edificações, da vida urbana, dos padrões de vida e de civilidade, das consciências, e que se consubstancia na violência ameaçadora e onipresente.

Do lado da praça, dava para notar o efeito do tempo nos prédios. À exceção do nosso edifício, cuja fachada era um retângulo alto de vidros antigos, nada se destacava na quadra. Era um conjunto de construções baixas, com fissuras e remendos, caixotes de ar-condicionado isolados e uma cortina ou outra de cor forte. No nível da rua, entradas de prédios residenciais se misturavam a fachadas comerciais. Eram soluções totalmente diversas que conduzia a uma homogeneidade opaca de arrebiques. (p. 82).

Nelson provavelmente não fazia ideia de que sua mãe andava descendo com uma sacola para pegar restos de comida depois da feira, junto com os mendigos, e que acabava ficando por ali. Queria companhia, decerto, e tinha pouco dinheiro mesmo. Não sei se chegou a passar fome, mas Vera não parecia ter vergonha de se juntar aos da rua. Até Marcela, que não era de se comover com a miséria, quando ficou sabendo do desespero de nossa vizinha, entre abandono e falta de grana, começou a pensar a respeito.
Imagina chegar à velhice assim, comendo sobras, disse ela. Se não fosse a gente, ela poderia acabar feito essa indigência doida do centro da cidade. Reparou na quantidade de pessoas que mora nas ruas? (p.41).

Ana seguiu adiante, cada vez mais diluída na distância e na escuridão, parando para conversar com outro vizinho. Vera aproveitou para contar ao filho que Ana tinha sido assaltada recentemente.
O dano que faz uma arma apontada na cabeça, ouvi dona Vera dizer baixinho. E o pior é que foi bem ali na praça, quase na frente do prédio, perto do posto policial. Parece que abusaram dela.
Nelson cuspiu na mão um caroço de azeitona. Abusaram como?
Não sei detalhes, não. Ela acha que o perigo está em todos os lados e que a violência nas ruas é uma maldição entre nós. (p. 69).

A bestialidade de Nelson, acometido de um vitiligo que avança pelos seus braços, a sua violência instintiva, a incontrolável tendência ao trambique, à atuação à margem da lei, a ameaça que representa aos laços sociais, à família, é, igualmente, símbolo tanto do terror que inspira, principalmente às camadas médias, que anseiam por uma vida cosmopolita e estável, mas que se defrontam continuamente, em uma realidade subdesenvolvida, com a realidade bruta, instável e contraditória de suas vidas, como da própria incerteza do projeto de nação. A impotência e passividade de Oscar diante da ameaça representada pelo forasteiro Nelson é muito significativa, aí incluída, como seu ápice trágico, a própria incapacidade de decifrar os gestos, os significados e as intenções de sua esposa.

Muito bem estruturado, o início do romance, pautado pela preocupação de Oscar com o sinteco, a demonstrar o achatamento de horizontes e a mediocridade em que está imersa a vida do protagonista, encerra-se em anticlímax: a coroação corrosiva da capitulação de Oscar e de tudo o que ele representa.

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Há notícias de que Lucrecia Zappi está trabalhando em sua terceira obra ficcional: eis uma notícia alvissareira para os admiradores das novas vozes artísticas e da vertente crítica e instigante da nossa literatura.


              Lucrecia Zappi, na Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo

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Edição utilizada:
Lucrecia Zappi. Acre. São Paulo: Todavia, 2107. 208 pp.. Brochura, 13,5x21cm. Capa: Daniel Trench. Fotos de capa: Bianca Vasconcellos; a foto da capa é de detalhe do prédio Santa Rita, na Vila Buarque, onde a escritora morou. Fonte: Register. Papel Munken print cream 80 g/m2.

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A própria autora traduziu a obra para o espanhol, em publicação para a Editorial La Huerta Grande (2017), assinando-se como Lucrecia Zappi Luhring.

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Acre foi finalista do Prêmio Jabuti, 2018.

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Imagens

Prédio na Vila Buarque, São Paulo
vivareal.com.br
 
Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo
br.kekanto.com 

Lucrecia Zappi, na Praça Rotary, Vila Buarque, São Paulo.
Foto: Filipe Redondo / ÉPOCA
https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/08/novo-livro-de-lucrecia-zappi-reproduz-o-ruido-do-bairro-onde-ela-cresceu.html



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Lucrecia Zappi fala sobre o romance Acre.





José Antonio Resende de Almeida Prado (Santos, 8 de fevereiro de 1943 — São Paulo, 21 de novembro de 2010). Noturno n. 4. Piano: Alexandre Dias. Festival "Vamos Ouvir Música?", Teatro Nacional Claudio Santoro, Brasília, 2007.

https://www.youtube.com/watch?v=nF4uv8w24a4