Vasto mundo, de Maria Valéria Rezende
Grandezas e misérias humanas no povoado de Farinhada
A moça chegou do Rio. Logo se vê… tão alvinha! Saiu daqui miúda, não diferenciava em nada das outras meninas da escola municipal. Foi o padrinho que a levou. Voltou essa moçona. Veio passar o São João. No meio das outras moças, na frente da igreja, ela agora diferencia até demais. O vestido bonito, mais altura, as unhas compridas e vermelhas, movendo os braços, dando voltas e requebros enquanto fala. E fala sem parar. As outras, mais matutas ainda junto dela, são apenas moldura para o quadro. Para os olhos de Preá, nem moldura. Não existem. Não existem maia a igreja, a praça, a vila, nada. Só a moça. (p. 15).
Maria
Valéria Rezende (Santos, Estado de S. Paulo, Brasil, 1942), uma das
mais premiadas entre os escritores da literatura brasileira
contemporânea, é um caso singular das nossas Letras: muito embora
esta sua primeira obra tenha vindo a lume em 2001, quando a escritora
contava quase sessenta anos, não se pode dizer, a rigor, que se
trate de uma escritora bissexta, se, como a própria autora relatou
pessoalmente, no fim de 2018, na série “Encontros com o Escritor”,
em São Paulo, promovida pela Editora Unesp, ela viveu em um ambiente
marcado pela presente constante da literatura e, sendo assim,
escrever tornou-se algo natural desde sempre, ainda que em
manuscritos pessoais.
Em
depoimento ao jornal Folha de S. Paulo, a escritora relata:
Eu comecei a ler antes de saber ler. Nasci antes da televisão: à noite minha família costumava se sentar na varanda e dividir poemas. Meu avô tinha sido declamador e sabia muitos de cor. As pessoas sempre me perguntam quais foram os livros de que mais gostei na vida. Eu não sei dizer, faz 70 anos que sou leitora e tinha o costume de ler 2.000 páginas por semana. (1)
Outros
fatores importantes para a formação de Maria Valéria Rezende foram
a sua atuação na Juventude Estudantil Católica, a opção
posterior pela vida religiosa, entrando na Congregação de Nossa
Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, em 1965, pela qual passou a
dedicar-se como missionária na educação popular, o que lhe
possibilitou conhecer diferentes paisagens e culturas no Brasil e no
exterior.
Assim,
mesmo sem publicar, Maria Valéria Rezende foi acumulando, durante
uma vida laboriosa e plena em dedicação ao outro, uma valiosa
experiência de observações humana e social, principalmente no
tocante aos mais pobres.
Ressalta
ainda na escritora, por fim, a rica produção, igualmente
reconhecida e premiada, voltada aos públicos infantil e juvenil, o
que mostra a sua versatilidade e dá mais valor ainda ao seu ofício
de escritora.
*
Vasto
mundo foi publicado em 2001 e teve nova edição revisada em
2015.
Aspectos
de sua trajetória de vida estão presentes nessa obra inaugural,
como evidencia o depoimento da escritora à Folha de S. Paulo:
Não sei se sou uma grande escritora, mas sou uma boa contadora de histórias. Fiz muito isso de ouvir, contar e recontar no meu trabalho de educação popular. Como minha vida teve uma série de mudanças de região e de país, tive muitas experiências de aprender novas linguagens, gestos, comportamentos e histórias. E é como se a gente fosse se multiplicando. (2)
José Costa Leite, xilogravura
Vasto
mundo passa-se no povoado
paraibano de Farinhada, distrito da cidade de Itapagi, denominações
fictícias
de localidades
no sertão nordestino.
As narrativas são centradas
em tipos locais, com o recurso frequente
à sátira, como forma de ampliar as situações expostas e, muitas
vezes sob uma aparência inocente, de “causo”, servem, em
verdade, ao propósito de desnudar as estruturas opressoras e
associadas do latifúndio, do patriarcalismo e do mandonismo sobre
as populações humildes, sobre os moradores das zonas rurais,
destituídos de um pedaço de terra para lhes garantir a
subsistência, e também sobre a mulher, destinada a um papel
subordinado na família e na sociedade.
Ocorre
que as narrativas, na maioria dos casos, flagram justamente situações
em que essas estruturas opressoras são questionadas ou desafiadas.
Esses momentos são como um
raio, uma fissura nos sistemas de dominação, que permite aos
oprimidos ou às mulheres tanto porem a nu a mecânica da opressão,
causando
um
choque no
cotidiano de reprodução do status quo e do imobilismo, assim
como traz para o horizonte
visível a possibilidade de emancipação. Trata-se, contudo, apenas
de uma fissura, não de ruptura das
estruturas, caso contrário se trataria de uma literatura escapista
em confronto com as realidades sociais, políticas e culturais que,
como é sabido, são resistentes a mudanças, principalmente aquelas
que atingem frontalmente
os interesses materiais das classes proprietárias.
É
assim em “A guerra de Maria
Raimunda” em que é dado o protagonismo a uma mulher de
personalidade forte que terá papel determinante, em favor dos
pobres, em um conflito
de terras que opõe o latifundiário e
deputado federal Assis
Tenório, personagem recorrente em muitos dos contos, a
camponeses que são pressionados
pelos capangas daquele homem poderoso do povoado.
É assim que Maria Raimunda gosta de ser, dura feito pau de sucupira quando lhe pedem favor, fecha a cara e diz que não é madrinha de ninguém, que só vai fazer o favor para o outro desaparecer de sua frente; quando dá alguma coisa não é como quem dá: sacode de mau jeito o prato ou o agrado que seja para cima do outro, como coisa que não presta. Não tem dó nem de filho e marido: se Antonio Pedro chega em casa meio tocado de cachaça, ela nega a janta, passa o ferrolho na porta e larga o pobre a noite inteira no terreiro “que sereno e jejum é que é bom para bebedeira”. (pp. 37 – 38).
Pois
é essa mulher, que “não se importa nem um pouco que lhe digam
mulher-macho”, que isso lhe dá mais autoridade” (p. 38), que
acaba envolvendo outras mulheres, por meio de um bendito, uma
cantoria religiosa, na resistência à truculência de Assis Tenório.
Nesse
conto, atente-se que Maria de Zuza, esposa de um dos lavradores
vítimas da violência, recorre ao Padre Franz, outro personagem
recorrente, mas mesmo este estando sempre ao lado dos humildes (em
outro conto, “Não se vende jumento velho”, ficamos sabendo que
Padre Franz veio da Alemanha e desembarcou em Farinhada, entusiasmado
com a recém-nascida Teologia da Libertação), a mulher ouve do
Padre “que Deus olhava pelos pobres, aguentasse, tivesse paciência,
tivesse coragem”. Ou seja, a resistência contra a opressão parte
dos despossuídos mesmo e ainda sob a liderança das mulheres.
O
protagonismo também é da mulher em “A obrigação”, no qual
Dona Ceiça não hesita em ir à zona e, aí, recorrer a Marivalda,
para dar novo alento ao marido, que não cumpre mais a obrigação
conjugal. Nesse conto, da mesma forma como em “Aurora dos
Prazeres”, do qual trataremos a seguir, revela-se a filiação
teológica da autora, com a compaixão desmedida por aqueles que mais
sofrem; assim, Dona Ceiça mostra o seu agradecimento pela graça
recebida:
Em Itapagi ela comprou a vela maior que havia, acendeu no altar de Nossa Senhora e deixou o resto do dinheiro na caixa das ofertas para a salvação das almas de todas as putas. (p. 47).
José Costa Leite, xilogravura
Aurora
dos Prazeres, a protagonista do conto homônimo - uma personagem com a
qual certamente a escritora se identifica -, cuja mãe morre com
Aurora tendo apenas dez anos, foge às injunções sociais e
familiares a que estão destinadas as mulheres em seu papel subordinado
na sociedade patriarcal:
Quando ficou mocinha, coisa que o pai percebeu ao ver uns trapinhos denunciadores a secar no varal, Raimundo dos Prazeres deu-lhe um vestido novo e começou a levá-la consigo para a feira de Itapagi. Com certeza sentiu-se na obrigação de apresentá-la ao mercado casamenteiro. (p. 126).
e
ordena-se freira, para dedicar-se aos mais pobres.
Tinha entendido tudo o que o bispo dissera e procurou os mais pobres e desprezados para visitar e evangelizar. Descobriu o Rabo da Gata, a rua das mulheres da vida, e passava com elas as horas em que não tinham freguesia. Ouvia suas misérias, falava-lhes de Jesus e de como as putas entravam primeiro no Reino dos Céus. (p. 128).
Em
“O tempo em que Dona Eulália foi feliz” revela-se que a
truculência do latifúndio, associado ao mandonismo, transcende o
mero privilegiamento material e procura subjugar e submeter, a fim de
ressaltar e reafirmar o poder do senhor de terras. Dona Eulália,
esposa de Assis Tenório, estando este doente, assume temporariamente
os negócios da fazenda e, mais uma vez, abre-se uma fissura nas
estruturas de poder do patriarcado, do latifúndio e do mandonismo,
com a protagonista rompendo a inércia de seu papel limitado ao
âmbito doméstico:
Pela primeira vez desde que se casara, longe das vistas do marido, estando ausente também Adroaldo, segunda pessoa dele, Eulália viu-se, de repente, dona de tudo, sem ninguém que lhe dissesse o que fazer ou que lhe proibisse qualquer coisa. Não se deu conta da nova situação de imediato, pois o medo e a submissão, o nada ser e nada poder, eram-lhe uma segunda natureza. Assim também a gente da fazenda teria continuado na mesma pisada de sempre: para fosse o que fosse havia que pedir licença, pedir favor, pedir desculpas, pedir transporte, pedir… a quem encontrasse de plantão na varanda da casa-grande – Assis Tenório em pessoa; Adroaldo, em sua ausência, ou mesmo Assissinho, em suas frequentes férias em Farinhada. (p.73).
Nesse
conjunto de contos, portanto, que, tratando-se da primeira publicação
da autora, já dá mostras de uma escritora muito segura no seu
ofício, com fina capacidade de observações humana e social, com um
estilo conciso, direto e cortante, causa admiração ainda maior
constar pelo menos uma peça brilhante, digna de ser incluída na
antologia do conto brasileiro: trata-se de “Medo”, e o início da
narrativa bem o demonstra:
Sobressaltou-se com o coaxar dos sapos como se fosse um sino dando as horas, horas de trevas, de medo, de morte. Era assim todos os dias. Quando eles começavam com suas marteladas estridentes não havia mais jeito de deter a luz; ao sinal dos sapos ela partia irrevogavelmente e ele tinha de ficar no escuro para sempre até a manhã seguinte. Velas, candeeiros tornavam ainda mais escura a escuridão porque a faziam mover-se como uma coisa viva, recuar e avançar para ele, provocá-lo, zombar do pavor que o assombrava. Preferia ficar no apagado, quieto, encolhido, para que a escuridão não o visse e o deixasse em paz até o sol voltar. (p. 31).
A
personagem, cujo nome não é revelado, é um matador de aluguel que
está acoitado “longe da vila, no extremo da serra do Pilão” (p.
34), após ter despachado mais uma alma. Em apenas cinco páginas, em
um primor de concisão, a narrativa desvela todo um mundo arcaico em
que se fundem fé, violência e misticismo. Notável. Mas, nos anos
seguintes à publicação da presente coletânea, voos mais altos
brindarão os leitores dessa escritora ímpar da literatura
brasileira contemporânea.
__________
(1)
Maria Valéria de Rezende, “Vida de cão”, in: Jornal Folha de S.
Paulo, 5/5/2019, caderno Ilustríssima, p. 2.
(2)
Id., ibid..
_________
Edição
utilizada:
Maria
Valéria Rezende. Vasto mundo. Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara,
2105. 163 pp.. Brochura, 14x21cm. Capa Diogo Droschi.
__________
Vasto
mundo foi publicado na França:
Vaste
monde. Paris: Anacaona, 2017.
__________
Imagens
Xilogravuras
do cordelista José Costa Leite (Sapé, Paraíba, Brasil, 1925).
Fonte:
http://www.paraibacriativa.com.br/artista/jose-costa-leite/
Fotografia
de Maria Valéria Rezende.
https://www.camara.leg.br/internet/bancoimagem/banco/2018/12/img20181204182243032MED.jpg
__________
Marlos
Nobre (Recife, Pernambuco, Brasil, 18/2/1939), “Cancioneiro de
Lampião para coro misto a cappella" (1980),
1.
Muié Rendêra; 2. É Lamp, é Lamp, é Lampa; 3. Cantigas de Lampião
Regente:
Lincoln Andrade Fonte.




Caro Paulo, nem sei como agradecer-lhe a sua leitura tão atenta e generosa do meu Vasto mundo! Você me faz reler meu livro com nova luz! Obrigadíssima, de coração!
ResponderExcluirMuito obrigado, Maria Valéria Rezende! O blog certamente irá se debruçar sobre outras obras suas. Tudo de bom!
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